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Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro
josivaldoeokara Bezerra 12/10/2024
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<p>Tradução</p><p>Ana Rodrigues</p><p>1ª edição</p><p>Rio de Janeiro-RJ / Campinas-SP, 2022</p><p>22-79411</p><p>Copidesque</p><p>Mel Ribeiro</p><p>Revisão</p><p>Cleide Salme</p><p>Título original</p><p>How to Be Happy</p><p>ISBN: 978-65-5924-125-5</p><p>Copyright © Claire McGowan, 2017</p><p>Todos os direitos reservados.</p><p>Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos são produtos da</p><p>imaginação da autora ou usados de forma ficcional. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas</p><p>ou mortas, instituições comerciais, eventos ou locais é coincidência.</p><p>Tradução © Verus Editora, 2022</p><p>Direitos reservados em língua portuguesa, no Brasil, por Verus Editora. Nenhuma parte desta obra</p><p>pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou</p><p>mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem</p><p>permissão escrita da editora.</p><p>Verus Editora Ltda.</p><p>Rua Argentina, 171, São Cristóvão, Rio de Janeiro/RJ, 20921-380</p><p>www.veruseditora.com.br</p><p>CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO</p><p>SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ</p><p>W86a</p><p>Woods, Eva</p><p>Algo como ser feliz [recurso eletrônico] / Eva Woods; tradução Ana Rodrigues. – 1. ed. –</p><p>Rio de Janeiro: Verus, 2022.</p><p>recurso digital</p><p>Tradução de: How to be happy</p><p>Formato: epub</p><p>Requisitos do sistema: adobe digital editions</p><p>Modo de acesso: world wide web</p><p>ISBN 978-65-5924-125-5 (recurso eletrônico)</p><p>1. Ficção inglesa. 2. Livros eletrônicos. I. Rodrigues, Ana. II. Título.</p><p>CDD: 823</p><p>CDU: 82-3(410.1)</p><p>http://www.veruseditora.com.br/</p><p>Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439</p><p>Revisado conforme o novo acordo ortográfico.</p><p>Seja um leitor preferencial Record.</p><p>Cadastre-se no site www.record.com.br e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas</p><p>promoções.</p><p>Atendimento e venda direta ao leitor:</p><p>sac@record.com.br</p><p>https://bnweb.snel.org.br/scripts/bnweb/bnmcip.exe/ficha?OTo8Pzw8</p><p>http://www.record.com.br/</p><p>mailto:sac@record.com.br</p><p>Para Scott (SP), com todo o meu amor</p><p>Nem sempre é possível saber o exato momento em que sua vida</p><p>toma o rumo errado. Na maioria das vezes, isso vai acontecendo aos</p><p>poucos, ano após ano, momento após momento, até que um dia você</p><p>olha ao redor e percebe que está tão longe de quem era que já nem</p><p>se sente mais a mesma pessoa. Normalmente é um colapso gradual,</p><p>sorrateiro — uma pedra aqui, um seixo ali... uma lenta erosão de</p><p>quem você é, pouco a pouco, pedaço a pedaço.</p><p>Mas algumas vezes você consegue dizer exatamente quando sua</p><p>vida degringolou. Quando todas as suas cartas, cuidadosamente</p><p>arrumadas, caíram e sua casa desmoronou, e naquele momento você</p><p>percebeu que nada jamais seria como antes. Naquele momento, você</p><p>já não sabia se sobreviveria ou se afundaria para sempre. Mas você</p><p>sobreviveu. De algum modo.</p><p>SUMÁRIO</p><p>DIA 1</p><p>FAÇA UMA NOVA AMIZADE</p><p>DIA 2</p><p>SORRIA PARA ESTRANHOS</p><p>DIA 3</p><p>ARRUME TEMPO PARA TOMAR CAFÉ DA MANHÃ</p><p>DIA 4</p><p>APROVEITE AO MÁXIMO SEU HORÁRIO DE ALMOÇO</p><p>DIA 5</p><p>MEXA-SE</p><p>DIA 6</p><p>CELEBRE SEU CORPO</p><p>DIA 7</p><p>PASSE TEMPO COM A FAMÍLIA</p><p>DIA 8</p><p>CAMINHE ATÉ O TRABALHO</p><p>DIA 9</p><p>ANOTE O QUE PENSA</p><p>DIA 10</p><p>FAÇA CHÁ PARA O PESSOAL DO ESCRITÓRIO</p><p>DIA 11</p><p>DÊ FLORES A ALGUÉM</p><p>DIA 12</p><p>ARRUME</p><p>DIA 13</p><p>OLHE MAIS DO ALTO</p><p>DIA 14</p><p>NÃO FAÇA NADA</p><p>DIA 15</p><p>TERMINE UMA TAREFA</p><p>DIA 16</p><p>ABSORVA UM POUCO DE CULTURA</p><p>DIA 17</p><p>OUÇA MÚSICA</p><p>DIA 18</p><p>ARRUME TEMPO PARA CONVERSAR</p><p>DIA 19</p><p>TENHA UM ANIMAL DE ESTIMAÇÃO</p><p>DIA 20</p><p>EXPERIMENTE UM ESPORTE RADICAL</p><p>DIA 21</p><p>TRANSFORME SEU VISUAL</p><p>DIA 22</p><p>FLERTE COM ALGUÉM</p><p>DIA 23</p><p>VEJA ANTIGOS AMIGOS</p><p>DIA 24</p><p>PASSE UM TEMPO COM CRIANÇAS</p><p>DIA 25</p><p>COMPARTILHE ALGUMA COISA</p><p>DIA 26</p><p>RECUPERE UM HOBBY</p><p>DIA 27</p><p>TROQUE A ROUPA DE CAMA</p><p>DIA 28</p><p>PERDOE ALGUÉM</p><p>DIA 29</p><p>FAÇA UMA LIMPA NO FACEBOOK</p><p>DIA 30</p><p>ESCUTE</p><p>DIA 31</p><p>DANCE COMO SE NINGUÉM ESTIVESSE OLHANDO</p><p>DIA 32</p><p>FAÇA TRABALHO VOLUNTÁRIO</p><p>DIA 33</p><p>ORGANIZE-SE</p><p>DIA 34</p><p>LIBERE SEU LADO ARTÍSTICO</p><p>DIA 35</p><p>AJUDE ALGUÉM</p><p>DIA 36</p><p>CUIDE DO CABELO</p><p>DIA 37</p><p>RETRIBUA</p><p>DIA 38</p><p>VISITE UMA PESSOA DOENTE</p><p>DIA 39</p><p>TENHA ESPERANÇA</p><p>DIA 40</p><p>AJA COM HONESTIDADE</p><p>DIA 41</p><p>SAIA</p><p>DIA 42</p><p>FAÇA ALGO ESPIRITUAL</p><p>DIA 43</p><p>ANDE EM UMA MONTANHA-RUSSA</p><p>DIA 44</p><p>REAFIRME SEUS OBJETIVOS</p><p>DIA 45</p><p>SEJA BOBO</p><p>DIA 46</p><p>ARRECADE DINHEIRO PARA CARIDADE</p><p>DIA 47</p><p>CONHEÇA PESSOAS</p><p>DIA 48</p><p>CONTEMPLE A MORTALIDADE</p><p>DIA 49</p><p>APOIE ALGUÉM</p><p>DIA 50</p><p>PEÇA DEMISSÃO</p><p>DIA 51</p><p>PLANEJE FÉRIAS</p><p>DIA 52</p><p>COMPRE ROUPAS NOVAS</p><p>DIA 53</p><p>DÊ UM PRESENTE</p><p>DIA 54</p><p>FAÇA UMA VIAGEM DE CARRO</p><p>DIA 55</p><p>SUPERE UM MEDO</p><p>DIA 56</p><p>APRECIE AS MARAVILHAS DA NATUREZA</p><p>DIA 57</p><p>COMA ALGUMA COISA DIFERENTE</p><p>DIA 58</p><p>CONECTE-SE COM SUAS RAÍZES</p><p>DIA 59</p><p>Viaje</p><p>DIA 60</p><p>FIQUE SEM FAZER NADA</p><p>DIA 61</p><p>COMECE UM NOVO HÁBITO SAUDÁVEL</p><p>DIA 62</p><p>ESTIMULE O COMÉRCIO LOCAL</p><p>DIA 63</p><p>APRENDA UMA NOVA HABILIDADE</p><p>DIA 64</p><p>SAIA E PRODUZA</p><p>DIA 65</p><p>VÁ À BIBLIOTECA</p><p>DIA 66</p><p>PEÇA DESCULPAS</p><p>DIA 67</p><p>CONHEÇA UM RECÉM-NASCIDO</p><p>DIA 68</p><p>REÚNA AS PESSOAS</p><p>DIA 69</p><p>PEGUE LEVE</p><p>DIAS 70 a 80</p><p>DEIXE IR</p><p>DIA 81</p><p>FAÇA AS PAZES</p><p>DIA 82</p><p>ESCREVA O PRÓPRIO OBITUÁRIO</p><p>DIA 83</p><p>TENHA UM PRIMEIRO ENCONTRO</p><p>DIA 84</p><p>DIGA ADEUS</p><p>DIA 85</p><p>DEITE-SE NA CAMA E CHORE</p><p>DIA 86</p><p>PEGUE OS COMPRIMIDOS PARA DORMIR NO ARMÁRIO DO BANHEIRO, OLHE PARA</p><p>ELES E DEPOIS GUARDE-OS NOVAMENTE</p><p>DIA 87</p><p>SENTE-SE NO CHÃO DA SALA SEM PENSAR EM NADA E ENCARE A TELA DA TV</p><p>DESLIGADA</p><p>DIA 88</p><p>FALE EM PÚBLICO</p><p>DIA 89</p><p>LEIA CARTAS ANTIGAS</p><p>DIA 90</p><p>VISITE UM TÚMULO</p><p>DIA 91</p><p>RELEMBRE</p><p>DIA 92</p><p>TOME CAFÉ</p><p>DIA 93</p><p>FAÇA UMA LIMPA NO GUARDA-ROUPA</p><p>DIA 94</p><p>AGRADEÇA</p><p>DIA 95</p><p>VÁ A UMA FESTA</p><p>DIA 96</p><p>JUNTE-SE A UM CLUBE</p><p>DIA 97</p><p>VÁ MAIS LONGE</p><p>DIA 98</p><p>DECORE SUA CASA</p><p>DIA 99</p><p>MANDE UMA CARTA</p><p>DIA 100</p><p>GIGA A VERDADE</p><p>AGRADECIMENTOS</p><p>DIA 1</p><p>FAÇA UMA NOVA AMIZADE</p><p>— Com licença?</p><p>Sem resposta. A recepcionista continuou a espancar o teclado do</p><p>computador.</p><p>Annie tentou de novo.</p><p>— Com licença.</p><p>Era um “com licença” nível dois — acima do que ela daria a turistas</p><p>que bloqueavam as escadas rolantes e abaixo do que reservava para alguém</p><p>que ocupava um assento do metrô com a bolsa. Nada.</p><p>— Desculpe — disse Annie, alcançando o nível três (para quem</p><p>roubava vagas no estacionamento, esbarrava nela com o guarda-chuva etc.).</p><p>— Você pode me ajudar, por favor? Estou em pé aqui há cinco minutos.</p><p>A mulher continuou a digitar.</p><p>— Com o quê?</p><p>— Preciso mudar o endereço na ficha de uma paciente. Já fui mandada</p><p>a quatro departamentos diferentes.</p><p>A recepcionista estendeu uma das mãos sem levantar os olhos. Annie</p><p>lhe entregou o formulário.</p><p>— Esta é você?</p><p>— Ora, não. — Obviamente.</p><p>— Os próprios pacientes têm que fazer essa alteração.</p><p>— Hum, bem, na verdade, a paciente não tem condições. — O que</p><p>ficaria claro se alguém no hospital se desse ao trabalho de ler os arquivos.</p><p>O formulário foi jogado sobre o balcão.</p><p>— Não posso permitir que outra pessoa faça a alteração. Proteção de</p><p>dados, você entende.</p><p>— Mas... — Annie teve uma súbita e terrível impressão de que estava</p><p>prestes a começar a chorar — preciso fazer a alteração para que a</p><p>correspondência seja enviada para o meu endereço! Ela não pode mais ler</p><p>por conta própria o que chega! Por isso estou aqui. Por favor! Eu... eu só</p><p>preciso mudar o endereço. Não entendo como isso pode ser tão difícil.</p><p>— Sinto muito. — A recepcionista fungou e limpou uma das unhas.</p><p>Annie pegou o papel de volta.</p><p>— Escute, já estou neste hospital há horas. Me mandaram de uma sala</p><p>para outra. Registro de pacientes. Neurologia. Ambulatório. Recepção. De</p><p>volta para a Neurologia. E ninguém parece ter a menor ideia de como</p><p>executar essa simples tarefa! Eu não comi. Não tomei banho. E não posso ir</p><p>para casa a menos que você abra o computador e digite umas poucas linhas.</p><p>É só isso que precisa fazer.</p><p>A recepcionista ainda não olhava para ela. Claque, claque, claque.</p><p>Annie sentiu a raiva, a dor e a frustração a engolindo.</p><p>— Você está me OUVINDO? — Ela estendeu a mão e virou o</p><p>computador.</p><p>As sobrancelhas da mulher desapareceram sob os cabelos cheios.</p><p>— Senhora, vou ter que chamar a segurança se você não...</p><p>— Eu só quero que você olhe para mim enquanto eu estiver falando. Só</p><p>preciso que me ajude. Por favor. — Então era tarde demais e ela estava</p><p>realmente chorando, a boca subitamente com um gosto amargo, salgado. —</p><p>Desculpe. Desculpe. Eu só... eu... realmente preciso alterar o endereço.</p><p>Seja o</p><p>que for.</p><p>— Não, mãe — disse Annie com a voz cansada. — Você não está na</p><p>prisão. Não fez nada errado.</p><p>— Mas acho que fiz. — Ela inspirou fundo, parecendo em pânico, e</p><p>logo um suspiro se transformou em um soluço. — Só não sei o que foi.</p><p>Pode ligar para o Andrew, por favor? Diga a ele para vir me buscar?</p><p>— Mãe... — Annie se interrompeu. Não isso de novo. — Vou ligar para</p><p>ele. Prometo.</p><p>— Podemos aplicar uma injeção nela — sugeriu o dr. Fraser</p><p>gentilmente. — Deixá-la dormir por enquanto, e você pode pensar sobre o</p><p>que o Sami disse. Se tiver alguma pergunta, basta me procurar, está bem?</p><p>Na verdade, sou neurologista, mas acabo lidando muito com geriatria</p><p>também, infelizmente.</p><p>— Obrigada. — Annie teve vontade de ir até a mãe, abraçá-la ou coisa</p><p>parecida, mas sabia que a pele de Maureen estaria gelada, a pulsação,</p><p>acelerada como a de um passarinho com medo. E seria assustador para ela</p><p>ser abraçada por uma completa estranha. — É melhor eu voltar para o</p><p>trabalho. Já estou encrencada.</p><p>— Mas com certeza eles vão entender, não?</p><p>— Eu não apostaria nisso. Obrigada, dr. Fraser.</p><p>— Por favor, pode me chamar de Max. Dr. Max, se quiser.</p><p>— Está certo. Obrigada.</p><p>Ao sair, quando passava pelo corredor pintado naquela cor horrível,</p><p>Annie passou por Polly. Ela estava sentada em uma maca, conversando com</p><p>uma faxineira apoiada no esfregão, rindo.</p><p>— Annie! — chamou Polly. E desceu da maca com um pulo. — Temos</p><p>que parar de nos encontrar assim.</p><p>Annie engoliu as lágrimas.</p><p>— Por que você está aqui de novo?</p><p>— Bom, basicamente o aparelho de ressonância magnética é muito</p><p>disputado, por isso eu meio que passo por aqui quase todos os dias e espero</p><p>por uma brecha para conseguir fazer o meu exame. — Polly deve ter</p><p>reparado na expressão dela. — Ah, Annie! Você está bem? É a sua mãe?</p><p>Venha cá, sente-se.</p><p>Annie desmoronou em uma cadeira na sala de espera, reparando em um</p><p>rasgo no estofamento de plástico. Com as entranhas expostas, exatamente</p><p>como ela se sentia.</p><p>— Ela... está tendo um dia ruim. Não sabe quem eu sou. Ficou muito</p><p>aborrecida... tiveram que contê-la.</p><p>— Sinto muito. Deve ser terrível.</p><p>E lá estava aquela mulher, praticamente uma estranha, com mais do que</p><p>a cota que lhe cabia de problemas próprios, dando palmadinhas carinhosas</p><p>no braço de Annie, como se realmente se importasse. Como Polly</p><p>conseguia? Annie respirou fundo, com dificuldade. Tem que haver mais do</p><p>que isto. Algo claramente estava funcionando para Polly, o que quer que</p><p>fosse. E Annie estava cansada demais para lutar naquele momento, cansada</p><p>demais para se opor ao único canto de cor e positividade em sua vida.</p><p>— Aquela ideia dos cem dias? — Annie se ouviu dizer. — Vou aceitar.</p><p>Quer dizer, se me quiser com você.</p><p>— É claro que eu quero. Como nós duas temos que continuar a vir aqui,</p><p>ao menos podemos tentar nos divertir.</p><p>Annie não conseguia nem começar a imaginar como poderia se divertir</p><p>— como não odiaria cada minuto. Como encontraria algo por que ficar feliz</p><p>em sua vida. Mas era como as drogas experimentais, quando não havia</p><p>outra opção... era melhor fazer alguma coisa do que nada.</p><p>— Está certo — falou ela. — Estou dentro. Desde que eu não tenha que</p><p>nadar com golfinhos.</p><p>— Você não quer nadar com golfinhos?</p><p>Annie estremeceu.</p><p>— Não consigo pensar em nada pior.</p><p>— Mas são golfinhos! Todo mundo ama golfinhos!</p><p>— Eu não. Eles sempre parecem estar planejando alguma coisa. Não</p><p>podemos confiar em nada que sorria tanto.</p><p>Polly deu uma gargalhada.</p><p>— Ah, Annie, você é hilária. Prometo que não vai haver nenhuma</p><p>criatura marítima à vista. Por que não aparece na minha casa no sábado?</p><p>Podemos comparar nossas listas para a semana, certo?</p><p>Há anos Annie não ia à casa de outra pessoa. Não fazia uma nova amiga</p><p>ou socializava de alguma forma. A ideia era apavorante. Mas ela se obrigou</p><p>a dizer:</p><p>— Tudo bem. Estarei lá.</p><p>DIA 5</p><p>MEXA-SE</p><p>Annie ficou parada diante das gavetas da cômoda segurando o maiô que</p><p>desenterrara. Elegantemente discreto, com listras pretas e brancas, ela o</p><p>havia comprado para as férias que passou com Mike na Grécia.</p><p>Supostamente, seriam as últimas férias dos dois sozinhos, e de certa forma</p><p>realmente foi — eles nunca mais viajaram juntos, e jamais viajariam. Annie</p><p>o segurou junto ao corpo por um breve momento. O cheiro de sal e de</p><p>protetor solar se impregnara no tecido, fazendo-a se lembrar de que já tinha</p><p>sido feliz. Mares turquesa, o sussurro do ventilador de teto, despertar vendo</p><p>a luz do sol refletida no piso de madeira.</p><p>Teria sido tão fácil guardar novamente o maiô, desistir de ir à fria</p><p>piscina pública, com seus vestiários sujos, mas Annie queria ter alguma</p><p>coisa para contar a Polly no dia seguinte. Assim, ela guardou o maiô em</p><p>uma bolsa, com uma toalha e uma touca de natação de senhorinha, coberta</p><p>de flores de plástico. E quando Annie entrou na piscina, em sua hora de</p><p>almoço, sorriu ao ver uma turma de hidroginástica em que todas as alunas,</p><p>com mais de sessenta anos, usavam toucas semelhantes à dela. As senhoras</p><p>acenaram para Annie, ela acenou de volta, timidamente, e se perguntou se</p><p>algum dia poderia levar a mãe para participar de uma atividade como</p><p>aquela, caso o remédio experimental funcionasse. Então se deu conta de</p><p>que, sem que percebesse, a esperança havia dado um jeito de se realocar em</p><p>seu coração depois de anos de deserção.</p><p>DIA 6</p><p>CELEBRE SEU CORPO</p><p>— Ah, Deus! Desculpe, Annie, esqueci que você viria.</p><p>Perplexa, Annie encarou Polly, que estava parada na porta da linda casa</p><p>de três andares que ela a convidara a visitar.</p><p>— Hum... devo ir embora?</p><p>— Não, não, entre, sinto muito mesmo. É só o Bob, sabe. Ele me deixa</p><p>esquecida.</p><p>Annie baixou os olhos para o piso, um mosaico de cerâmica azul e</p><p>branco. Será que Polly estava se dando conta? Talvez fosse um sintoma do</p><p>câncer.</p><p>— Hum... Sua família está em casa?</p><p>Annie sabia que aquela era a casa dos pais de Polly, embora não</p><p>soubesse por que ela estava morando ali. Polly não formara uma família</p><p>própria? Não tinha um parceiro ou parceira?</p><p>— Não, estão todos fora.</p><p>Graças a Deus.</p><p>— Hum, Polly...</p><p>— Quer chá ou alguma coisa?</p><p>— Não, obrigada, mas você...</p><p>Polly se virou, os pés descalços sobre a cerâmica.</p><p>— Eu o quê?</p><p>— Você está... bem... — Annie só conseguiu gesticular.</p><p>Polly baixou os olhos.</p><p>— Ah, esqueci completamente! Haha. Aposto que os vizinhos deram</p><p>uma boa espiada.</p><p>Então, embora percebesse que estava totalmente nua, ela não estava</p><p>planejando se vestir. Annie sentiu as costas tensas.</p><p>Mas, quando elas entraram na cozinha, ela percebeu o que estava</p><p>acontecendo, já que uma mulher mais velha, de cabelos brancos brilhantes,</p><p>estava lá segurando uma câmera fotográfica.</p><p>— Encomendei um retrato — explicou Polly. — Nua. É uma coisa que</p><p>eu sempre quis fazer, e minha aparência nunca será melhor do que esta.</p><p>Ela estava toda marcada pelo tratamento médico, com hematomas</p><p>parecendo impressões digitais feitas a tinta subindo por seus braços e</p><p>pernas. Também estava muito magra, cada veia e cada osso se destacando</p><p>sob a pele esticada como um papel fino.</p><p>Annie fora levada para um cômodo grande, bem iluminado, parte</p><p>estufa, parte cozinha, onde era possível ver um vislumbre do Tâmisa da</p><p>janela grande que dava para o jardim. Ela começou a sentir um aperto no</p><p>coração. Aquela era a cozinha dos seus sonhos, a que vira em revistas de</p><p>decoração, na qual imaginara seus filhos correndo descalços, roubando</p><p>frutas da fruteira, mostrando a ela os desenhos que tinham feito na escola,</p><p>indo de encontro a ela para beijá-la. Agora, ela nunca teria aquilo.</p><p>— Já terminamos, querida, se quiser se vestir — disse a artista, que</p><p>Polly havia apresentado a Annie como Theresa.</p><p>— Que pena. É realmente muito libertador ficar assim. — Polly abriu os</p><p>braços, fazendo os seios balançarem. Annie desviou os olhos. — Ei, Annie,</p><p>você deveria fazer também. Será um presente meu.</p><p>— Fazer o quê?</p><p>— Um retrato. Já que Theresa já está aqui, mesmo. Ela desenha a partir</p><p>de fotos, sabe.</p><p>Theresa estava assentindo para encorajá-la.</p><p>— Realmente não acho...</p><p>— Vamos, Annie! Para cruzar o oceano, você precisa perder a praia de</p><p>vista! Precisa</p><p>fazer, todo dia, alguma coisa que lhe dê medo!</p><p>Ah, Deus, essas frases motivacionais ainda seriam o fim de Annie.</p><p>— Não. Sinto muito. Realmente não consigo.</p><p>Ela conseguiu ouvir a ansiedade na própria voz, o que certamente era</p><p>um pouco patético diante do fato de que Polly estava morrendo, não? Polly</p><p>tivera agulhas enfiadas em sua espinha, câmeras espiando dentro dela, uma</p><p>sonda indo até seu cérebro; como Annie poderia ficar aborrecida com a</p><p>ideia de tirar a roupa na frente dos outros?</p><p>— Ah, vamos, Annie — incentivou Polly. — Qual é a pior coisa que</p><p>poderia acontecer?</p><p>— Eu simplesmente não consigo — repetiu Annie. — Sinto muito.</p><p>Fazia anos desde que ela se despira na frente de outra pessoa. Até no</p><p>hospital eram cuidadosos a esse respeito, deixando a pessoa atrás de um</p><p>biombo antes de fazer um exame e esperando até que ela estivesse coberta</p><p>com uma manta. A equipe do hospital era boa em ser discreta — com</p><p>lenços de papel e se distanciando enquanto a pessoa chora, inconsolável,</p><p>nos quartinhos lúgubres onde seu coração se partiu.</p><p>Polly pareceu triste.</p><p>— Está bem. Mas vai escolher as fotos comigo? Estou um pouco</p><p>nervosa.</p><p>— É claro que sim.</p><p>Polly estava com os ombros levemente inclinados sobre as fotos, como</p><p>se estivesse tentando proteger o corpo que já passara por tanta coisa. Era</p><p>possível ver tudo, os hematomas, a cicatriz da cânula na mão, as bolsas sob</p><p>os olhos.</p><p>A voz de Polly ficou embargada.</p><p>— Eu só... Gostaria de ter feito isso anos atrás, sabe? Sempre quis fazer,</p><p>era saudável, e era... ah, caramba, eu era gostosa. Posso dizer isso porque</p><p>tenho câncer. Eu era uma gostosa, e tudo o que fazia era resmungar sobre as</p><p>minhas celulites, as microveias nas minhas pernas e falar em aplicar Botox.</p><p>Eu gastava mais de trezentas libras em creme facial! O que eu estava</p><p>pensando? Deveria ter tirado uma foto nua todo santo dia. Deveria ter</p><p>coberto a minha casa com elas e andado pelada na rua. — Ela fungou. —</p><p>Que saco. Então é isso, né? O melhor que eu vou parecer daqui para a</p><p>frente. Só vou piorar, e depois vou morrer.</p><p>Annie olhou para Theresa, assustada com a súbita mudança de humor</p><p>de Polly, mas a artista estava guardando calmamente seu equipamento de</p><p>fotografia. Ela baixou os olhos para o próprio corpo, escondido embaixo de</p><p>um pulôver largo, e mordeu o lábio com força quando sentiu lágrimas</p><p>inesperadas ardendo em seus olhos. Não, ela não ia chorar por causa da</p><p>barriga flácida ou das coxas grossas, dos pés rachados com as unhas</p><p>amareladas que não viam uma pedicure desde o dia de seu casamento. O</p><p>corpo de Polly a deixara na mão da pior forma possível — o mínimo que</p><p>Annie podia fazer era não odiar seu próprio corpo saudável. Ela puxou o</p><p>cabelo (escorrido e oleoso) para trás.</p><p>— Muito bem, então. Talvez só algumas fotos.</p><p>— Lindo. Poderia projetar o peito mais para a frente? É uma pena esconder</p><p>esses seios fantásticos!</p><p>Annie enrubesceu e projetou o corpo para a frente. De algum modo, por</p><p>alguma razão insana (Polly), ela estava deitada em um sofá coberto por uma</p><p>manta fazendo uma pose ao estilo “desenhe-me como se eu fosse uma de</p><p>suas garotas francesas”, totalmente nua. Tudo estava à mostra, dos pelos</p><p>pubianos não depilados às marcas que o elástico da meia havia deixado ao</p><p>redor dos tornozelos. Só que, em vez de Leonardo DiCaprio a bordo do</p><p>Titanic, quem estava fotografando Annie era uma senhora de setenta anos.</p><p>Ela disse para Theresa:</p><p>— Há algum modo de você conseguir, bem... esta cicatriz. Meio que</p><p>escondê-la?</p><p>— Gosto de retratar as pessoas como elas são, Annie — respondeu</p><p>Theresa gentilmente. — Confie em mim. Sem retoques aqui. A cicatriz é de</p><p>uma cesariana?</p><p>— Hum... sim. — Ela evitou os olhos de Polly. — Gostaria de ter tido</p><p>tempo para fazer uma superdieta — apressou-se em dizer.</p><p>— Você está ótima, boba — comentou Polly. — Como uma pintura de</p><p>Rubens. Voluptuosa.</p><p>— Quem?</p><p>— Você conhece, o pintor? Está na National Gallery. Não importa.</p><p>Levarei você lá algum dia.</p><p>Annie enrubesceu de novo. Era tão ignorante.</p><p>— Voluptuosa não é só outra palavra para gorda?</p><p>— Preferiria me parecer com você do que comigo — declarou Polly,</p><p>estendendo uma perna ossuda.</p><p>— Mas você está ótima — arriscou Annie. — Tão esguia.</p><p>Polly deu uma risada.</p><p>— Ah, Annie, pelo amor de Deus. Estou esguia porque tenho câncer.</p><p>Estou morrendo. Ei, meu tumor parece maior com esta roupa?</p><p>— Desculpe, desculpe — disse Annie com um suspiro, sabendo que</p><p>falara besteira.</p><p>— Enfermeira! Essa quimioterapia é de baixa caloria? Produtos</p><p>químicos tóxicos engordam taaaanto!</p><p>Polly andou pelo cômodo, chutando alto as pernas magras e cheias de</p><p>hematomas.</p><p>Theresa continuava a fotografar tranquilamente.</p><p>— É a sua primeira experiência com câncer, querida? — perguntou para</p><p>Annie.</p><p>— Hum... sim.</p><p>— Então, não se preocupe. Esses altos e baixos são normais. Você</p><p>entende, são todas as emoções a atingindo como uma onda. Tentar viver ao</p><p>máximo ao mesmo tempo que se está morrendo. As antigas regras já não se</p><p>aplicam mais. É preciso apenas apertar o cinto de segurança para a jornada.</p><p>DIA 7</p><p>PASSE TEMPO COM A FAMÍLIA</p><p>Dim-da-lim-da-lim.</p><p>Até o som da campainha era animado. Annie estava parada de novo</p><p>diante da porta da casa dos pais de Polly, secando as mãos suadas de</p><p>nervoso no jeans. Ela passara séculos escolhendo uma garrafa de vinho,</p><p>confusa com a variedade de escolha no supermercado. Rioja. Sauvignon.</p><p>Chablis. No fim, ela acabou escolhendo um de oito libras considerando que,</p><p>por aquele preço, o vinho devia ser decente.</p><p>Annie não sabia bem por que tinha aceitado o convite casual de Polly,</p><p>que fora feito com a intenção de “compensar” pela surpresa de toda a nudez</p><p>da visita anterior.</p><p>— Apareça para o almoço de domingo amanhã. Meus pais gostam de</p><p>fazer dele um grande acontecimento.</p><p>Deve ter sido por educação, provavelmente. Ou pela ideia de passar</p><p>outro domingo sozinha. Eram sempre os dias mais difíceis — domingo era</p><p>o dia em que ela e Mike costumavam almoçar no pub, ou dia de levar Jacob</p><p>ao parque.</p><p>A porta foi aberta por um rapaz de óculos de armação escura e cenho</p><p>franzido.</p><p>— Sim? Você não é uma dessas carolas chatas querendo falar de Deus,</p><p>é?</p><p>— Não, sou... hum... amiga da Polly? — Annie achou presunçoso usar</p><p>essa palavra.</p><p>— Ah. Devo pegar isso? — Ele examinou a garrafa, segurando-a</p><p>afastada do corpo. — Humm. Ok.</p><p>— Essa é a Annie? — Uma mulher em um vestido envelope roxo</p><p>apareceu no corredor. Era chique e esguia, com os cabelos chanel grisalhos</p><p>e óculos pendurados em uma corrente ao redor do pescoço. Ela colocou os</p><p>óculos para ver Annie melhor. — Querida. Estamos tão felizes por Polly ter</p><p>uma nova amiga. Você é corajosa.</p><p>Annie não gostou do modo como aquilo soou. Não estava disposta a</p><p>fazer nada corajoso. A mãe de Polly também olhou o vinho.</p><p>— Que gentil! Meu favorito.</p><p>— Chardonnay? — disse o rapaz, em um tom cético. — Mesmo?</p><p>— Quieto, você. Li uma matéria no caderno de gastronomia do The</p><p>Guardian, na semana passada, que comentava que o Chardonnay está</p><p>voltando à cena.</p><p>Annie ficou olhando de um para o outro. Será que levara o vinho</p><p>errado?</p><p>— Sou Valerie, meu bem, e este rapaz terrível é George, meu filho.</p><p>Georgie, pegue alguma coisa para Annie beber. Temos um Sancerre, um</p><p>Malbec, ou podemos até arrumar um Riesling, talvez?</p><p>Annie não tinha ideia do que ela estava falando.</p><p>— Hum... o que estiver aberto está bom para mim, obrigada.</p><p>Valerie a levou para dentro — seu perfume era exótico e almiscarado, e</p><p>fez Annie pensar em pomares de laranjas e luas no deserto. A mãe de Annie</p><p>sempre cheirara a cozinha e a Halls. Agora só tinha cheiro de hospital.</p><p>— Você não deve dar atenção a George — sussurrou Valerie no ouvido</p><p>de Annie. — Ele é superprotetor. Esse negócio horrível trouxe todo tipo de</p><p>pessoas à nossa porta. Turistas do luto, você sabe. É horroroso o modo</p><p>como querem ficar olhando embasbacados para Polly doente.</p><p>Será que a família de Polly achava que ela também era uma turista do</p><p>luto? Annie olhou para trás em direção à porta — se ao menos tivesse</p><p>mudado de ideia e não ido. Aquilo ia ser um desastre, ela podia sentir.</p><p>Polly estava empoleirada</p><p>no braço de um sofá com estampa indiana</p><p>rosa, conversando com um senhor usando calça social e um pulôver azul-</p><p>marinho.</p><p>— Veja bem, o problema com o euro é... — Ele tinha uma voz ressoante</p><p>e estava balançando uma gigante taça de vinho tinto.</p><p>Polly viu Annie e se levantou de um pulo. Ela estava de macacão, os</p><p>cabelos presos para trás com uma echarpe vermelha. Annie se sentiu sem</p><p>graça em seu jeans e casaco com capuz.</p><p>— Annie! Graças a Deus que você veio me resgatar dessa discussão</p><p>infernal sobre finanças. Não me importo com isso, pai! Não me importava</p><p>nem quando estaria por aqui para ver as consequências.</p><p>Annie ficou tensa, mas o pai de Polly só estalou a língua, como se a</p><p>filha tivesse feito uma piada de mau gosto.</p><p>— Goste você ou não, Poll, o resultado do referendo tem um impacto</p><p>muito maior no futuro do que o tipo de sapato que você vai usar.</p><p>— Mas os sapatos me trazem alegria. E levam alegria a outras pessoas.</p><p>Ela esticou um dos pés, calçado em uma sapatilha azul-petróleo</p><p>bordada, os fios dourados cintilando ao sol. Annie dobrou ligeiramente os</p><p>joelhos para esconder o Converse surrado que estava usando.</p><p>— Roger Leonard — bradou o homem, apertando com força a mão de</p><p>Annie. — E você, Annie, tem alguma ideia acalorada sobre o estado da</p><p>União Europeia, ou mesmo sobre os calçados da minha filha?</p><p>— Gosto de sapatos — Annie se arriscou a dizer.</p><p>— Mais uma. — Roger tomou outro gole de vinho. — Pelo que entendi,</p><p>você conheceu Polly no hospital?</p><p>— Eles são maravilhosos lá — disse Valerie, que estava mexendo</p><p>alguma coisa no fogão. — Quando P ficou mal, achamos que teríamos que</p><p>procurar um hospital privado... já estávamos prontos para gastar uma</p><p>fortuna, não é mesmo, querido? Mas ela disse que não, que enfrentaria o</p><p>serviço de saúde pública. Nossa guerreira. E eles têm sido maravilhosos.</p><p>Annie assentiu com a cabeça durante todo o discurso. Será que eles se</p><p>davam conta de que outras pessoas não tinham opção a não ser “enfrentar”?</p><p>Ela não fazia ideia de como pagaria por uma instituição quando a mãe</p><p>saísse do hospital.</p><p>Polly se sentou à mesa e inclinou a cadeira, que vacilou sobre três pés.</p><p>— Especialmente o dr. McRabugento. Mamãe o adora.</p><p>— Ele é terrivelmente sexy. Aquele sotaque.</p><p>— Ele parece alguém usando uma fantasia do Chewbacca.</p><p>Valerie disse:</p><p>— Ah, P, você está exagerando. Ele é másculo, só isso.</p><p>Annie meio que gostava do jeito como dr. Max era peludo. Fazia-o</p><p>parecer aconchegante, como um amigável urso gigante.</p><p>Enquanto todos se acomodavam à mesa, Annie se perguntou novamente</p><p>sobre a situação doméstica de Polly. Por que ela morava com os pais? Com</p><p>certeza, tinha a própria casa antes de ficar doente. Era possível que alguém</p><p>tão deslumbrante quanto ela fosse solteira? Annie imaginava que câncer</p><p>terminal fosse uma certa barreira para namoros.</p><p>— Aqui está — disse Valerie, pousando uma travessa de cerâmica</p><p>fumegante na mesa.</p><p>George resmungou.</p><p>— Santo Deus, mãe, cuscuz de novo, não! Você sabe que estou fazendo</p><p>uma dieta low carb.</p><p>— Já é ruim o bastante sua irmã estar tão magra, não é necessário que</p><p>você também fique esquelético.</p><p>— Eu adoraria ficar esquelético. Estou com bastante inveja da magreza</p><p>dela. Vou comer apenas frango.</p><p>Então aquele era o cardápio. Annie estava se esforçando par tentar</p><p>identificar o conteúdo da comida, uma espécie de ensopado amarelo com</p><p>um aroma apimentado. Ela deixou Roger despejar um pouco em seu prato.</p><p>— Valerie adora o marroquino dela.</p><p>Annie remexeu um pouco a mistura, tentando encontrar algo</p><p>comestível. Aquilo era tomate, pensou. Hesitante, ela colocou o pedaço na</p><p>boca e na mesma hora ficou muito vermelha e deixou escapar um gritinho.</p><p>Não era tomate.</p><p>George deu um sorrisinho.</p><p>— A mamãe gosta de temperar os tagines dela com pimenta-calabresa.</p><p>Tenha cuidado.</p><p>— Pegue água para ela, Georgie — disse Valerie.</p><p>Annie tomou a água, sentindo-se constrangida. Todos os outros estavam</p><p>perfeitamente à vontade, comendo o ensopado muito apimentado, tomando</p><p>vinhos com nomes diferentes e complicados, discutindo assuntos que</p><p>saíram nos jornais do dia. Ela tentou juntar as peças para descobrir o que</p><p>cada um deles fazia.</p><p>George, ela percebeu, era um aspirante a ator que gostava de falar mal</p><p>de todas as estrelas que apareciam nas revistas de celebridade.</p><p>— Olha como ele é careca. E aplicou Botox.</p><p>Roger, ao que parecia, trabalhava no centro financeiro de Londres, e</p><p>Valerie tinha sido diretora de uma escola para meninas e agora estava</p><p>aposentada. A mesa estava coberta de jornais e revistas, e até de</p><p>publicações acadêmicas com títulos como Avanços em oncologia. Enquanto</p><p>comiam, abusavam dos jargões médicos.</p><p>— Realmente achamos que a P se beneficiaria de terapias alternativas</p><p>— comentou Valerie, comendo com elegância. — Há muitos estudos atuais</p><p>sobre acupuntura, e ervas chinesas parecem ser bastante eficazes. Também</p><p>vou a uma palestra sobre homeopatia na semana que vem.</p><p>George resmungou alto.</p><p>— Por favor, mãe.</p><p>— Qual é o problema? Há muitas evidências do poder do pensamento</p><p>positivo. Que mal pode fazer tentar outras coisas?</p><p>— O McRabugento diz que isso é tudo bobagem. — Mais uma vez,</p><p>Polly estava comendo apenas algumas garfadas de comida.</p><p>— Sim, bem, não é interessante para o hospital apoiar terapias</p><p>alternativas, mas achamos que há muita chance. Não é, Roger, querido?</p><p>George revirou os olhos. Roger estava com os olhos fixos na comida e</p><p>disse apenas:</p><p>— Ela é uma guerreira, não é, P? Você vai lutar contra essa coisa.</p><p>Annie estava confusa — O dr. Max lhe dissera que não havia esperança</p><p>para Polly. E, como não tinha nada a acrescentar à conversa, ela comeu</p><p>contornando a pimenta, sentindo-se sem graça. Por que Polly a convidara?</p><p>Ela poderia estar na cama, assistindo a uma temporada inteira de Grey’s</p><p>Anatomy, enquanto ouvia Costas conversar em voz alta no quarto ao lado.</p><p>Ele sempre ligava para a mãe aos domingos. Annie se viu subitamente</p><p>dominada por uma vontade enorme de poder fazer o mesmo. Só queria que</p><p>a mãe soubesse quem ela era, que conversasse sobre sua vida, que falassem</p><p>sobre o que aconteceu nas novelas naquela semana. Era pedir tão pouco.</p><p>George afastou o prato.</p><p>— Certo, estou indo.</p><p>— Para onde, George? — perguntou Polly em um tom inocente.</p><p>Ele lançou para ela um olhar que Annie não entendeu.</p><p>— Para a academia.</p><p>— Ah, sim, alguém especial vai estar lá?</p><p>— Ei, Poll — retrucou George —, falando em especial, algum dia você</p><p>vai retornar as ligações do Tom? Ele voltou a me mandar mensagens</p><p>perguntando sobre você.</p><p>Quem era Tom? Valerie e Roger trocaram um rápido olhar apavorado,</p><p>mas Polly ignorou o comentário e continuou a brincar com a comida.</p><p>— Divirta-se com todos aqueles supinos, irmão.</p><p>— Mas você nem comeu a sobremesa! — lamentou Valerie. — Fiz</p><p>clafoutis!</p><p>— Hum, nada de carboidratos ou açúcar, lembra?</p><p>— Mas Georgie...</p><p>— Agora não, mãe. Vou me atrasar. — Ele vestiu um casaco de couro.</p><p>— Vamos ver a Annie de novo?</p><p>Annie enrubesceu.</p><p>— Não seja tão grosseiro, G — reclamou Polly. — Ela está escutando</p><p>você.</p><p>Roger ignorou a tensão e despejou mais vinho na taça de Annie antes</p><p>que ela tivesse tempo de recusar. Annie mal estava conseguindo comer...</p><p>naquele ritmo, acabaria bêbada.</p><p>Valerie estava olhando para a frente, os olhos subitamente sem</p><p>expressão.</p><p>— Está tudo bem, mãe? — perguntou Polly.</p><p>— Acho que vou tirar um cochilo, querida. — E virou-se para Annie</p><p>com um sorriso animado. — Tenho tanta sorte de ter meus dois filhos em</p><p>casa comigo! Você é próxima dos seus pais, Annie?</p><p>— Minha mãe não está muito bem no momento. Ela está no hospital.</p><p>— Sinto muito. E o seu pai?</p><p>Annie sentiu os olhos de Polly voltados para ela.</p><p>— Bem, ele... não faz exatamente parte da minha vida.</p><p>— Ah, que pena. — Valerie pareceu sem expressão de novo. — Talvez</p><p>você possa cuidar da louça, Roger, querido. Acho que vou...</p><p>— Hummm? — Roger estava olhando para o celular por cima dos</p><p>óculos. O aparelho vibrou de repente, sobressaltando a todos.</p><p>— Realmente gostaria que você deixasse essa coisa de lado. — Valerie</p><p>elevou o tom de voz, mas logo o baixou. — Este é um momento de família.</p><p>Família, Roger. — Ela se levantou arrastando a cadeira. — Você pode</p><p>cuidar da louça. Vou me deitar.</p><p>Polly também se levantou, pegando uma fatia do tal clafoutis, que era</p><p>uma espécie de torta de creme.</p><p>— Venha. Vou te mostrar o jardim, Annie.</p><p>Annie foi atrás dela, consciente de que alguma tensão subjacente e com</p><p>uma vaga preocupação de que pudesse ter alguma coisa a ver com ela.</p><p>— Desculpe pelo George. Ele está concorrendo a um Oscar pelo papel do</p><p>Irmão Mais Babaca, eu acho.</p><p>— Tudo bem. — Annie ainda estava tentando assimilar o jardim. O</p><p>apartamento inteiro dela caberia duas vezes ali dentro. Ele descia por uma</p><p>colina, cheio de cantinhos verdes e peças de mobília de ferro fundido,</p><p>árvores frutíferas e pequenas estátuas. — Você cresceu aqui, então?</p><p>Polly olhou ao redor, desinteressada.</p><p>— Sim. Mas não imaginei que voltaria a morar aqui aos trinta e cinco</p><p>anos. Imagino que você não tenha crescido muito longe.</p><p>A uns quatro quilômetros, mas eram mundos de distância.</p><p>— Aquele é o Shard?</p><p>Ela podia ver o arranha-céu em formato de pirâmide se elevando no</p><p>espaço entre as árvores, do outro lado da faixa larga e cinza do Tâmisa.</p><p>Annie sentiu uma súbita pontada de inveja de novo. Imagine se ela tivesse</p><p>crescido ali, com aquele jardim, com as lojas e cafés de Greenwich logo na</p><p>esquina, e não em um conjunto habitacional em Lewisham, fazendo o</p><p>possível para não engravidar antes de terminar a escola.</p><p>— Deveríamos subir lá — anunciou Polly. Ela deu uma corrida e se</p><p>sentou de um pulo em um balanço de madeira que estava preso ao galho de</p><p>uma macieira. Parecia uma foto de revista, sua roupa cuidadosamente</p><p>escolhida, o jardim desordenado atrás dela e a vista da cidade do outro lado</p><p>do rio. A foto de uma vida perfeita, digna de ser postada no Instagram.</p><p>— Onde, no Shard?</p><p>— Tenho ingressos que comprei há um tempo para mim, o George e o</p><p>namorado dele, e... enfim, ele terminou com o namorado, graças a Deus,</p><p>porque o Caleb é terrível, e no fim nunca usamos os ingressos. Topa? Outra</p><p>coisa feliz? Você pode levar seu colega de apartamento também.</p><p>— O Costas? — Annie já aguentava bastante do rapaz, cantando Mariah</p><p>Carey no banheiro e derretendo queijo em cima de tudo. — Acho que posso</p><p>ver se ele está livre.</p><p>— O George acha cafona. — Ela sorriu. — Implicar com o meu irmão é</p><p>outra coisa que me deixa feliz, tenho que confessar. Você tem irmãos,</p><p>Annie?</p><p>— Não que eu saiba — ela disse. Era possível que ela tivesse vários</p><p>meios-irmãos, é claro.</p><p>— Ah, é, você disse que seu pai não faz parte da sua vida. Onde ele</p><p>está?</p><p>— Não faço ideia. Até onde eu sei, sumiu quando eu tinha dois dias de</p><p>vida. Não conseguiu dar conta desse negócio de família.</p><p>O pai deixara Maureen Clarke, de vinte e quatro anos e sem um tostão</p><p>no bolso, sozinha com a filha recém-nascida, em um apartamento</p><p>deprimente em um conjunto habitacional, sem entender direito o que tinha</p><p>acontecido com a vida dela. Era tudo tão diferente da família de Polly, com</p><p>o pai bem-sucedido e a mãe elegante, o irmão confiante e inteligente,</p><p>aquela casa linda como um bolo de casamento maravilhoso, o quintal cheio</p><p>de árvores frutíferas.</p><p>— Que difícil...</p><p>— Na verdade, não. Afinal, não se pode sentir falta do que nunca se</p><p>teve. Eu raramente penso nele.</p><p>Polly fez de novo a expressão de quando solta alguma frase inspiradora.</p><p>— A vida é curta demais para arrependimentos, Annie. Talvez você</p><p>devesse tentar encontrá-lo.</p><p>— Eu fiz o negócio dos dias felizes — disse Annie, mudando de</p><p>assunto com firmeza. — Anotei algumas coisas, pelo menos. — Nadar,</p><p>caminhar, visitar a mãe... não parecia muito. — Como está indo a sua lista?</p><p>Polly não respondeu, e Annie viu que ela havia parado de se balançar e</p><p>seu rosto estava pálido.</p><p>— Você está bem?</p><p>— É só... ah, droga. Eu não deveria ter comido aquela sobremesa.</p><p>Então, Polly se inclinou para a frente de joelhos e vomitou na grama.</p><p>Annie correu para ela.</p><p>— Polly! Você está bem?</p><p>Polly se sentou, trêmula, limpando a boca.</p><p>— É só o Bob. Acontece o tempo todo. Lamento que você tenha visto.</p><p>Annie a ajudou a se levantar e percebeu que Polly tremia muito.</p><p>— Por que não entra e se deita? Posso sair sozinha.</p><p>Era fácil esquecer quão doente Polly estava, mas por baixo de toda</p><p>aquela alegria não havia como escapar do fato de que o tumor a estava</p><p>consumindo, um pouco a cada dia.</p><p>DIA 8</p><p>CAMINHE ATÉ O TRABALHO</p><p>Não. Não, por favor. Ele não pode estar. Ele não pode estar...</p><p>Annie se sentou na cama, ofegante, o corpo pegajoso de suar frio.</p><p>Aquele sonho de novo. Daquela manhã, em sua antiga casa. Uma faixa de</p><p>luz do sol no piso. O breve segundo de felicidade antes que tudo se</p><p>estilhaçasse. Os passos de Mike no corredor, e então sua voz apavorada</p><p>gritando para ela: Annie! Annie, chame uma ambulância!</p><p>Mas era só um sonho. Não era real, não naquele momento. Annie</p><p>conseguiu controlar a respiração e voltou lentamente ao mundo. Segunda-</p><p>feira de manhã. Ela se sentiu extremamente tentada a volta a dormir, mas se</p><p>arrastou para fora da cama e ouviu com cuidado atrás da porta para se</p><p>certificar de que Costas não estava. Era irracional, mas esbarrar com ele</p><p>antes de Annie tirar o pijama poderia fazê-la querer explodir de raiva. Ela já</p><p>tivera sua linda casinha, com quarto de hóspedes, um banco diante da janela</p><p>e um jardim cheio de flores, e agora estava mais uma vez dividindo</p><p>apartamento com um desconhecido. Annie tomou banho no chuveiro</p><p>mofado, escovou os dentes diante do espelho manchado de pasta de dente e</p><p>se vestiu com a roupa preta de sempre. O sonho ainda se agarrava a ela</p><p>como teia de aranha, deixando uma nota grave de pânico em sua respiração</p><p>que Annie sabia não fazer sentido. Tudo acontecera anos antes. Já era</p><p>muito, muito tarde para entrar em pânico.</p><p>Como acordara cedo, Annie resolveu ir caminhando para o trabalho. No</p><p>último momento, ao perceber o quanto estava frio quando abriu a porta, ela</p><p>quase desistiu da ideia. Mas pensou no ônibus cheio e se lembrou de que</p><p>precisaria ter alguma coisa para anotar em seu caderno de coisas felizes.</p><p>Então foi caminhando. Pé ante pé, afastando-se do passado até sua</p><p>respiração acelerar, agora por causa do exercício, e não do sonho, e ela</p><p>sentir a cabeça desanuviada. A caminhada talvez não fosse pelo caminho</p><p>mais lindo do mundo, mas o sol da manhã projetava um brilho rosa sobre o</p><p>concreto e, quando chegou ao escritório, Annie estava ligeiramente sem</p><p>fôlego e a pele cintilava. Chegou cedo, na verdade, já que não ficara presa</p><p>no trânsito dentro do ônibus. Sharon, agradável como sempre, comentou</p><p>que o rosto dela estava “todo vermelho e suado”, mas Annie não se</p><p>importou.</p><p>DIA 9</p><p>ANOTE O QUE PENSA</p><p>Annie mordeu a ponta da caneta enquanto olhava a página em branco do</p><p>caderno. Do outro lado da parede do quarto, podia ouvir Costas falando alto</p><p>ao telefone em grego. Outra pessoa que podia simplesmente ligar para a</p><p>mãe para conversar sempre que sentia vontade, sem se preocupar se a mãe o</p><p>reconheceria. Ela tentou bloquear o barulho.</p><p>Até agora, em apenas uma semana, ela fizera uma nova amiga — ou</p><p>uma nova o que quer que fosse Polly. Ficara nua diante de outras pessoas</p><p>pela primeira vez em dois anos. Ela se exercitara. Aproveitara o horário de</p><p>almoço. Não era muito, de forma geral — não dançara na chuva nem fizera</p><p>a Trilha Inca —, mas era mais do que havia feito em muito, muito tempo.</p><p>Mas o que poderia fazer hoje, amanhã e no dia seguinte? Quando ouviu um</p><p>barulho alto de coisas caindo na cozinha, Annie abriu a porta do quarto e</p><p>viu Costas lavando, arrumando e espalhando água para todo lado.</p><p>— Annie, oi, lavei tudo como você pediu.</p><p>— Ótimo. Obrigada. Hum... — Ela poderia ter pedido a ele para não</p><p>espalhar água por toda parte, mas, em vez disso, falou: — Escute, quer</p><p>subir no Shard comigo?</p><p>— O prédio alto?</p><p>— Isso. Minha amiga tem ingressos. Tem uma bela vista lá de cima,</p><p>algo assim.</p><p>— Eu adoraria, Annie! Obrigado! Obrigado mesmo!</p><p>— Não é assim tão empolgante — Annie murmurou e se recolheu</p><p>novamente ao quarto.</p><p>Ela havia quebrado a regra de não conversar com ele, portanto teria que</p><p>ficar a noite toda no quarto, se não quisesse</p><p>ouvir tudo sobre a mãe dele</p><p>injetando uma seringa no ouvido, ou sobre o negócio de cabras do primo</p><p>Andre em Faliraki. Mas ao menos ela o convidara, e isso a fizera se sentir</p><p>vagamente como uma pessoa um pouco melhor. Talvez aquilo servisse</p><p>como uma coisa feliz para aquele dia.</p><p>DIA 10</p><p>FAÇA CHÁ PARA O PESSOAL DO ESCRITÓRIO</p><p>— Você colocou açúcar? — Sharon farejou desconfiada a xícara que Annie</p><p>lhe ofereceu.</p><p>— Dois cubos. É isso?</p><p>— Eu agora só tomo com um. Estou de dieta.</p><p>— Certo... o papel na cozinha ainda diz dois.</p><p>— Tá bom, acho que vou beber assim mesmo.</p><p>Annie não se deixou irritar. Ela entregou um café para Syed, o</p><p>funcionário hipster que cuidava das redes sociais, que estava usando um</p><p>pulôver de críquete e calça amarela de veludo cotelê. Ele tirou os fones</p><p>gigantes da orelha e Annie conseguiu ouvir a música aos berros.</p><p>— Que demais! Obrigado, Annie. — Polegar para cima.</p><p>— Chá verde para você, Fee.</p><p>Annie pousou a xícara na mesa da assistente administrativa, que</p><p>levantou os olhos surpresa.</p><p>— Ah! Obrigada.</p><p>Annie reparou que Fee não parecia bem (embora soubesse que o</p><p>pensamento era um tanto hipócrita). Os lábios dela estavam rachados e as</p><p>mãos tremeram quando ela levantou a xícara.</p><p>— Hum... está tudo bem?</p><p>Annie torceu para que aquilo não desse início a uma desconfortável</p><p>conversa sobre emoções. Naquele escritório só se costumava conversar</p><p>sobre TV, bebidas, falhas no sistema de TI e pouca coisa além disso.</p><p>— Ah! Sim, sim. Tudo bem. Tudo ótimo.</p><p>Annie se sentou diante da própria mesa com a caneca que Polly havia</p><p>comprado para ela. Diferente das outras no escritório, a dela não estava</p><p>irreparavelmente manchada de tanino. Ela aproveitou para regar a planta e</p><p>passou o dedo pela base do computador. Nada de poeira. E, embora ainda</p><p>estivesse enfiada no escritório e detestasse praticamente cada segundo, ela</p><p>descobriu que ter uma mesa limpa e não se sentir uma completa antissocial</p><p>fazia com que odiasse a situação um pouquinho menos.</p><p>DIA 11</p><p>DÊ FLORES A ALGUÉM</p><p>— São lindas! Flores-de-pavão!</p><p>— São peônias, mãe — disse Annie com gentileza. — Gosta delas?</p><p>— São sempre tão lindas, querida.</p><p>Annie sentiu a garganta apertada. A mãe sempre amou flores,</p><p>economizava para conseguir comprar um buquê no mercado no dia do</p><p>pagamento. Quando Annie levava Jacob para visitá-la, toda sexta-feira,</p><p>sempre lhe dava um grande buquê de presente, normalmente de flores</p><p>colhidas no próprio jardim. Já não fazia isso há muito tempo.</p><p>Maureen viu o dr. Quarani atravessando o ambiente, muito limpo e</p><p>engomado em seu jaleco branco.</p><p>— Veja, doutor. Essa moça gentil me trouxe flores-de-pavão!</p><p>Ele não sorriu.</p><p>— Preciso medir a sua pulsação, sra. Clarke.</p><p>— Ela parece um pouco melhor — arriscou Annie enquanto ele</p><p>levantava o pulso fino de sua mãe. — Mais calma, pelo menos.</p><p>— Sim, o humor dela se estabilizou um pouco. Como eu disse, é</p><p>importante não criar grandes expectativas.</p><p>— Não tenho.</p><p>Ainda assim, apesar daquele aviso, apesar de si mesma, apesar das</p><p>marcas irreparáveis deixadas por dois anos de infelicidade, Annie sentiu a</p><p>esperança aumentar timidamente. Como uma flor murcha posta na água.</p><p>Ela precisava ser cuidadosa com isso. Sabia muito bem que não se deve</p><p>confiar na esperança.</p><p>— Annie!</p><p>Quando estava saindo do hospital, ela se virou ao ouvir seu nome ser</p><p>chamado. Uma voz masculina.</p><p>— Ah! — ela exclamou. — O que você está...? Você está bem?</p><p>Era George, o irmão de Polly. Estava sentado no pronto-socorro</p><p>segurando um curativo no rosto. Ele fez uma careta.</p><p>— Não é nada. Bati a cabeça quando estava na academia. O que você</p><p>está fazendo aqui?</p><p>— Vim ver a minha mãe. Você sabe, ela está doente.</p><p>Annie o encarou. Havia uma mancha de sangue em sua blusa branca.</p><p>Ele a encarou de volta, examinando-a com frieza, claramente reparando</p><p>na bolsa barata e surrada, nos cabelos desarrumados, na calça de poliéster</p><p>que a fazia suar.</p><p>— Escute, Annie. Minha irmã está muito doente.</p><p>— Eu sei.</p><p>— Ela também é uma espécie de... imã. Coleciona pessoas. Pessoas</p><p>abandonadas e desgarradas. — Annie se eriçou. — Polly sempre foi assim,</p><p>mas, agora que está doente, ficou pior. Essas pessoas se agarram a ela.</p><p>Minha irmã acha que pode muito bem dar tudo o que tem, como tem “três</p><p>meses de vida”. — A expressão dele agora era severa. — Não temos certeza</p><p>disso, está bem? Às vezes, as pessoas vivem por anos com um câncer.</p><p>Annie estava tão cansada. Cansada daquele hospital, cansada da mãe</p><p>não a reconhecer, cansada do apartamentinho minúsculo em que morava,</p><p>cansada da vida.</p><p>— Escute. Eu não “me agarro” à Polly. Foi ela quem literalmente</p><p>apareceu na minha porta. Mas ela foi gentil comigo e me pediu para ajudá-</p><p>la com o projeto dos dias felizes, e... bem, não vejo como posso recusar.</p><p>Está certo?</p><p>Ele assentiu lentamente.</p><p>— Tudo bem. Acredito em você.</p><p>— Eu não estava perguntando se acreditava. Quem tentaria extorquir</p><p>uma mulher com câncer, pelo amor de Deus?</p><p>— Eu teria feito a mesma pergunta antes de tudo isso. Francamente,</p><p>Annie, já tivemos que impedi-la de dar o próprio dinheiro tantas vezes. A</p><p>Polly não acredita que as pessoas mentem. Até as amigas dela... uma garota</p><p>que frequentou a escola com a Polly tentou fazê-la investir em um negócio</p><p>de joias que basicamente não existe, e um de nossos primos quis doações</p><p>para uma instituição de caridade que no fim era apenas um patrocínio para o</p><p>safári que ele queria fazer na África, e, Deus, as pessoas são nojentas, sabe?</p><p>— Você não precisa me dizer isso — falou Annie.</p><p>— Certo. Bom, sinto muito se fui um pouco...</p><p>— Rude? Antipático? — Ela estava cansada demais para ser educada.</p><p>Para sua surpresa, George sorriu.</p><p>— Eu estava mais para friamente enraivecido, como uma beldade</p><p>sulista ofendida. Deveria ter jogado uma bebida em seu rosto.</p><p>Ele ajeitou o curativo com cuidado, o olho esquerdo estava roxo.</p><p>Annie se encolheu com compaixão.</p><p>— Deve estar doendo.</p><p>— Está tudo bem. Mas significa que não farei testes de elenco por</p><p>algum tempo. Não que eu esteja exatamente inundado de convites. —</p><p>George levantou os olhos para ela. — Escute. Você poderia, por favor, não</p><p>mencionar isso a minha irmã? Não quero que ela se preocupe. Foi só um</p><p>acidente besta.</p><p>Annie deu de ombros.</p><p>— Claro.</p><p>— Obrigado. Desculpe eu ter sido um babaca. É que ando com tanta</p><p>raiva, sabe? Tipo, o tempo todo. Deveria estar triste e sendo prestativo, mas</p><p>só sinto uma raiva imensa por tudo o que está acontecendo com a Polly.</p><p>— Eu compreendo — falou Annie, que compreendia muito bem a</p><p>sensação.</p><p>— Lamento de verdade. Nos vemos naquele passeio supercafona ao</p><p>Shard?</p><p>— Acho que sim. Bem, tchau, então. — Ela parou na porta. — Fatias de</p><p>pepino — disse.</p><p>— O quê? — George estava com os olhos fechados.</p><p>— Ajuda a desinchar. Congele as fatias de pepino, depois coloque sobre</p><p>o olho. Só uma dica.</p><p>Era algo que se descobria quando se passava a maior parte do tempo</p><p>chorando.</p><p>No ponto de ônibus, Annie viu que o sem-teto — Jonny — estava lá de</p><p>novo, lendo um livro sem a capa. Annie acenou para ele, hesitante, e ficou</p><p>constrangida quando o homem sorriu para ela. Os dentes dele estavam em</p><p>péssimo estado. De que adiantava acenar se ela não podia fazer nada para</p><p>ajudá-lo? O ônibus chegou e Annie entrou com uma ligeira sensação de</p><p>fracasso, mas sem saber por quê.</p><p>DIA 12</p><p>ARRUME</p><p>Ela estava nua. Cada parte sua à mostra, despida, exposta para que o mundo</p><p>todo pudesse ver.</p><p>Annie se sentou no sofá de casa com uma xícara de chá esfriando na sua</p><p>frente. Seu retrato nua estava em cima da cadeira, o papel pardo que o</p><p>embrulhara pendendo dos lados como pregas de um vestido de noite. Estava</p><p>esperando por Annie quando ela chegou em casa.</p><p>Por um longo tempo, ela ficou apenas olhando para ele. Era ela,</p><p>inequivocamente ela — a cicatriz na barriga, a verruga no ombro —, mas</p><p>ao mesmo tempo não era. De algum modo, as curvas e dobras em seu</p><p>corpo, que provocavam tantas lágrimas de raiva quando ela se olhava no</p><p>espelho, haviam sido transformadas em algo diferente.</p><p>Aquela era ela, Annie Hebden, ex-mulher de Mike, ex-amiga de Jane,</p><p>mãe de Jacob. Isso ela nunca deixaria de ser. Filha</p><p>de Maureen — outra</p><p>coisa que sempre seria, não importava o quanto sua mãe desaparecesse na</p><p>escuridão. Não havia ninguém como ela em todo o planeta, ninguém que já</p><p>vivera ou ainda fosse viver. Não havia uma única pessoa com suas</p><p>impressões digitais, com suas lembranças, com o seu sangue pulsando nas</p><p>veias. Ela era ela mesma e estava viva naquele momento, apesar de tudo.</p><p>Aquele retrato era prova disso.</p><p>Annie ficou de pé, inquieta. O que poderia fazer? Havia deixado os</p><p>amigos se afastarem, recusara os convites dos colegas, parara de sair, de</p><p>cuidar de plantas, de deixar a casa bonita e até de lavar o cabelo. Passava</p><p>todas as noites em casa, com a TV e o açúcar como companhia. Estava na</p><p>hora de parar. Na verdade, estava na hora de começar.</p><p>Em um surto de atividade, Annie arrancou a manta esfarrapada do sofá,</p><p>expondo o couro falso rasgado sob ela. Uma chuva de cascas de pistache</p><p>caiu no chão. Maldito Costas. A seguir, foi a capa do sofá, então o tapete</p><p>velho do chão. Tudo cheio de migalhas e manchado de ketchup e chá.</p><p>Annie enfiou tudo na máquina de lavar. E lhe ocorreu que aquilo era uma</p><p>pequena coisa feliz — o som de roupas girando na lavadora, ficando</p><p>limpas. Fez com que se lembrasse das segundas-feiras depois da aula,</p><p>quando voltava para casa e encontrava a lavadora ligada e a mãe assistindo</p><p>a Countdown com uma xícara de chá e um pacote de biscoitos de chocolate</p><p>com laranja. Então elas se sentavam juntas, tentavam resolver os jogos de</p><p>palavra do programa no verso de uma revista. Sua mãe, que adorava jogos</p><p>de palavras, sempre achava a solução, arrancando palavras do fundo da</p><p>memória. Inflexivelmente. Vivaz. E agora a mãe muitas vezes nem se</p><p>lembrava do próprio nome...</p><p>Tentando manter-se um passo à frente da tristeza, Annie escancarou a</p><p>geladeira e a despensa, recolhendo a comida fora de validade, os pimentões</p><p>com mofo se projetando como barbas de hipsters, as refeições prontas que</p><p>tinham virado gelo no congelador, os montes de arroz e massa que se</p><p>derramavam pelas prateleiras. Ela rapidamente encheu um saco de lixo</p><p>enorme. Então, começou a fazer uma lista. Lavar as janelas. Arrumar outra</p><p>capa para o sofá. Ela tirou todas as xícaras dos armários e as limpou por</p><p>dentro. Polly tinha razão, seu gosto por louças era realmente péssimo.</p><p>Annie encheu outro saco de lixo para doação, colocando nele toda a louça,</p><p>exceto a bela porcelana de sua mãe. Ela acrescentou à lista: comprar</p><p>colheres novas. E um fatiador de legumes em espiral. Pedir para o locador</p><p>pintar as paredes com uma cor que não pareça cocô de cachorro.</p><p>A seguir, o banheiro. Ela olhou com nojo para a velha cortina mofada</p><p>do boxe. Compraria uma nova, em cores vivas, que não se enrolasse nas</p><p>pernas de quem tomava banho como um fantasma alienígena gosmento.</p><p>Também compraria um tapetinho novo para o banheiro e toalhas bonitas.</p><p>Annie jogou fora batons já secos, máscara de cílios empelotadas, frascos de</p><p>sabonete líquido com quase nada no fundo. Deus, era bolor. Como deixara</p><p>as coisas chegarem àquele ponto?</p><p>Quando Costas voltou tarde de seu turno no trabalho, ele mal conseguiu</p><p>abrir a porta por causa da pilha de sacos de lixo que bloqueava o caminho.</p><p>Ele olhou ao redor, confuso, e inclinou a cabeça ao ver Annie cantando a</p><p>música da rádio FM enquanto esfregava o fogão.</p><p>— Annie! É porque deixei queijo no prato? Prometo que lavo! Vou</p><p>lavar tudo direitinho! Não me coloque para fora, por favor!</p><p>Annie caiu na gargalhada.</p><p>— Ah, não, não vou colocar você pra fora. Estou me colocando pra</p><p>fora. Ou, pelo menos, algumas partes desoladoras de mim.</p><p>Costas pareceu confuso.</p><p>— Lamento que esta casa não tenha sido mais agradável para você —</p><p>disse ela. — Prometo que de agora em diante vou tornar este apartamento</p><p>um lugar mais aconchegante para nós dois vivermos. Ou melhor, nós dois</p><p>podemos fazer isso. Manter tudo um pouco mais arrumado? O que acha?</p><p>Não deixar tantas cascas de pistache no sofá? Untar as panelas antes de</p><p>derreter queijo nelas?</p><p>Ele franziu o cenho.</p><p>— Annie? Você está se sentindo bem?</p><p>Ela pensou a respeito. Não chorava no chuveiro havia quase duas</p><p>semanas. Seu apartamento estava mais limpo do que quando ela se mudara.</p><p>Sua mãe estava melhorando. E ela tinha compromissos sociais de verdade,</p><p>com pessoas de verdade, marcados em sua agenda.</p><p>— Na verdade, Costas, sabe de uma coisa? Não estou muito mal. Não</p><p>mesmo.</p><p>DIA 13</p><p>OLHE MAIS DO ALTO</p><p>— Ele é uma delícia — comentou Polly, espiando o traseiro de Costas</p><p>enquanto ele lia o cartaz na parede. — Mais gostoso do que uma caixa</p><p>inteira de baklava.</p><p>— Ele tem vinte e dois anos — sussurrou Annie em tom reprovador. E</p><p>desejou que Polly baixasse a voz. — Além disso, tenho quase certeza que é</p><p>gay.</p><p>Ele nunca disse isso a ela, mas o fato de que virava a noite nas boates de</p><p>Vauxhall três vezes por semana sem dúvida era um forte indício.</p><p>Polly suspirou.</p><p>— Eu devia ter imaginado. Nenhum hétero tem as sobrancelhas tão</p><p>certinhas. Ah, bem... talvez George e ele acabem juntos.</p><p>Annie duvidava — George não dirigira uma palavra a Costas desde que</p><p>o rapaz mencionara em que trabalhava. Ela o vira torcer o nariz enquanto</p><p>Costas contava, entusiasmado, sobre todas as bebidas que sabia fazer.</p><p>— Latte, latte desnatado, com leite vaporizado, sem leite vaporizado...</p><p>— Quanto tempo isso vai levar? — George reclamou. — Já estamos</p><p>esperando há, tipo, uma hora.</p><p>— Estamos esperando há dez minutos — respondeu Polly, irritada. — E</p><p>vai valer a pena.</p><p>— Não acredito que você me trouxe para esse programa turístico</p><p>cafona. Qual será o próximo passeio, o Madame Tussauds? Zoológico?</p><p>— O zoológico é uma ótima ideia! Vamos na próxima semana. Eu</p><p>poderia até adotar um animal, batizá-lo com o meu nome. Algo que</p><p>sobreviva depois que eu tiver partido. A menos que seja um efemeróptero,</p><p>um insetinho que mal dura três dias, acho.</p><p>Costas estava olhando ao redor, fascinado.</p><p>— Na Grécia, não temos nada grande assim. Em vez disso, perdemos</p><p>todo o nosso dinheiro e incendiamos nossa capital. — Ele disse isso em um</p><p>tom animado.</p><p>— Esse é o espírito, Costas — falou Polly e alisou o ombro dele. Annie</p><p>ficou tensa. Polly realmente não tinha noção de espaço pessoal. — É uma</p><p>maravilha moderna. Em um dia de tempo bom, você consegue ver tudo até</p><p>Kent.</p><p>— Por que iríamos querer ver Kent é uma pergunta que permanece sem</p><p>resposta — resmungou George. O hematoma em seu rosto ainda estava</p><p>visível, mas ele afastou todas as tentativas de Annie de tocar no assunto.</p><p>Eles agora estavam no elevador, com uma família usando agasalhos</p><p>esportivos que ficou boquiaberta diante da escolha de roupa de Polly: uma</p><p>saia vermelha franzida, que mostrava suas pernas longas e magras; um</p><p>chapéu de cowboy rosa cintilante, que poderia muito bem ser usado por</p><p>convidadas bêbadas de uma despedida de solteira; e uma jaqueta de lã</p><p>sharkskin roxa. Annie teria parecido uma palhaça se usasse uma roupa</p><p>daquela, mas Polly estava recebendo olhares de admiração e espanto ao</p><p>mesmo tempo.</p><p>— Ela não trabalha naquele programa de TV? — Annie ouviu uma das</p><p>pessoas da Família Agasalho sussurrar.</p><p>— Subir bem alto sempre inspirou as pessoas — declarou Polly. —</p><p>Vejam Wordsworth. Coleridge. Eles costumavam passear no Lake District,</p><p>embriagados com a natureza, cuspindo poesia.</p><p>— Era mais provável que estivessem doidos de ópio — comentou</p><p>George. — Aliás, tem algum disponível lá em cima?</p><p>O elevador parou e eles desceram em uma larga extensão de vidro,</p><p>lotada de visitantes. Annie piscou, ofuscada, quando a luz atingiu seus</p><p>olhos, com Londres se estendendo abaixo deles. Era como uma cidade feita</p><p>de Lego, com trechos verdes e quadrados de prédios e casas e carrinhos</p><p>andando entre eles. Como um tabuleiro de Monopoly da vida real.</p><p>Polly havia aberto caminho até o quiosque de bebidas.</p><p>— Não temos ópio, mas temos champanhe rosé para todos!</p><p>George estalou a língua.</p><p>— Espumante rosé barato? É sério?</p><p>Mas Polly já se aproximava com uma bandeja com quatro taças.</p><p>— Cale a boca, George. Você é a pessoa mais esnobe que já existiu. Eu</p><p>me lembro de quando sua comida favorita era macarrão enlatado. Beba e</p><p>não perturbe.</p><p>— Desde que ninguém descubra — disse ele. — Costas já tem idade</p><p>para beber?</p><p>— Tenho vinte e dois anos — retrucou Costas, aborrecido. — Obrigado,</p><p>Polly. É muito gentil de sua parte. Obrigado pelo champanhe rosé, pela</p><p>subida no grande elevador e pela vista da sua linda cidade.</p><p>— De nada — falou ela, tocando-o novamente. — Sinceramente, é bom</p><p>estar aqui com alguém que não seja um esnobe miserável.</p><p>— Espumante rosé no topo do Shard — resmungou George, que, apesar</p><p>das reclamações, estava entornando o espumante. — O que vem a seguir?</p><p>Você quer dar uma volta na loja gigante de M&M’s usando um chapéu com</p><p>estampa da bandeira inglesa?</p><p>— Existe um mundo de M&M’s? — Costas deu um gole na bebida e</p><p>espirrou.</p><p>Polly desarrumou o cabelo dele.</p><p>— Que gracinha.</p><p>Annie pegou a taça que lhe cabia, hesitante. Era uma taça de plástico</p><p>cheia de um líquido borbulhante da cor de ouro rosé antigo. Ela vira um</p><p>vestido naquele tom certa vez, em uma loja de vestidos de festa, quando</p><p>fora comprar um vestido para seu baile de formatura. Era caro — quase</p><p>cem libras —, mas ela havia economizado de seu trabalho aos sábados na</p><p>Boots e dera várias pistas do que queria, e a mãe respondera com vários</p><p>sorrisos evasivos, e o aniversário de Annie estava chegando... assim, na</p><p>manhã do seu aniversário de dezoito anos, ela desceu as escadas correndo e</p><p>encontrou um vestido embrulhado, pendurado na porta. Tinha que ser</p><p>aquele. O vestido dos sonhos, de renda e seda, com uma longa saia evasê e</p><p>um corpinho que conseguia erguer os seios flácidos de Annie e deixar seu</p><p>peito parecendo o de uma modelo glamorosa.</p><p>Quando Annie abriu o embrulho, achou que fosse uma brincadeira.</p><p>— O que é isso, mãe?</p><p>— Ah, fui ver aquele vestido que você queria, mas era caro demais,</p><p>então fiz esse para você na máquina de costura. É exatamente o mesmo.</p><p>Não era o mesmo. Era da cor de salmão podre, e a renda não era renda,</p><p>mas um poliéster que coçava, e o corpinho tinha barbatanas que se</p><p>cravavam nas costelas de Annie, e ela parecia um enorme manjar branco</p><p>usando aquilo. O resultado foi que ela voltou para casa mais cedo do baile</p><p>para assistir a Frasier. Outra lembrança não muito feliz... Mas ali estava</p><p>ela, tomando champanhe no alto do Shard. Annie ergueu a taça de plástico</p><p>na direção da de Polly.</p><p>— Tim-tim.</p><p>— Tim-tim. — Polly tomou um gole. — Max vai me matar. Eu não</p><p>deveria beber antes das minhas ressonâncias. Passo tanto tempo naquela</p><p>máquina que estou pensando em mandar colocar papel de parede nela.</p><p>Venham, vamos subir no deque externo.</p><p>Do lado de fora, o vento estava mais forte e o sol atingiu em cheio os</p><p>olhos de Annie. Ela resolveu que aquele não era um bom momento para</p><p>mencionar sua leve vertigem de altura e ficou o mais perto da parede</p><p>possível, enquanto Polly girava na direção do parapeito apontando os</p><p>pontos turísticos abaixo.</p><p>— A Somerset House! A London Eye! O Big Ben!</p><p>— O British Museum! — falou Costas, animado. — Onde vocês</p><p>guardam as estátuas de valor inestimável que roubaram do Parthenon no</p><p>meu país e se recusam a devolver!</p><p>— Acho que não é tão ruim aqui em cima — comentou George de má</p><p>vontade.</p><p>Annie olhou para ele pelo canto do olho.</p><p>— Como está seu rosto?</p><p>Georgie estreitou os olhos por causa do sol.</p><p>— Bem. Não foi nada.</p><p>— Lamento sobre o seu namorado.</p><p>— O quê? — George fechou a cara. — O que quer dizer com isso?</p><p>— Eu só... você deveria ter vindo aqui com ele, não é? Caleb?</p><p>— O Caleb e eu somos só amigos.</p><p>Ele falou em um tom despreocupado, ou tentando parecer</p><p>despreocupado, mas Annie sabia reconhecer a diferença entre fingir ter</p><p>superado alguma coisa e realmente ter superado. Às vezes, ela achava que</p><p>nunca chegaria à segunda opção. Ela deixou o assunto morrer.</p><p>Annie olhou para fora e o vento jogou seu cabelo no rosto. Dali de</p><p>cima, aquela não era a Londres que ela conhecia, com cocôs de cachorro,</p><p>obras nas ruas e apartamentos caros e úmidos. Era uma cidade cintilante,</p><p>com milhões de vidas, cada pessoa achando que era a mais importante do</p><p>mundo. Uma cidade em que centenas de pessoas deixavam de existir todo</p><p>dia, morrendo em hospitais, em clínicas de repouso ou mesmo na rua. E</p><p>outras centenas chegavam ao mundo nas maternidades, em banheiras de</p><p>parto e, às vezes, acidentalmente no metrô. Então, o que importava de fato</p><p>se, em meio a tudo aquilo, Polly fosse morrer ou Jacob já tivesse morrido?</p><p>Annie sentiu o peso dessa constatação esmagá-la, todos aqueles sonhos</p><p>sendo destruídos e corações sendo partidos.</p><p>— Eu me sinto tão pequeno — comentou George, quase que para si</p><p>mesmo.</p><p>— Estava pensando a mesma coisa.</p><p>— Quer dizer... todas essas pessoas, que nem sabem que estou vivo.</p><p>Como diabo algum dia vou ser um ator quando há tantas outras pessoas por</p><p>aí querendo a mesma coisa? Posso muito bem desistir logo.</p><p>— E — lembrou Annie —, se realmente ferrarmos com a nossa vida,</p><p>provavelmente ninguém jamais vai saber ou se importar. Podemos</p><p>simplesmente morrer, tranquilamente desconhecidos.</p><p>George olhou para ela.</p><p>— Gosto de você, Annie. Você é um bom antídoto para a positividade</p><p>irritante da minha irmã. Quer dizer, quando ela descobriu o câncer, eu me</p><p>preparei para depressão, choro e momentos terríveis, mas ela acabou se</p><p>tornando uma espécie de bíblia de autoajuda ambulante.</p><p>Annie não conseguia entender direito aquilo.</p><p>— Vocês estão todos tão... conformados a respeito disso.</p><p>George deu de ombros.</p><p>— O show deve continuar, não é mesmo? Você ainda está vivo até o</p><p>momento em que morre.</p><p>— Acho que sim.</p><p>— É isso que ela quer. Nada de choro, de infelicidade. E a mamãe e o</p><p>papai... acho que eles não acreditam que vai mesmo acontecer. Na verdade,</p><p>não posso culpá-los por isso... afinal, olhe só para ela. Entende por que</p><p>achamos que deve haver alguma esperança?</p><p>Annie entendia. Polly estava sorrindo, feliz, o rosto ruborizado pelo</p><p>calor do sol e o vento. Sim, ela estava magra, mas aquilo não era incomum</p><p>entre as mulheres de Londres. Ela não parecia nem um pouco doente.</p><p>Parecia radiante.</p><p>— Venham até aqui — chamou Polly, animando os dois a se</p><p>aproximarem do parapeito. O sol brilhava por entre as nuvens, aquecendo</p><p>Annie dos pés à cabeça. — Olhem, lá está a London Bridge. Vocês têm</p><p>ideia de quantas horas passei ali, congelando o traseiro naquela plataforma,</p><p>xingando e reclamando? Mas olhem como parece tranquila vista daqui de</p><p>cima.</p><p>E era verdade. Os trens entravam na estação em seus trilhos</p><p>entremeados, como patos deslizando sobre a água. Pessoas minúsculas, com</p><p>todas as suas minúsculas preocupações, sonhos, esperanças e medos. Polly</p><p>voltou a falar em um tom sussurrado:</p><p>— Aposto que é assim que Deus nos vê.</p><p>— PROIBIDO FALAR DE DEUS! — gritou George. — Você nem</p><p>sequer acredita em Deus, Poll, sua hipócrita. Não pode começar a acreditar</p><p>só porque está com câncer, isso é trapacear.</p><p>Polly estava mostrando a língua para o irmão.</p><p>— Está bem, está bem. Seja como for que queiram chamar, então. O</p><p>universo. O grande monstro de espaguete. Talvez seja assim que eu verei</p><p>todos vocês do paraíso.</p><p>— Que otimista — disse George. — Eu me lembro bem de como você</p><p>era na adolescência. Talvez não consiga entrar no paraíso.</p><p>— Se houver vida após a morte, vou contar a Deus sobre aquela vez em</p><p>que você arrancou a cabeça de todas as minhas Barbies e as amarrou na</p><p>minha cama.</p><p>— Ele vai entender, terá visto como você era irritante.</p><p>— Ela, por favor.</p><p>— Você acredita em Deus, Annie? — perguntou Costas baixinho</p><p>enquanto os irmãos implicavam um com o outro.</p><p>Ele acreditava, pensou Annie. Ela havia visto seu crucifixo e as garrafas</p><p>de água benta. Nunca quisera levantar o assunto — porque como um</p><p>homem gay poderia pertencer a uma igreja que odiava quem ele era? —,</p><p>mas ela sabia que às vezes ele chegava das boates nas manhãs de domingo,</p><p>a música ainda reverberando nos ouvidos, e ia à igreja ortodoxa em</p><p>Camberwell. Um dos muitos motivos pelos quais Annie jamais entenderia</p><p>as pessoas.</p><p>— Hum... acho que não. — Caso contrário, ela teria que acreditar em</p><p>um Deus que deixara Jacob morrer e permitira que sua mãe se desligasse do</p><p>mundo. — Você é religioso, certo?</p><p>Ele deu de ombros.</p><p>— A</p><p>Bíblia diz que o que eu sou é pecado. Ser... gay, você sabe.</p><p>Costas olhou timidamente para ela para ver se Annie já sabia, ou se se</p><p>importava.</p><p>Ela fez questão de colocar no rosto uma expressão da mais completa</p><p>aceitação.</p><p>— Mas, então, vejo coisas como isto... — Ele indicou com um aceno o</p><p>céu acima, azul, prata e pêssego — e conheço pessoas legais que me levam</p><p>para conhecer prédios altos e para tomar drinques cor-de-rosa, aí acho que</p><p>deve existir alguma coisa. Alguma coisa além. Mesmo se não for uma</p><p>pessoa, uma coisa ou um lugar. Entende o que eu quero dizer, Annie?</p><p>— Sim, acho que sim — disse ela. Annie já morava com Costas há um</p><p>ano e aquele era o máximo que os dois já tinham conversado. Ele nunca</p><p>contara abertamente que era gay. Os dois dormiam com apenas uma parede</p><p>entres eles, mas eram praticamente estranhos, e agora ali estavam. Eles</p><p>ficaram parados observando o sol brilhar sobre Londres, e foi tão lindo</p><p>quanto champanhe cor-de-rosa, vestidos de baile e novos amigos.</p><p>— Polly, pelo amor de Deus.</p><p>Annie despertou de seu devaneio com um susto e viu Polly subindo no</p><p>parapeito ao redor da plataforma de observação. George a segurava pela</p><p>cintura enquanto um segurança corria em sua direção. O coração de Annie</p><p>disparou e a vertigem a deixou zonza.</p><p>Mas Polly estava rindo.</p><p>— Ah, não seja chato, George. Quero ver mais longe!</p><p>— Madame, não pode subir aí, é muito perigoso.</p><p>— Não importa se é perigoso, estou morrendo!</p><p>Ela estava rindo, mas Annie viu que lágrimas escorriam em seu rosto.</p><p>E, quando George a colocou de volta no chão e indicou os elevadores com</p><p>um gesto de cabeça para dizer que era hora de ir embora, Annie se deu</p><p>conta de que ele não estava apenas sendo rabugento o tempo todo... ele</p><p>estava muito, muito assustado.</p><p>DIA 14</p><p>NÃO FAÇA NADA</p><p>Annie. Annie, chame uma ambulância!</p><p>Annie estava em sua antiga casa, o sol entrando pelas cortinas brancas</p><p>do quarto. Ela segurava Jacob no colo, mas então baixou os olhos e ele</p><p>estava azulado, a pele quase transparente, uma rede de veias aparecendo por</p><p>baixo. E ele estava tão frio e tão imóvel... um boneco de cera que se parecia</p><p>exatamente com o seu bebê. Era um sonho. Annie sabia que era só um</p><p>sonho e se esforçou para acordar, para atravessar as camadas de sono que a</p><p>mantinham presa. Não é real. Isto não é real.</p><p>Ela se sentou na cama e olhou para o relógio. Domingo de novo. Costas</p><p>não voltara da noitada e o apartamento estava silencioso. Annie preparou</p><p>chá e um ovo poché com torrada e o arrumou em um belo prato, tendo em</p><p>mente os comentários de Polly sobre a sua louça.</p><p>Ela se sentou no sofá, agora livre de cascas de pistache, e reparou que a</p><p>luz do sol que entrava já não iluminava mais poeira e migalhas por toda</p><p>parte. Aquilo era alguma coisa. Pequena, mas ainda assim alguma coisa.</p><p>Annie admirou a comida no prato, que tinha flores lilás na borda. O amarelo</p><p>da gema, o verde pálido do abacate. Antes que se desse conta do que fazia,</p><p>ela pegou o celular e tirou uma foto, detendo-se pouco antes de apertar o</p><p>botão de acesso ao Facebook. De jeito nenhum. Ela não se tornaria uma</p><p>dessas pessoas que postava fotos do café da manhã.</p><p>Havia uma mensagem de Polly, animada e alto-astral, sobre irem à</p><p>National Gallery naquela semana. Annie ainda se sentia perturbada pelo que</p><p>acontecera no Shard, pelo modo como Polly subira no parapeito daquele</p><p>jeito imprudente, esticando as mãos para o céu. Polly com certeza estava</p><p>mais doente do que ela se dava conta, correndo riscos, indo longe demais.</p><p>Se fosse qualquer outra pessoa, Annie talvez tivesse tentado se esquivar do</p><p>convite, alegando algo sobre trabalho. Mas Polly não tinha tempo para uma</p><p>rejeição. Se Annie adiasse o encontro, talvez não tivessem outra</p><p>oportunidade de fazer o passeio. Por isso ela aceitou, apesar dos receios que</p><p>sentia, e aí se acomodou novamente para aproveitar a paz de seu domingo</p><p>fazendo nada.</p><p>DIA 15</p><p>TERMINE UMA TAREFA</p><p>— Então, para comemorar a conclusão do projeto de multas para deposição</p><p>ilegal de lixo (finalmente!), vamos sair para tomar um drinque no Shovel</p><p>depois do trabalho — disse Jeff, tentando soar natural enquanto lia fichas.</p><p>— Devo lembrar que, de acordo com a política de diversidade da câmara</p><p>municipal, cada um paga pelo próprio consumo e o comparecimento não é</p><p>obrigatório. Esse projeto foi realmente um esforço de equipe, todos</p><p>contribuíram para o seu sucesso e...</p><p>Annie desligou. Já havia passado mais tempo de sua vida do que jamais</p><p>poderia imaginar pensando sobre depósito ilegal de lixo. Ela ficou surpresa</p><p>por eles estarem indo a um pub — a câmara era tão preocupada em evitar</p><p>qualquer possível ofensa cultural que havia mudado a festa de Natal para</p><p>janeiro, quando ninguém teve a sensação de estar celebrando alguma coisa.</p><p>— Você vai? — Fee estava parada diante de Annie, sussurrando acima</p><p>da lenga-lenga de Jeff.</p><p>— Ah! Não sei. — Ela costumava evitar todos os eventos de trabalho</p><p>havia anos. — E você?</p><p>Fee tinha olheiras escuras.</p><p>— Bem, acho que sim... se você fosse...</p><p>Annie pensou em ser obrigada a ter uma conversa constrangedora com</p><p>Jeff, que só falava de ir para a academia e para o trabalho, e em ter que</p><p>fingir que não detestava Sharon, e precisar se desviar do mau hálito de Tim.</p><p>Mas ela não tinha outros planos.</p><p>— Acho que a gente pode ir. Só um drinque.</p><p>— Só um drinque — concordou Fee. Ela sorriu e a tensão abandonou</p><p>seu rosto. — Vale a pena comemorar o fim desse projeto. Não sei quanto a</p><p>você, mas, se eu nunca mais ouvir a expressão “depósito ilegal de lixo”,</p><p>ainda assim será demais.</p><p>DIA 16</p><p>ABSORVA UM POUCO DE CULTURA</p><p>— Amo este lugar — disse Polly, subindo saltitante os degraus do museu.</p><p>Ela estava usando um vestido amarelo-limão em homenagem ao sol que</p><p>banhava Londres, transformando o Tâmisa em uma extensão prateada.</p><p>Como estavam em março, ela também vestia uma meia-calça roxa,</p><p>escarpins verdes de couro de cobra e um casaco vintage com gola de pele.</p><p>As pessoas a encaravam aonde quer que fosse, e não era de surpreender,</p><p>porque Polly falava aos berros o tempo todo. — Eu me formei em história</p><p>da arte. E você, Annie?</p><p>— Em nada. — Annie sussurrou para compensar o tom alto de Polly. —</p><p>Saí da escola e fui direto trabalhar.</p><p>Ela não tinha muito dinheiro na época, e a mãe a convencera de que</p><p>seria melhor conseguir logo um emprego, ter alguma segurança. Não deseje</p><p>a lua, Annie. Às vezes, ela se perguntava se havia outra Annie por aí, em</p><p>um mundo diferente, que se sentava em bibliotecas e conversava sobre</p><p>literatura usando cachecol de lã, fazendo folhas de outono voarem sob os</p><p>pedais de uma bicicleta.</p><p>— Acho que a minha faculdade foi uma espécie de piada. Eu passava o</p><p>dia vendo coisas lindas. Tenho a teoria de que se você só olhar para coisas</p><p>bonitas, cheirar coisas bonitas, ouvir coisas bonitas, sempre vai ter bons</p><p>pensamentos e ser feliz.</p><p>Annie duvidava daquilo. Não era possível se cercar apenas de coisas</p><p>bonitas. Sempre haveria ônibus sujos e o barulho das britadeiras, como a</p><p>que perfurava os arredores da Trafalgar Square, e sempre haveria morte. Era</p><p>impossível tornar a morte encantadora.</p><p>— Quanto vai custar? O ingresso na galeria.</p><p>O salário de Annie não duraria muito se ela continuasse a aderir aos</p><p>planos de Polly. Ela precisou tirar a tarde de folga do trabalho para estar ali,</p><p>e as sobrancelhas erguidas de Sharon foram bastante eloquentes a respeito</p><p>disso.</p><p>— É de graça! Você nunca veio aqui?</p><p>— Tinha esquecido.</p><p>Nos velhos tempos, ela e as meninas — Jane, Miriam, Zarah: o quarteto</p><p>fantástico, como Jane tentara convencê-las a se chamarem — costumavam</p><p>ir ao centro da cidade todo sábado. Para visitar alguma exposição, fazer</p><p>compras, almoçar ou jantar. Como não se falavam mais, Annie deixara esse</p><p>hábito morrer. Ela se sentiu meio envergonhada. Ela estava ali, com tanta</p><p>cultura na porta de casa, e só o que fazia era assistir à TV.</p><p>Polly a segurou pelo braço de novo, puxando-a para dentro.</p><p>— Venha, prometi te mostrar algumas damas nuas.</p><p>Annie seguiu atrás dela, encolhendo-se enquanto Polly gritava.</p><p>— E aqui está Degas, um velho pervertido, mas veja estas lindas ruivas.</p><p>Eu queria muito ser ruiva, e você? Acho que teria tido mais aventuras. Olhe</p><p>a forma maravilhosa como ele desenhou as costas delas... tão vulneráveis. E</p><p>veja, Rubens... Era isso que eu queria te mostrar.</p><p>Annie ficou olhando para os quadros. Uma vastidão de traseiros com</p><p>covinhas, barriguinhas salientes e coxas brancas sensuais. Polly estava</p><p>certa. Realmente se pareciam com ela. Mas sem os cabelos sem graça, cor</p><p>de nada.</p><p>— Então... isso era considerado bonito na época?</p><p>— Achavam que ser magra significava que a pessoa era pobre. Ou</p><p>doente. — Polly indicou com um gesto a própria figura delgada. —</p><p>Também não estou querendo dizer para as pessoas terem vergonha de ser</p><p>magras. Só queria que você visse que o que consideramos sexy hoje não era</p><p>nada sexy na Renascença. Os ideais de beleza mudam o tempo todo.</p><p>— Nasci na época errada, então — disse Annie.</p><p>Ela não conseguia desviar os olhos dos tons perolados de pele. Nada de</p><p>bronzeamento artificial ali, só rosados, cremes e marfim. As dobras de pele</p><p>eram gloriosas, corpos roliços e saudáveis que pareciam ter sido</p><p>alimentados com mel, creme e carne de cervo. A postura das mulheres,</p><p>orgulhosas de si mesmas, sedutoras e deslumbrantes.</p><p>— Este é o meu favorito — disse Polly, puxando-a diante de outro nu,</p><p>este de uma mulher reclinada vista de costas, olhando por um espelho de</p><p>mão para o espectador. — A Vênus ao espelho. Simplesmente amo esse</p><p>rosa. Tentei conseguir exatamente esse tom para o vestido das minhas</p><p>madrinhas de casamento, mas não sabia como chamá-lo.</p><p>Annie se virou na direção de Polly, surpresa. Aquela era a primeira vez</p><p>que ouvia sobre Polly ser casada. Pergunte a ela. Pergunte mais a respeito.</p><p>Mas ela se acovardou, com medo de estragar o humor esfuziante de Polly.</p><p>Polly ainda estava fitando a pintura, como se tentasse se lembrar de</p><p>cada centímetro dela.</p><p>— Sabe o que eu gostaria? De ter vindo aqui uma vez por semana só</p><p>para olhar para ela. Porque eu acho que nunca enjoaria. Mas, em vez disso,</p><p>fiquei olhando para um monte de coisas estúpidas, colegas de trabalho que</p><p>eu odiava, interiores sujos de trem e histórias idiotas na internet sobre qual</p><p>celebridade havia engordado. Sempre correndo para reuniões, me</p><p>preocupando em conseguir a conta de divulgação da máscara de cílios e se</p><p>eu deveria fazer pilates. Desperdicei todo esse tempo, Annie.</p><p>Annie não sabia o que dizer.</p><p>— Aposto que você também viu muitas coisas lindas.</p><p>— Ah, sim. — Ela suspirou. — Pores do sol sobre o Grand Canyon, o</p><p>Taj Mahal, os Alpes nevados e por aí vai. Mas não foi o bastante. Como</p><p>poderia ter sido? Eu quero ver tudo. Não quero parar de ver.</p><p>Com medo de que Polly começasse a chorar, Annie pousou a mão com</p><p>gentileza no braço da amiga. Ela não disse Está tudo bem, porque não</p><p>estava.</p><p>— Estamos aqui — falou. — Podemos apreciar o quadro agora.</p><p>Polly respirou fundo e sorriu.</p><p>— Você está certa. Estamos aqui olhando para ele. E a pintura vai</p><p>permanecer aqui depois que nós duas formos embora, ainda sexy pra</p><p>caramba. Certo, Annie. Acho que agora precisamos da parte mais</p><p>importante das visitas a museus... A lojinha e depois bolo.</p><p>Na saída, Polly parou nos degraus, fazendo com que um monte de chineses</p><p>engavetasse atrás dela.</p><p>— O que foi?</p><p>Annie sentiu uma pontada de preocupação. Polly ia enjoar de novo,</p><p>subir em um prédio alto ou estava prestes a tirar a roupa? Aparentemente,</p><p>alguma dessas coisas, ou todas elas, poderia acontecer a qualquer momento.</p><p>Mas Polly estava sorrindo.</p><p>— Você viu aquele filme, La Dolce Vita?</p><p>— Ah. Sim. — Era o filme favorito da mãe de Annie. Um sonho de</p><p>belos homens italianos e sorvete em praças ensolaradas. A um mundo de</p><p>distância da vida real da mãe dela. — Por quê?</p><p>— Está pensando no que estou pensando?</p><p>— Hum... provavelmente não?</p><p>Polly apontou.</p><p>— Fontes! Dançar dentro delas.</p><p>— Ficou maluca? Imagine como essa água deve ser suja.</p><p>Polly já estava caminhando, falando por cima do ombro.</p><p>— Ah, não, eu posso ficar doente! E depois o que vai acontecer?</p><p>Vamos, Annie. A vida não é evitar a tempestade, é aprender a dançar na</p><p>chuva. Onde está o seu senso de aventura?</p><p>Estava perdido, terminantemente perdido. Na verdade, Annie não sabia</p><p>se algum dia já tivera algum.</p><p>— Polly!</p><p>Ela estava seguindo na direção das fontes com água gelada jorrando, o</p><p>cheiro de piscina pública. Annie correu atrás dela. Polly chegara à beira da</p><p>fonte e já estava tirando o casaco.</p><p>Annie entrou em pânico.</p><p>— Tenho certeza que não é permitido fazer isso.</p><p>Polly revirou os olhos.</p><p>— Ótimo. Estou torcendo para ser presa. Está aí outra coisa que eu</p><p>nunca fiz.</p><p>— Mas...</p><p>— Vamos, Annie! Já dançou em uma fonte antes?</p><p>É claro que não. As únicas fontes por que já passara eram desastrosos</p><p>projetos de arte urbana, cheios de bitucas de cigarro.</p><p>— Ah, Deus.</p><p>Polly agora estava descalça, os dedos dos pés magros, as unhas pintadas</p><p>de prateado. As pernas tinham hematomas e eram magras como gravetos.</p><p>Mas ela estava rindo enquanto entrava na fonte.</p><p>— Cristo, está gelada! Entre!</p><p>Annie não conseguia pensar em nada pior do que entrar naquela fonte</p><p>fria e suja. E se pegasse pólio? Ainda se pegava pólio?</p><p>Um homem de corpo retangular usando um colete amarelo se</p><p>aproximou, falando em um rádio.</p><p>— Senhora, vou ter que lhe pedir para sair.</p><p>Polly estava segurando a saia para cima, espalhando água para os lados.</p><p>— Por quê?</p><p>Ele pareceu desconcertado.</p><p>— Hum... segurança e saúde.</p><p>— Ah, está tudo bem, estou morrendo, sabe. Posso assinar alguma</p><p>coisa, se quiser.</p><p>Ele olhou para Annie, que encolheu os ombros, impotente.</p><p>— Sinto muito, ela de fato está doente e...</p><p>— Você tem que tirá-la daí, ou vou prendê-la.</p><p>— O senhor é um policial de verdade?</p><p>— Bem, não exatamente, mas conheço alguns.</p><p>Annie teve um pressentimento de que aquele momento era um ponto de</p><p>virada muito importante para ela. Poderia recuar e deixar o homem deter</p><p>Polly, que, afinal, só queria chapinhar em uma fonte pública antes de</p><p>morrer, ou poderia...</p><p>— O que você está fazendo? — perguntou o homem, parecendo em</p><p>pânico. — Pare com isso... Senhora, pare!</p><p>Annie estava descalçando as botas e enfiando a mão por baixo da saia</p><p>para tirar a velha meia-calça de lã. Então, ela também passou as pernas por</p><p>sobre a beira da fonte, encolhendo-se ao sentir a água fria.</p><p>— Jesus!</p><p>Polly riu e bateu palmas.</p><p>— Vem, Annie, vem!</p><p>As pessoas começaram a tirar fotos e a se cutucar. Annie se encolheu de</p><p>medo.</p><p>Polly a segurou pelas mãos.</p><p>— Me concede esta dança, sra. Hebden?</p><p>— Ah, Deus, Polly, eu realmente não posso...</p><p>— Vamos! A ideia é dançar em fontes, não apenas ficar arrastando os</p><p>pés dentro delas. — Ela gritou para a multidão. — Toquem uma música e</p><p>dançaremos para vocês!</p><p>— Ah, Deus, não, não...</p><p>O celular de alguém começou a tocar uma versão ruim de “New York,</p><p>New York”.</p><p>— É a cidade errada! — gritou Annie.</p><p>— Não importa. Venha.</p><p>Polly passou o braço ao redor de Annie e começou a dançar, levantando</p><p>as pernas bem alto. Annie a acompanhou com menos entusiasmo, molhando</p><p>a saia com a água — sem dúvida, infectada. Elas ouviram um barulho, e</p><p>mais alguém passou pela beirada da fonte — um grupo de alunos de</p><p>intercâmbio, com os jeans enrolados até os joelhos, rindo e xingando em</p><p>espanhol. Então, pais começaram a erguer os filhos pequenos e os colocar lá</p><p>dentro, e o ar se encheu com o som de risadas, gritos e de pés chapinhando</p><p>na água. A música terminou e as pessoas agora cantavam juntas:</p><p>— New YORK, New YOOOOOORKKK!</p><p>Polly se inclinou, sem fôlego de tanto rir.</p><p>— Ai, meu Deus. Isso foi hilariante.</p><p>As pessoas estavam se dispersando, batendo palmas e rindo, o momento</p><p>havia passado. Apenas um minuto ou dois em que os londrinos se</p><p>conectaram uns aos outros em vez de cada um seguir o seu caminho.</p><p>Parecera uma eternidade para Annie.</p><p>Polly ainda estava arquejando, com dificuldade de respirar.</p><p>— Você está bem? — perguntou Annie, preocupada.</p><p>Polly tossiu e assentiu.</p><p>— Valeu a pena. Foi maravilhoso.</p><p>— Bem, por que não entramos para que você possa se aquecer? Chá e</p><p>bolo?</p><p>Polly tossiu de novo.</p><p>— Chá e bolo... parece... incrível.</p><p>— Seus pés já secaram?</p><p>Polly levantou um pé ossudo</p><p>que estava enrolado em papel toalha.</p><p>— Parece que estou descascando.</p><p>— Só me avise se ficar com muito frio. O dr. Max disse que você</p><p>precisava ter cuidado.</p><p>— Estou bem! Tim-tim! — Polly ergueu a xícara de chá. — Sabe,</p><p>também gostaria de ter comido bolo todos os dias da minha vida. Todas</p><p>aquelas saladas e goji berries que empurrei para dentro, e ainda assim vou</p><p>morrer aos trinta e cinco anos. Que desperdício, Annie. Juro que aqueles</p><p>bolos não comidos vão me assombrar. De agora em diante, pelo menos dois</p><p>bolos por dia. Para conseguir o meu traseiro à la Boucher.</p><p>Annie mordiscou um doce, com uma cobertura sedosa cor-de-rosa</p><p>pálido quase bonito demais para ser comido.</p><p>— Eu sou quem nem sequer sabe se já estive antes na National Gallery</p><p>ou não — disse ela. — O que eu estava fazendo da minha vida? Não</p><p>consigo nem me lembrar da última vez que fiz alguma coisa assim, só</p><p>tomar chá com alguém.</p><p>— Eu estava mesmo querendo perguntar isso. Onde estão seus amigos,</p><p>Annie?</p><p>Annie foi pega de surpresa. Demorava algum tempo até se acostumar</p><p>com a franqueza de Polly.</p><p>— Eu já tive alguns. Da escola, sabe. Mas acho que deixei que se</p><p>fossem. — Quando tudo virou cinzas com Jane, suas outras amizades</p><p>também tinham sido engolidas pelo fogo. Na época, Annie não se importou.</p><p>Era como lamentar por um bairro quando toda a cidade havia sido arrasada.</p><p>Mas agora ela sentia a perda, todo sábado que passava sozinha em casa,</p><p>toda vez que pensava em tirar férias e desistia, porque não queria ser a</p><p>viajante solitária naquelas excursões de pintura para mulheres solteiras e</p><p>tristes. — Aliás, e quanto aos seus amigos? — contra-atacou Annie. —</p><p>Também ainda não conheci nenhum amigo seu. — Talvez Polly tivesse</p><p>vergonha dela.</p><p>— Bem. Para ser honesta, eu meio que venho evitando os meus amigos.</p><p>— Por quê?</p><p>— Ah, não sei. Talvez porque quando olho para eles, vejo quanto devo</p><p>ter mudado. E eles me tratam de um jeito diferente... como se eu pudesse</p><p>quebrar, ou algo assim. Eu quase desejo que me chamem de lado e digam</p><p>que minha roupa não combina, ou qualquer outra coisa, como faziam antes.</p><p>Acaba ficando meio... constrangedor.</p><p>— Também venho evitando os meus amigos — admitiu Annie. — Já</p><p>faz um bom tempo. — Tanto tempo que ela duvidava de que eles ainda</p><p>fossem amigos.</p><p>— Você tem tempo. — Polly fechou os olhos em êxtase enquanto</p><p>engolia um macaroon de pistache. — No fim, é a isso que tudo se resume,</p><p>entende? Não tenho muito tempo, por isso quero que outras pessoas façam</p><p>as coisas que não consegui fazer. Apreciem arte. Comam bolos. Ah, e isto.</p><p>Polly enfiou a mão na bolsa — toda decorada com pequenos espelhos</p><p>— e colocou um ingresso em cima da mesa.</p><p>Annie leu:</p><p>— Fantasia on a Theme by Thomas Tallis. O que é isso?</p><p>— É só um concerto da peça musical mais incrível que já se ouviu. Que</p><p>é tanto para os ouvidos quanto para os olhos. Você pode ir?</p><p>— Ah, não sei...</p><p>— Trunfo do câncer — murmurou Polly, enquanto dava uma dentada</p><p>em um bolo vitoriano. — Por favor. Realmente amo essa peça musical, e</p><p>talvez seja a minha última chance de ouvi-la.</p><p>— Ah, tudo bem, então. Mas você tem que me deixar pagar o ingresso.</p><p>Sinceramente, eu me sinto mal. — Annie se lembrou das reclamações de</p><p>George sobre os aproveitadores.</p><p>Mas Polly fez uma cara feia.</p><p>— Annie, não posso levar esse dinheiro comigo quando eu me for.</p><p>Assim, posso muito bem usá-lo para me divertir com os meus amigos, não</p><p>acha?</p><p>Amigos. O tempo todo, Annie estava pensando nos amigos que perdera,</p><p>e agora encontrara uma. Ela achou que aquilo nunca mais aconteceria —</p><p>como faria mais amigos aos trinta e cinco anos? —, mas parece que</p><p>aconteceu, no improvável cenário do Departamento de Neurologia do</p><p>Hospital Lewisham.</p><p>— Está certo, então — concordou timidamente. — Mas você também</p><p>precisa deixar que eu faça algumas coisas também, certo? Não posso ficar</p><p>só acompanhando as suas coisas felizes.</p><p>Um sorriso largo iluminou o rosto de Polly, e Annie de repente se deu</p><p>conta de que caíra direitinho em seu jogo de “mudança de vida”.</p><p>— Talvez você possa começar procurando um antigo amigo. Afinal, eu</p><p>não vou estar aqui para sempre.</p><p>Mas Annie não queria falar sobre isso naquele momento. Queria ficar</p><p>ali, no presente, feliz, relaxada, sentindo como se uma verdadeira amiga</p><p>estivesse sentada diante dela, do outro lado da mesa. Uma amiga de verdade</p><p>que ainda não estava prestes a abandoná-la.</p><p>— Vou pensar — falou.</p><p>DIA 17</p><p>OUÇA MÚSICA</p><p>— Eu não sabia que seria tão chique. Por que você não me falou que seria</p><p>chique assim?</p><p>O Royal Festival Hall estava cheio de casais mais velhos usando</p><p>smokings e vestidos longos, tomando vinho branco e conversando em voz</p><p>alta sobre Mahler. Annie havia escolhido a calça e o pulôver pretos de</p><p>sempre, e agora estava se sentindo deploravelmente malvestida. Elas</p><p>também tiveram que convencer o porteiro a deixá-las entrar, já que Polly</p><p>havia esquecido os ingressos. No entanto, sacar o trunfo do câncer da</p><p>manga (e o Visa da carteira) havia sido providencial mais uma vez, e a</p><p>situação foi salva, com direito a algumas lágrimas. Annie ficara para trás,</p><p>constrangida e envergonhada por estar constrangida. Agora elas estavam</p><p>atrasadas, e as pessoas as encaravam conforme elas abriam caminho pela</p><p>fileira onde eram seus lugares.</p><p>Polly estava usando um vestido estampado com raminhos de centáureas.</p><p>— Ah, você está ótima. Quem liga pra isso? Estamos aqui para ouvir,</p><p>não para ver.</p><p>— E o que vamos ouvir?</p><p>Annie tinha a intenção de pesquisar no YouTube com antecedência, ao</p><p>menos pareceria mais informada, mas Sharon havia ficado rodeando a mesa</p><p>dela o dia todo, e ela não teve chance.</p><p>— Meu favorito. Vaughan Williams. É tão dramático e lindo. Acho que</p><p>os esnobes da música clássica diriam que é sentimental demais, mas quem</p><p>se importa?</p><p>Havia esnobes até na música clássica? A experiência de Annie com</p><p>música ao vivo tinha sido uma excursão para ver O fantasma da ópera, em</p><p>sua despedida de solteira, e outra para assistir a um show do Take That, na</p><p>O2. Pelo que se lembrava, foi Jane quem organizou os dois passeios.</p><p>Depois que se sentaram — bem na frente... quanto custara aquilo? —,</p><p>Annie se sentiu nervosa.</p><p>O clima ao redor era reverente e sussurrante. Ela abriu uma garrafa de</p><p>Coca Diet e recebeu vários olhares recriminadores das pessoas mais velhas</p><p>ao seu redor por causa do som efervescente. Constrangida, Annie escondeu</p><p>a garrafa embaixo do assento e resolveu ficar com sede pelo resto do</p><p>espetáculo. Não era como em um musical. Ninguém estava com bebidas ou</p><p>balas, nem checava o Facebook no celular.</p><p>Os sussurros silenciaram mais quando a orquestra entrou, todos de</p><p>preto. Os músicos pegaram os instrumentos para afiná-los e pousaram as</p><p>partituras à frente. Pareciam incrivelmente glamorosos, absurdamente</p><p>concentrados. Annie começou a se sentir muito nervosa. E se ela precisasse</p><p>tossir? Talvez precisasse muito tossir. Seria linchada?</p><p>— Lá vamos nós — sussurrou Polly. E até aquelas três palavras ditas</p><p>em voz muito baixa atraíram olhares de reprovação.</p><p>Annie segurou com força a beira do assento. Precisava espirrar. Ah,</p><p>Deus, realmente precisava espirrar. Ela franziu o nariz quando soou a</p><p>primeira nota.</p><p>Minha nossa. Aquilo era... Annie sentiu que franzia o cenho e mordeu o</p><p>lábio diante do poder absoluto da música. As notas graves profundas, o</p><p>mesmo refrão tocado por diferentes instrumentos, diversas vezes,</p><p>entremeado com momentos de silêncio que a deixaram trêmula. A melodia</p><p>ardendo em seus ouvidos, as notas mais baixas fazendo seu estômago</p><p>vibrar. Ela se pegou agarrada ao assento. E a vontade de espirrar sumiu</p><p>completamente.</p><p>Vinte minutos mais tarde, ouviu-se uma tempestade de aplausos. Annie</p><p>estava secando os olhos. Polly se virou para ela.</p><p>— E então?</p><p>— Foi bom. Achei... bom. — Era a melhor coisa que ela já ouvira na</p><p>vida.</p><p>— Você está tendo um momento Uma linda mulher? Desculpe, não</p><p>posso levá-la a lugar algum em meu jatinho particular, mas o lado bom é</p><p>que você não tem que fazer sexo comigo por dinheiro. — O tom de Polly</p><p>era alto como sempre, e um casal decadente atrás delas pediu silêncio.</p><p>A orquestra</p><p>— Escute, senhora... — A recepcionista estava se preparando, a boca se</p><p>abrindo, sem dúvida para dizer a Annie aonde ir. Então algo estranho</p><p>aconteceu. O rosto dela se abriu em um sorriso. — Oiê, P.</p><p>— O-lá! Tudo bem por aqui?</p><p>Annie se virou para ver quem estava interrompendo. Na porta da</p><p>desbotada sala do hospital estava uma mulher alta usando todas as cores do</p><p>arco-íris. Sapatos vermelhos. Meia-calça roxa. Um vestido amarelo, da cor</p><p>de limão siciliano. Um gorro verde. As bijuterias âmbar cintilavam um</p><p>brilho laranja, e seus olhos eram de um azul vívido. Aquela mistura de</p><p>cores não deveria funcionar, mas, por algum motivo, funcionava. A mulher</p><p>se inclinou na direção de Annie e tocou o braço dela. Annie se encolheu.</p><p>— Lamento muito, não quero passar na sua frente. Só preciso marcar</p><p>uma consulta muito, muito rapidamente.</p><p>A recepcionista voltou a digitar, dessa vez em um ritmo animado.</p><p>— Para a semana que vem, certo?</p><p>— Obrigada, você é demais. Desculpe, furei totalmente a fila! — O</p><p>arco-íris voltou a sorrir para Annie. — Essa moça encantadora está com</p><p>tudo resolvido, Denise?</p><p>Ninguém chamava Annie de moça encantadora havia muito tempo. Ela</p><p>piscou para afastar as lágrimas e tentou fazer a voz soar firme.</p><p>— Bem, não, porque aparentemente é difícil demais fazer uma simples</p><p>alteração na ficha de uma paciente. Já estive em quatro salas diferentes até</p><p>agora.</p><p>— Ah, a Denise pode fazer isso para você; ela guarda todos os segredos</p><p>deste hospital na ponta desses fabulosos dedos.</p><p>A mulher imitou o gesto de digitar. Havia um grande hematoma no</p><p>dorso de uma mão, parcialmente coberto por um curativo.</p><p>Denise estava realmente assentindo, ainda que de má vontade.</p><p>— Está certo, então. Me dê aqui.</p><p>Annie passou o formulário para ela.</p><p>— Pode mandar aos meus cuidados, por favor? Annie Hebden. —</p><p>Denise digitou e, em dez segundos, estava pronto o que Annie esperara o</p><p>dia todo para que fosse feito. — Hum... obrigada.</p><p>— De nada, senhora — disse Denise, e Annie sentiu o tom crítico. Ela</p><p>fora rude. Sabia que tinha sido rude. Mas era tão frustrante, tão difícil.</p><p>— Brilhante. Tchau, senhorita. — A mulher arco-íris acenou para</p><p>Denise, então voltou a segurar o braço de Annie. — Escute, lamento que</p><p>esteja tendo um dia ruim.</p><p>— Eu... o quê?</p><p>— Você parece estar tendo um dia bem ruim.</p><p>Annie ficou temporariamente sem fala.</p><p>— Estou na droga de um hospital. Você acha que alguém aqui está</p><p>tendo um dia bom?</p><p>A mulher olhou para a sala de espera atrás delas — metade das pessoas</p><p>estava de muletas, algumas tinham a cabeça raspada e o rosto pálido, havia</p><p>uma mulher encolhida e encurvada em uma cadeira de rodas usando uma</p><p>camisola de hospital e crianças entediadas revirando o conteúdo da bolsa</p><p>das mães, enquanto as mães digitavam distraídas nos celulares.</p><p>— Não sei por que não.</p><p>Annie recuou, furiosa.</p><p>— Escute, obrigada por sua ajuda... embora eu não devesse ter</p><p>precisado dela, este hospital é uma desgraça... mas você não tem ideia de</p><p>por que estou aqui.</p><p>— É verdade.</p><p>— Portanto, estou indo.</p><p>— Gosta de bolo? — perguntou a mulher.</p><p>— O quê? É claro que eu... o quê?</p><p>— Espere um segundo.</p><p>A mulher saiu em disparada. Annie olhou para Denise, que voltara a</p><p>encarar o teclado com a mesma expressão distante.</p><p>Annie contou até dez — irritada consigo mesma por estar fazendo</p><p>aquilo —, então balançou a cabeça e desceu o corredor, com uma paleta de</p><p>cores que ia do azul-desespero ao verde-bile. Sons de rodas de camas, de</p><p>portas vaivém, choros distantes. Um homem velho, pequeno e cinzento,</p><p>estava deitado em uma maca. Graças a Deus ela finalmente conseguira.</p><p>Precisava ir para casa, se perder na TV, se esconder embaixo do edredom.</p><p>— Espere! Annie Hebden!</p><p>Annie se virou. A mulher irritante apareceu correndo — bem, meio que</p><p>deslizando, ofegante. Ela segurava um cupcake no alto com uma cobertura</p><p>instável de chocolate.</p><p>— Para você — disse a mulher, arfante, e enfiou o cupcake na mão de</p><p>Annie. Cada uma de suas unhas era pintada de uma cor diferente.</p><p>Annie ficou sem fala pela segunda vez em cinco minutos.</p><p>— Por quê?</p><p>— Porque sim. Cupcakes deixam tudo um pouco melhor. A não ser no</p><p>caso de diabetes tipo dois, acho.</p><p>— Ah... — Annie olhou para o cupcake em sua mão. Ligeiramente</p><p>amassado. — Obrigada?</p><p>— Está tudo bem. — A mulher lambeu um pouco de cobertura que</p><p>tinha caído em sua mão. — Eca, espero não me contaminar com MRSA.</p><p>Não que fosse fazer muita diferença. A propósito, sou a Polly. E você é a</p><p>Annie.</p><p>— Bem... Sim.</p><p>— Tenha um bom dia, Annie Hebden. Ou, pelo menos, um dia</p><p>ligeiramente melhor. Lembre-se: se quer o arco-íris, tem que suportar a</p><p>chuva. — E, com isso, ela acenou e sumiu de vista deslizando... Seria a</p><p>primeira vez que alguém descia deslizando o Corredor da Morte?</p><p>Annie esperou pelo ônibus na chuva, aquela chuva cinza e densa em que</p><p>Lewisham parecia ser especialista. Achava uma estupidez o que a mulher</p><p>tinha dito. A chuva nem sempre levava a um arco-íris. Normalmente,</p><p>levava apenas a meias encharcadas e a cabelos transformados em ninhos de</p><p>rato. Mas pelo menos ela tinha para onde ir. Um homem sem-teto estava</p><p>sentado sob a cobertura do ponto de ônibus, a água escorrendo da cabeça</p><p>dele e formando uma poça ao redor da calça suja. Annie se sentiu mal por</p><p>ele, mas o que poderia fazer? Não tinha como ajudá-lo. Não tinha nem</p><p>como ajudar a si mesma.</p><p>Quando o ônibus chegou, estava lotado, e ela se espremeu entre um</p><p>carrinho de bebê e um monte de sacolas de compras, que batiam nela a cada</p><p>curva. Uma senhora mais velha subiu os degraus cambaleando com um</p><p>carrinho de compras. Enquanto a mulher atravessava o corredor do ônibus,</p><p>ninguém levantou os olhos dos celulares para lhe oferecer um lugar. Annie</p><p>finalmente explodiu. O que havia de errado com as pessoas? Não restava</p><p>mais nem uma gota de decência naquela cidade?</p><p>— Pelo amor de Deus! — bradou. — Alguém poderia deixar essa</p><p>senhora se sentar, por favor?</p><p>Um rapaz com enormes fones de ouvido se levantou, constrangido.</p><p>— Não precisa dizer o santo nome do Senhor em vão — disse a</p><p>senhora, olhando com desaprovação para Annie enquanto se sentava.</p><p>Annie olhou para os próprios sapatos, que haviam deixado marcas de</p><p>lama no piso do ônibus, até chegar em sua parada.</p><p>E ela se perguntou: Como a vida dela chegara àquele ponto? Perdendo a</p><p>cabeça em público por causa de uma mudança de endereço? Chorando na</p><p>frente de estranhos? Antes, ela teria erguido as sobrancelhas se outra pessoa</p><p>tivesse uma crise como a dela. Teria oferecido lenços de papel, dado uma</p><p>palmadinha tranquilizadora no braço. Não entendia o que havia acontecido</p><p>com aquela pessoa. Com a pessoa que costumava ser.</p><p>Às vezes, Annie tinha a sensação de que sua vida havia mudado em um</p><p>piscar de olhos.</p><p>Se fechasse os olhos, estava de volta ao quarto da casa linda onde</p><p>morava, naquela última manhã ensolarada de verão, e tudo estava bem. Ela</p><p>estava animada, cheia de esperança e de uma alegria ligeiramente exausta.</p><p>Perfeito.</p><p>Se abrisse os olhos, estava ali, voltando para o apartamento horrível em</p><p>que morava, pegando ônibus na chuva, sem conseguir dormir à noite, com</p><p>medo e infeliz.</p><p>Se piscasse uma vez, perfeito. Se piscasse duas vezes, tudo arruinado.</p><p>Mas, não importava quantas vezes fechasse os olhos, nunca mais voltaria a</p><p>ser como antes.</p><p>DIA 2</p><p>SORRIA PARA ESTRANHOS</p><p>A campainha estava tocando. Annie acordou com um susto, o coração</p><p>disparado. O que era aquilo? A polícia de novo, a ambulância... Mas não, o</p><p>pior já havia acontecido.</p><p>Ela se sentou, registrando o fato de que tinha dormido no sofá de novo,</p><p>ainda com as roupas que usara no hospital. Não conseguia nem se lembrar</p><p>do que estava assistindo na TV antes de adormecer. Deu ruim na tattoo,</p><p>talvez? Ela gostava do programa, em que tatuadores ajudavam a consertar</p><p>ou cobrir tatuagens indesejadas. Era sempre reconfortante ver que havia</p><p>pessoas que tomavam decisões piores que as dela.</p><p>Triiimmm. Annie afastou para o lado a manta que Costas provavelmente</p><p>jogara em cima dela. Quando se levantou, migalhas, lenços de papel e um</p><p>controle remoto caíram de cima da sua roupa. Era como se ela tivesse</p><p>estava mudando de lugar, preparando-se para a próxima</p><p>peça, quando o auditório subitamente se encheu com o som inconfundível</p><p>de “Like a Virgin”. Annie olhou ao redor em busca da fonte do som —</p><p>seria, por um terrível acaso, seu celular? Não, era o de Polly. Todos estavam</p><p>olhando para elas. Até os membros da orquestra as encaravam, irritados.</p><p>Lentamente, com toda a calma do mundo, Polly pegou o aparelho e</p><p>pressionou o botão de “cancelar” a chamada. Mas não antes de Annie ver o</p><p>nome TOM acender na tela.</p><p>Ela olhou para Polly com os olhos arregalados, e Polly só riu.</p><p>— Acho que estamos prestes a ser expulsas do concerto. Venha, vamos</p><p>comprar churros e caminhar pelo South Bank para criticar os passantes.</p><p>Elas abriram caminho para sair da fileira com dificuldade, sentindo a</p><p>força da desaprovação de quinhentas pessoas. Mas, por algum motivo,</p><p>Annie não se importou tanto quanto imaginou.</p><p>DIA 18</p><p>ARRUME TEMPO PARA CONVERSAR</p><p>— O que você está ouvindo? — perguntou Sharon, mais uma vez pairando</p><p>sobre a mesa de Annie.</p><p>Annie se apressou em tirar os fones de ouvido. Estivera tocando</p><p>Vaughan Williams sem parar, o som enchendo seus ouvidos enquanto ela</p><p>olhava para fora, para os arredores mal iluminados do escritório.</p><p>— Ah, nada.</p><p>— Não deverímos usar fones de ouvido. E se eu precisar de você?</p><p>Annie poderia ter argumentado que Syed passava o dia inteiro com</p><p>fones de ouvido, que até ia ao banheiro com eles, mas preferiu dizer:</p><p>— Basta acenar se precisar de mim, Sharon. Ou mande um e-mail.</p><p>Sharon voltou a se sentar, os joelhos estalando.</p><p>— Nunca foi assim. De que adianta estar no escritório se tenho que</p><p>enviar um e-mail? Isso é ser antissocial.</p><p>Mas Annie mal conseguia ouvir o que ela dizia, porque as palavras da</p><p>outra foram afogadas pelo crescer e pelo lamento dos violinos, e ela</p><p>realmente não se importava mais.</p><p>DIA 19</p><p>TENHA UM ANIMAL DE ESTIMAÇÃO</p><p>— Olhe! Ele não é um amor?</p><p>Annie baixou os olhos até os pés de Polly, calçados em sapatos de salto</p><p>plataforma prateados, instáveis e cintilantes. Ela parecia estar quase</p><p>pairando acima deles, como se fosse impaciente demais para andar no chão</p><p>como as pessoas normais.</p><p>— É um cachorro.</p><p>— Um filhote. — Polly se abaixou para pegar no colo o emaranhado de</p><p>patas embaralhadas que estava aos seus pés. Annie achava que era um</p><p>filhote de boxer: o focinho arrebitado, os olhos escuros e úmidos, exalando</p><p>um cheiro forte de pelo molhado. — O nome dele é Buster.</p><p>— Mas onde você...</p><p>— Ah, eu só acordei e pensei: Sabe o que eu sempre quis?</p><p>— Pulgas? Hidrofobia?</p><p>— Um cachorrinho fofo. Por isso, consegui um com um cara em</p><p>Gumtree. Simples assim.</p><p>— Hum... quanto você...?</p><p>— Ah, umas oitocentas libras.</p><p>Polly estava soprando beijos e fazendo caretas bobas para o</p><p>cachorrinho, que choramingava agudo.</p><p>Oitocentas libras. Era quase o valor de um mês inteiro do aluguel de</p><p>Annie. Ela tentou não revirar os olhos.</p><p>— Poll... você sabe que trouxe um cão para um lugar cheio de pessoas</p><p>doentes. Tem noção de que estamos em um hospital?</p><p>— Tudo bem, tenho certeza de que ele não vai pegar nenhuma doença.</p><p>— Polly. Como você conseguiu entrar aqui com esse cachorro?</p><p>— Eu o escondi dentro da bolsa. — O tom dela agora era defensivo. —</p><p>Achei que ele poderia animar as pessoas. É tão deprimente aqui.</p><p>— Sim, a ala de neurologia é deprimente, mas, de verdade, olhe para</p><p>ele.</p><p>Buster, com os olhos arregalados e se debatendo, agora estava fazendo</p><p>xixi. Polly o afastou do corpo e o xixi caiu no chão do corredor, e foi</p><p>engraçado perceber que o piso já era da cor de urina.</p><p>— Ops — disse ela.</p><p>— Vou chamar o dr. Max — avisou Annie.</p><p>Ela o encontrou ajoelhado diante de uma máquina de venda automática,</p><p>com o braço dentro dela e uma expressão altamente concentrada.</p><p>— Tudo bem aí?</p><p>— Xiu! Esta é uma manobra muito delicada... arrá! — Uma barra de</p><p>KitKat finalmente caiu e ele puxou a mão segurando o chocolate, com ar de</p><p>vitória no rosto. — Mãos de cirurgião, um, máquina ladra desgraçada, zero.</p><p>— Ele notou que Annie o encarava. — Eu paguei por isso! E não saía. E eu</p><p>não comi nada no almoço.</p><p>— Não estou julgando. Só preciso que me ajude com uma coisa.</p><p>— Com o quê — perguntou ele, abrindo o chocolate.</p><p>Annie contou o que havia acontecido.</p><p>O rosto do dr. Max ficou sério.</p><p>— Certo. Não vou aceitar isso. Leve-me até ela.</p><p>Dez minutos mais tarde, o dr. Max havia despachado uma Polly</p><p>emburrada para o exame de ressonância magnética depois de lhe passar um</p><p>sermão sobre todo tipo de infecção que se pode pegar de um cachorro. E</p><p>agora ele estava de quatro, secando o xixi de Buster com um rolo de papel</p><p>azul do hospital. O cachorrinho estava encurralado perto da parede.</p><p>— Posso... — ofereceu Annie timidamente.</p><p>— Não. Já acabei. Malditos irresponsáveis de fábricas de filhotes.</p><p>Transformando cachorros em máquinas de reprodução. O pobrezinho não</p><p>estava pronto para ser afastado da mãe, olhe como está assustado...</p><p>— Por que ela...?</p><p>— Desinibição. — Ele se sentou nos calcanhares e suspirou. — É um</p><p>mau sinal, Annie. Significa que o tumor está devorando o cérebro dela. As</p><p>partes do cérebro da Polly que controlam impulso e discernimento... Sabe</p><p>como se pinta com aerógrafo, com os pontinhos? É o que está acontecendo</p><p>dentro do cérebro dela nesse momento.</p><p>Annie assentiu com a garganta apertada.</p><p>— Ela dançou dentro de uma fonte outro dia.</p><p>— Está vendo? Perda de controle. Não é bom.</p><p>— Mas ela parece tão bem. Feliz, na maior parte do tempo.</p><p>Ele estalou a língua.</p><p>— Não é felicidade, é euforia. E também há perda de memória e</p><p>variações de humor, o que chamamos de labilidade emocional.</p><p>— Mas...</p><p>— Isso não é um filme inspirador do tipo “aproveitando a vida ao</p><p>máximo”, Annie. É um dano cerebral. É isso que você está vendo.</p><p>— Eu também dancei na fonte.</p><p>Ele ergueu as sobrancelhas grossas.</p><p>— Não imaginei que você fosse do tipo que dança em fontes.</p><p>— Não sou. Nem sei direito o que aconteceu. Acho que pensei que</p><p>poderia impedir a Polly de fazer alguma coisa realmente absurda.</p><p>Ele acenou com a cabeça.</p><p>— Você é uma boa influência para ela. Exceto pela dança. A relação de</p><p>vocês parece... distrair a Polly do que está acontecendo. E a mantém firme.</p><p>— Então, está piorando.</p><p>— Aye. E vai ficar ainda pior. Och, Annie, você está chorando?</p><p>— É só que... — Ela mordeu o lábio enquanto um fluxo de água salgada</p><p>se derramava de seus olhos. — O pobre cachorrinho longe da mãe. Não é</p><p>justo.</p><p>O dr. Max se levantou, constrangido, segurando um punhado de papel</p><p>manchado de xixi.</p><p>— Vamos, Annie. Já temos choro suficiente nesta ala.</p><p>— D-desculpe. Buster vai conseguir voltar para a mãe por um tempo?</p><p>— Vou tentar devolvê-lo amanhã. E ter uma conversa bem séria com o</p><p>maldito criador. Por enquanto, ele pode ficar na minha sala, vou encontrar</p><p>uma caminha para ele.</p><p>— Quer que eu vá com você amanhã falar com o criador?</p><p>Ele pareceu surpreso.</p><p>— Você não vai estar no trabalho?</p><p>— Amanhã é sábado.</p><p>— Ah, sim, perco a noção do tempo aqui. — Ele sorriu e a expressão de</p><p>seus olhos ficou mais suave. — Só se você se responsabilizar pelos socos.</p><p>Preciso resguardar essas minhas mãos de cirurgião para operar milagres.</p><p>Você tem um bom gancho de direita, Annie?</p><p>— Consigo me virar. Cresci em um conjunto habitacional, sabe.</p><p>— Och, muito bem, então. Agora insisto que me acompanhe.</p><p>— Foi muito injusto o McRabugento levar o pobre Buster embora —</p><p>reclamou Polly enquanto elas seguiam para a saída do hospital, mais tarde.</p><p>Ela parava o tempo todo para acenar para as pessoas e perguntar como</p><p>estavam. — Oi, Paul, e o tornozelo? Pega leve na quadra na próxima vez!</p><p>Mercy! Você foi ao cabeleireiro? — O pessoal da limpeza, do</p><p>administrativo, médicos, enfermeiros... ela parecia conhecer todo mundo.</p><p>— Sou perfeitamente capaz de cuidar de um cachorrinho. Ele não tinha o</p><p>direito de dizer que não sou.</p><p>— Como você encontra tempo para conhecer todas essas pessoas? —</p><p>perguntou Annie quando Polly acenou para outro recepcionista.</p><p>— Ah, passei metade do meu tempo aqui nos últimos meses. Esperando</p><p>para fazer tomografias, exames de sangue, quimioterapia... Sinceramente,</p><p>tento tirar o melhor deste</p><p>hospital.</p><p>Annie também passara muito tempo no hospital, mas não sabia o nome</p><p>de ninguém. Antes de conhecer Polly, ela sempre ficava com o nariz</p><p>enfiado em um livro, ou tentava responder a e-mails de trabalho no celular,</p><p>sentindo-se culpada por não estar no escritório. De um jeito constrangido —</p><p>tentando parecer casual, mas errando feio —, Annie perguntou:</p><p>— Você conhece bem o dr. Max?</p><p>— O homem que enfiou a mão dentro do meu crânio? Conheço o</p><p>trabalho dele, sim.</p><p>— Bom... qual é a dele? Ele é... você sabe... — Annie sentiu que</p><p>enrubescia. Odiava aquilo. Nunca era um rosado delicado colorindo seu</p><p>rosto, mas uma explosão de vermelho, como quando se esmaga um tomate.</p><p>— Ele é casado ou coisa parecida? Estou perguntando porque ele</p><p>praticamente mora no hospital.</p><p>Polly começou a rir.</p><p>— Annie, sua safada. Você está de olho no dr. McRabugento?</p><p>— Não. Não, não estou. Estava só pensando na vida particular desses</p><p>médicos. Eles trabalham tanto. — Ele não usava aliança, mas podia ser por</p><p>motivos de higiene.</p><p>— Annie e Max, sentados embaixo de uma árvore...</p><p>— Xiu. — Annie olhou ao redor, preocupada.</p><p>— Não sei se ele é casado. Desconfio que seja casado com o trabalho.</p><p>Mas, Annie, não temos tempo para nos apaixonar, temos uma vida para</p><p>viver. Embora ele queira me impedir de ter qualquer diversão.</p><p>Annie pensou no conselho do dr. Max. Manter Polly estável.</p><p>— Escute, Polly, lamento sobre o cachorro. Mas há outras coisas</p><p>divertidas que podemos fazer. O que você quer experimentar na próxima</p><p>coisa feliz.</p><p>— Para ser franca, o que eu realmente adoraria fazer... por favor, não</p><p>me odeie por isso... é uma transformação no seu visual.</p><p>Annie gemeu.</p><p>— Sério? Isso é tão clichê. Vai mudar o básico se eu passar um pouco</p><p>de batom?</p><p>Polly enfiou o braço no dela. Annie torceu para não ter sido o molhado</p><p>com xixi do cachorro.</p><p>— Veja, eu entendo o que você está dizendo. E entendo que é meio</p><p>condescendente fazer uma transformação no visual de alguém. Mas há</p><p>tantos visuais diferentes no mundo. Tantas roupas, tantas cores de cabelo,</p><p>tantos tipos de maquiagem. E eu passei a maior parte da minha vida usando</p><p>as mesmas coisas. Terninhos, vestidos tubinho. Jeans, jeans e mais jeans.</p><p>Calças de ioga. O mesmo delineador Barry M. Por isso, agora estou</p><p>tentando usar todas as coisas aleatórias que tenho em meu guarda-roupa,</p><p>entende? Você sempre usa preto?</p><p>Annie baixou os olhos para a roupa que usava: calça e uma blusa cinza</p><p>que usara no trabalho.</p><p>— É só porque é mais fácil. Poupa tempo de manhã. — No instante em</p><p>que falou, Annie se deu conta de que soava como uma desculpa. E ela já</p><p>havia gostado de roupas, não? Tinha comprado um monte de roupas de</p><p>maternidade quando estava grávida, encantada com o próprio corpo</p><p>mudando, com a promessa do que estava por vir.</p><p>— Seria tão divertido — continuou Polly em um tom adulador. — Por</p><p>que você acha que eu me visto assim? — Ela mostrou a roupa que usava,</p><p>um vestido curto de babados cor-de-rosa com meia-calça laranja. — Não</p><p>tenho muito tempo, Annie. Talvez nunca mais possa usar calça montaria ou</p><p>bota de cowboy de novo. Tenho que fazer isso, é agora ou nunca. Então...</p><p>vem comigo? Lembre-se: se o plano A não funcionar, temos as outras letras</p><p>do alfabeto para escolher.</p><p>— É agora que você saca o trunfo do câncer?</p><p>— Achei que isso já estivesse implícito.</p><p>O que ela poderia dizer? Polly estava morrendo — o trunfo do câncer</p><p>era real. O mínimo que Annie poderia fazer era usar um vestido bobo.</p><p>— Tá bom. Por que você não vai para a minha casa e podemos, sei lá,</p><p>fazer as unhas ou alguma coisa assim?</p><p>— Fantástico. Vou levar brownies.</p><p>— Não temos nove anos — resmungou Annie. — Não somos</p><p>adolescentes dormindo uma na casa da... Oh.</p><p>— Annie? — Polly se virou ao ver que ela tinha parado. — Você ficou</p><p>pálida. Está tudo bem?</p><p>Ande. Esconda-se. Rápido. Rápido! Mas as pernas de Annie não</p><p>estavam se movendo. Ela estava paralisada, o olhar fixo para a frente, no</p><p>homem sentado na lanchonete. Não conseguia ver o que ele estava bebendo,</p><p>mas sabia o que deveria ser. Café com leite, um cubo de açúcar. Meio</p><p>torrão, caso estivesse tentando perder peso. Ele vestia jeans e uma camisa</p><p>polo verde, e seus braços eram fortes e bronzeados.</p><p>A voz dele gritando no corredor. “Annie, chame uma ambulância!” Ela</p><p>revirando os lençóis em busca do celular, fazendo um esforço enorme para</p><p>digitar o número da emergência enquanto o pânico a dominava...</p><p>Polly acenou com a mão na frente do rosto dela.</p><p>— Annie? Você está bem? — A voz dela era clara e aguda.</p><p>Annie voltou a si e se adiantou apressada até já ter passado a</p><p>lanchonete. Polly seguiu vacilante atrás dela em seus sapatos nada práticos,</p><p>parando para acenar para um médico residente.</p><p>— Ah, oi, Kieran, vai pegar o turno da noite hoje? Não se esqueça de</p><p>testar aqueles suplementos que eu mencionei. São ótimos para reforçar a</p><p>melatonina.</p><p>Annie afundou em um assento — de plástico verde, com o estofamento</p><p>escapando. Os barulhos do hospital a envolveram, rodas guinchando,</p><p>monitores bipando e pés apressados. Vidas sendo perdidas. Vidas só</p><p>começando.</p><p>— Qual é o problema? — perguntou Polly.</p><p>— Eu... é só... alguém que eu não via há algum tempo.</p><p>— Quem? Seu pai sumido? Seu único e verdadeiro amor? Alguma coisa</p><p>realmente a perturbou.</p><p>— Não. Não, estou bem. Eu só... eu não jantei. Acho melhor eu ir para</p><p>casa.</p><p>Ela seguiu muito rápido para a porta, a cabeça baixa, o rosto</p><p>parcialmente escondido pelo cachecol, embora ela achasse que ele não a</p><p>veria mesmo se passassem um pelo outro. Annie estava certa de que ele</p><p>nunca pensava nela.</p><p>DIA 20</p><p>EXPERIMENTE UM ESPORTE RADICAL</p><p>— É aqui? — perguntou Annie, nervosa.</p><p>Eles estavam no carro do dr. Max, que, assim como seu proprietário, era</p><p>meio malcuidado, além de ter lama e o que Annie desconfiou ser chocolate</p><p>com caramelo grudados no banco. Eles pararam do lado de fora de um</p><p>ferro-velho em Deptford, e não havia ninguém por perto. Pilhas de entulho</p><p>se misturavam a carros queimados e, de dentro de uma casinha pré-</p><p>fabricada, saía uma música da Rihanna.</p><p>— Foi aqui que Polly disse que o comprou. — O dr. Max deixou</p><p>escapar um grunhido. — Não acredito que ela veio até aqui sozinha. Às</p><p>vezes, acho que aquela moça deve ser maluca, com ou sem tumor no</p><p>cérebro.</p><p>— Eu devo entrar?</p><p>Annie estava com Buster aos seus pés, dando latidinhos enquanto roía o</p><p>tapete do carro.</p><p>— Vamos os dois. Não sei se é seguro aqui.</p><p>Eles tinham brincado sobre usar os punhos, mas Annie se sentiu nervosa</p><p>ao descer do carro, com Buster aconchegado em seu casaco. O lugar era</p><p>muito silencioso, a não ser pelo rádio e pelos estalos do metal enferrujado</p><p>com a brisa que batia.</p><p>— Olá? — chamou ela. Nada.</p><p>O dr. Max foi até a casinha. A parte de trás de sua camisa estava saindo</p><p>de dentro da calça.</p><p>— Olá, olá, alguém aí?</p><p>A porta da casa foi ligeiramente aberta e um homem de aparência</p><p>sinistra saiu, secando as mãos em um pedaço de pano. Ele usava uma</p><p>camiseta preta muito apertada, delineando braços grossos como troncos de</p><p>árvores.</p><p>— Que cês querem? — O homem comia parte das palavras.</p><p>— Hum... olá — disse Annie, nervosa. — Uma amiga minha comprou</p><p>este cachorrinho com você ontem, mas a questão é que ela não pode ficar</p><p>com ele... Ela tem câncer, sabe.</p><p>— Né problema meu.</p><p>— Este cachorro é novinho demais para estar separado da mãe —</p><p>esbravejou o dr. Max. — Onde está ela?</p><p>— Vendi.</p><p>— Pelo amor de Deus. Você ao menos tem uma licença de criador?</p><p>Deveria se envergonhar, camarada.</p><p>O homem mudou ligeiramente o pé de apoio, fazendo os músculos dos</p><p>braços ondularem. Annie começou a recuar, levando Buster com ela. Podia</p><p>sentir o coração dele disparado através de sua jaqueta, e seu próprio coração</p><p>também batia acelerado.</p><p>— Dr. Max, talvez devêssemos...</p><p>— Não serei intimidado. Estão infringindo a lei aqui.</p><p>O homem assoviou, como se estivesse chamando um cachorro, e dois</p><p>outros homens apareceram silenciosamente. Annie ficou paralisada.</p><p>— Hum, dr. Max...</p><p>— ... isto aqui é uma vergonha, é isso o que é, vou denunciar você para</p><p>a Sociedade Protetora dos Animais e exigir uma restituição integral do</p><p>que</p><p>a minha paciente pagou e...</p><p>— DR. MAX! — Annie já estava caminhando de volta para o carro. —</p><p>Acho que devemos sair daqui.</p><p>Mas Max estava enfrentando os homens. Ele era forte, mas não era</p><p>páreo para os três sujeitos enormes que agora se aproximavam dele. Annie</p><p>teve uma horrível visão dele caído no chão, o rosto transformado em uma</p><p>polpa vermelha. E era um rosto tão bonito...</p><p>— Por favor! — gritou ela, dirigindo-se ao homem que liderava o</p><p>grupo. — Ele só está aborrecido porque minha amiga tem câncer. Ele é o</p><p>médico dela, entende?</p><p>O Homem Assustador não disse nada, mas inclinou a cabeça para ela,</p><p>escutando.</p><p>Annie continuou.</p><p>— Ele é um bom médico. Ajuda muitas pessoas. Não bata nele... ele é</p><p>cirurgião, precisa tomar cuidado com as mãos.</p><p>— É médico?</p><p>— Sim. É sério, ele trabalha muito.</p><p>— Estou aqui, Annie, lembra?</p><p>Ela lançou um olhar irritado para ele.</p><p>— Xiu! Então, porque não vamos embora, levamos o cachorrinho e não</p><p>falamos mais sobre isso?</p><p>— Esqueça, não vou fugir, eu...</p><p>— CALE A BOCA, dr. Max.</p><p>Um dos homens estava se aproximando. Era ainda mais largo, como se</p><p>fosse o maior em uma série de bonecas russas. Suas mãos estavam sobre a</p><p>fivela do cinto, e Annie não entendia o que estava acontecendo — ele ia</p><p>bater em Max com o cinto? Então, o homem abaixou o jeans.</p><p>— Vê isto? O que é?</p><p>Max ficou perplexo. O homem estava mostrando a ele uma verruga em</p><p>seu traseiro peludo.</p><p>— Bem... é uma verruga.</p><p>— Da ruim?</p><p>— Não posso dizer com certeza. — Max estreitou os olhos para ver</p><p>melhor. — Não me parece ser nada demais, se não tiver mudado de</p><p>aparência recentemente.</p><p>— É antiga.</p><p>— Certo. Bem, você precisa confirmar com um dermatologista, mas</p><p>não vejo motivo para preocupação.</p><p>Ele subiu a calça e afivelou o cinto, e os três homens trocaram um olhar</p><p>eloquente. O líder foi até a casinha e saiu de lá com um punhado de notas</p><p>ensebadas.</p><p>— Metade — grunhiu. — Não posso pegar o cachorro. Não tem onde</p><p>pôs.</p><p>— Vamos levá-lo — Annie apressou-se em dizer. — Ele pode ficar</p><p>comigo por um tempo. Está tudo bem, sério. — Embora não tivesse ideia de</p><p>como manteria um cachorro em um apartamento no décimo andar. Só sabia</p><p>que eles tinham que sair dali o mais rápido possível, ou ela teria de recolher</p><p>os restos do dr. Max do chão. — Por favor — sussurrou para ele. — Seus</p><p>pacientes precisam de você. Polly precisa de você.</p><p>— Eu poderia enfrentar esses caras.</p><p>— Eu sei. Sei que poderia. Mas podemos só... deixar pra lá?</p><p>Com os punhos ainda cerrados, o dr. Max assentiu, relutante.</p><p>— Você pode mesmo tomar conta do cachorro? Eu ficaria com ele, mas</p><p>nunca estou em casa... não seria justo com o mijãozinho.</p><p>— É claro que posso. Por favor, podemos ir?</p><p>Finalmente, ele se virou, e Annie voltou para o carro tão rápido, que</p><p>poderia facilmente ter ganhado a corrida de cem metros na escola em vez de</p><p>chegar por último, como sempre acontecera na vida real. Buster ainda</p><p>estava pressionado contra o corpo dela, sem ter noção do que estava</p><p>acontecendo, a língua cor-de-rosa para fora.</p><p>— Parece que você arranjou um cachorro — comentou o dr. Max</p><p>enquanto ligava o carro. — Vamos. É melhor encontrarmos um pet-shop.</p><p>DIA 21</p><p>TRANSFORME SEU VISUAL</p><p>— Está pronta para o seu close, sra. Hebden?</p><p>— Nem um pouco. Mas é melhor você entrar.</p><p>Annie abriu a porta para uma Polly vestida como um pôster de</p><p>recrutamento da Segunda Guerra Mundial. Macacão azul-petróleo, batom</p><p>vermelho, lenço na cabeça. Annie, por sua vez, estava usando calça de</p><p>pijama e um agasalho com capuz. O agasalho tinha uma mancha grudenta</p><p>de alguma coisa na lateral — provavelmente, mingau. Talvez Polly</p><p>estivesse certa. Ela precisava de uma transformação no visual.</p><p>— Pode me ajudar com isso? — Polly estava lutando para puxar uma</p><p>mala enorme. — Ah, veja, é o meu bebê! — Ela se abaixou para</p><p>cumprimentar Buster e deixou que ele lambesse o seu rosto.</p><p>— Você deveria estar fazendo isso?</p><p>— Ah, você também, não. Estou morrendo, mesmo. Prefiro morrer</p><p>tendo pegado essa coisinha linda no colo.</p><p>Annie achava que o coisinha linda estava abusando da sorte. Ela e</p><p>Costas tinham levantado dez vezes durante a noite para descer com Buster</p><p>para ele “fazer pipi”, ainda que Costas tivesse que estar de pé às cinco da</p><p>manhã para servir café. Apesar disso, Annie tinha encontrado várias poças</p><p>suspeitas quando se levantou e precisou deixar todas as janelas abertas para</p><p>o cheiro sair. Por causa disso, o apartamento agora estava gelado. Por sorte,</p><p>Costas recebera o cachorrinho com entusiasmo e já se referia a si mesmo</p><p>como “papai” do bicho, o que Annie achou preocupante. Buster não podia</p><p>ficar ali.</p><p>Annie começou a se sentir alarmada com o tamanho da mala.</p><p>— Não vamos só... você sabe, fazer as unhas dos pés e assistir a Orange</p><p>is the New Black?</p><p>Polly riu.</p><p>— Boa tentativa, Hebden. Você conhece o meu lema. Se não for para</p><p>arrasar, nem saia de casa.</p><p>— Eu estou em casa.</p><p>Mas Annie sabia que não adiantava resmungar, e, se fosse ser cem por</p><p>cento honesta consigo mesma, ficou um pouquinho animada depois de ver</p><p>os tecidos que Polly estava tirando da mala. Peles falsas. Sedas. Estampas</p><p>vermelhas, verdes e roxas.</p><p>Polly a avaliou criticamente.</p><p>— Certo. Primeiro o básico. Quando foi a última vez que fez alguma</p><p>coisa em seus pés?</p><p>Dez minutos mais tarde, depois de muito protestar, Annie estava</p><p>enrolada apenas em uma toalha, os pés de molho em uma bacia e um creme</p><p>que era melhor não mencionar — e que ardia — em suas partes íntimas,</p><p>enquanto Buster roía seus sapatos em um canto. Ela havia tentado dizer que</p><p>sua falta de rotinas de beleza era um manifesto feminista, mas Polly apenas</p><p>erguera suas sobrancelhas não existentes ao ouvir isso.</p><p>— É mesmo? Ou é só porque não deixa ninguém se aproximar de você</p><p>há anos?</p><p>— As duas coisas — respondeu Annie, amuada. Agora ela observava</p><p>Polly se aproximar segurando algo que parecia fita adesiva transparente. —</p><p>O que é isso?</p><p>— Nada. Ai, meu Deus, o que é aquilo ali?</p><p>— O quê... Aaaai! — Polly tinha colado alguma coisa rapidamente na</p><p>perna dela e arrancado com a mesma rapidez. — Mãe de Deus! O que foi</p><p>isso?</p><p>— Cera, boba. É melhor terminarmos isso, ou você vai ficar com</p><p>apenas uma faixa depilada.</p><p>— Odeio você — murmurou Annie.</p><p>E não parou por aí. Os pés dela foram lixados até se renderem; as unhas</p><p>dos pés, cortadas; as unhas das mãos, tratadas.</p><p>Polly não parava de balançar a cabeça.</p><p>— Como deixou que ficassem em um estado tão lamentável? Não olha</p><p>para elas toda vez que baixa os olhos para o teclado?</p><p>Annie teve vontade de dizer que era fácil ignorar as coisas. Bastava</p><p>fechar os olhos, ou olhar para o outro lado, e dizer a si mesma que,</p><p>comparado com o todo, não importava se as suas unhas estavam roídas e as</p><p>cutículas vermelhas e quebradiças. Mas ela não podia falar, porque seu</p><p>rosto estava emplastrado com uma máscara que parecia gesso e mal</p><p>conseguia respirar com medo de quebrá-la. Annie sentia o corpo vibrando</p><p>em alarme, já que partes dele que haviam permanecido tranquilamente</p><p>negligenciadas por anos estavam sendo subitamente atacadas,</p><p>desflorestadas, polidas e hidratadas.</p><p>— Não é sobre beleza — disse Polly em tom de repreensão. — Há</p><p>centenas de modos diferentes de ficar incrível. É sobre autocuidado. Se seus</p><p>cabelos estiverem oleosos e as mãos machucadas e ressecadas, como você</p><p>pode se sentir bem?</p><p>Annie estava tirando as sobrancelhas quando a porta foi aberta. Ah, não.</p><p>Costas. Ela tinha esperança de que ele fosse passar a noite fora. Ele estava</p><p>usando a camiseta do trabalho e cheirava a café, mas seu sorriso era largo.</p><p>— Polly!</p><p>— Oi pra você. — Polly e ele trocaram beijos. — Estou fazendo uma</p><p>transformação no visual da sua adorável colega de apartamento.</p><p>Costas bateu palmas.</p><p>— Minhas irmãs também fazem isso. Eu costumava pintar as unhas</p><p>delas!</p><p>Dez minutos depois, Annie estava olhando para o teto, profundamente</p><p>envergonhada, enquanto Polly pintava suas unhas da mão de um dourado</p><p>cintilante e Costas pintava as dos pés de prateado. Ter seu colega de quarto,</p><p>que era praticamente um adolescente, ajoelhado entre seus tornozelos era</p><p>algo que ela jamais imaginara que aconteceria.</p><p>Buster estava sentado</p><p>observando atentamente, a cabeça inclinada para o lado.</p><p>— Estamos quase terminando? — perguntou Annie. — É porque Grey’s</p><p>passa às dez, e...</p><p>— Não estamos nem perto de terminar — retrucou Polly. — Ainda</p><p>temos que cuidar do cabelo, da maquiagem e das roupas. Deixa eu</p><p>perguntar uma coisa. Costas, o que acha que Annie deveria usar?</p><p>— Saias longas — disse ele na mesma hora. — Ela é... o que vocês</p><p>chamam de uma mulher curvilínea, então precisa de... você sabe. — Costas</p><p>passou as mãos pelos quadris. — Saias longas. E alguma coisa justa aqui.</p><p>— Ele colocou as mãos em concha na frente do peito magro musculoso.</p><p>— Brilhante! — Polly assentiu, manchando os dedos de Annie com</p><p>esmalte. — Como um vestido de formatura. É uma ótima ideia. Então, acho</p><p>que uma saia lápis e uma blusa, saltos altos, sabe.</p><p>— Não a calça larga preta — disse Costas em tom de lamento, como se</p><p>ele e Polly já tivessem discutido aquilo.</p><p>Annie achou que aquilo era um pouco hipócrita vindo de alguém que</p><p>usava camisetas tão apertadas, que era possível ver o que ele tinha comido</p><p>no café da manhã (normalmente, shakes de proteína).</p><p>— Estou ouvindo vocês — falou ela, irritada.</p><p>Polly a ignorou e se levantou de um pulo.</p><p>— Annie, não se mova por cinco minutos. Vamos vestir você.</p><p>Uma saia de seda vermelha com uma anágua com babados por baixo.</p><p>Um suéter justo de manga curta, como uma roupa saída dos anos 50.</p><p>— Apoie-se em mim. — Polly enfiou um escarpim vermelho no pé de</p><p>Annie. — Agora o outro.</p><p>Eram altos. Muito mais altos do que qualquer coisa que Annie usaria, e</p><p>ela vacilou de forma alarmante sobre eles.</p><p>— Não consigo andar com essas coisas! Como eu poderia passar por</p><p>aquele lamaçal ao redor da estação Lewisham?</p><p>— Annieeee... você não anda com uma roupa dessas. Pega um táxi e</p><p>desliza regiamente até a porta do restaurante.</p><p>— Não posso pagar um táxi. E nunca vou a restaurantes. — Não ia</p><p>mais, pelo menos.</p><p>Polly revirou os olhos.</p><p>— É para uma ocasião especial. Alguma coisa pela qual valha a pena se</p><p>arrumar, para impressionar. Entende?</p><p>Annie não conseguia se lembrar de já ter tido uma ocasião como aquela.</p><p>Mesmo no dia do seu casamento, Mike disse que podiam muito bem ir no</p><p>carro deles para o cartório. A casa estava custando cada centavo que</p><p>tinham, e não fazia sentido gastarem dinheiro à toa.</p><p>— Bem, não posso usar isso no escritório; vão rir de mim.</p><p>— É claro que não. É por isso que temos opções. Costas!</p><p>Costas, que estava usando um chapeuzinho com véu sobre o rosto,</p><p>começou a produzir figurinos em cabides.</p><p>— Um dia de folga casual. — O visual contava com botas até os</p><p>joelhos, uma minissaia de camurça, legging e um suéter preto com decote</p><p>redondo. — Exiba seus peitos, Annie! — Outro floreio, outro figurino. —</p><p>Encontro à noite.</p><p>— Como se houvesse alguma chance — resmungou Annie.</p><p>Um vestido midi estampado de vermelho com babados nas mangas, que</p><p>Annie teve que admitir que era uma graça, para ser usado com uma jaqueta</p><p>de motoqueiro de couro.</p><p>— Para deixar mais durona — explicou Costas. — Tipo, grrr, a gata</p><p>motoqueira.</p><p>Nunca ninguém descrevera Annie como gata motoqueira.</p><p>— Dia nas corridas. — Um vestido floral com alças largas, a saia em A</p><p>espessa com cintura justa, em tons de amarelo e rosa. — Um grande chapéu</p><p>também. E salto alto.</p><p>— Nunca fui às corridas na vida — reclamou Annie. — O que devo</p><p>usar nos dias normais? Para trabalhar. Para ir ao hospital.</p><p>— Use este vestido vermelho amanhã — ordenou Polly. — Com a</p><p>jaqueta. E botas, se você tiver... que não passem do meio da perna. Os</p><p>cabelos presos em um rabo de cavalo. Batom vermelho. Vou te mostrar</p><p>como fazer.</p><p>Os cabelos de Annie foram enrolados em bobes grandes. Ela tinha a</p><p>sensação de que partes dela estavam sendo arrancadas, trocadas e colocadas</p><p>de volta novamente, como quando se lava um par de cortinas sujas. Mas de</p><p>que adianta aquilo, se você continua exatamente a mesma por dentro?</p><p>Depois de algum tempo, Costas checou seu relógio Casio.</p><p>— Hora de sair!</p><p>Eram nove e meia da noite.</p><p>— Ah, como é bom ser jovem — comentou Polly com um suspiro. —</p><p>Eu adorava ir ao bar G-A-Y no domingo à noite. Divirta-se, querido.</p><p>— Posso usar este chapéu?</p><p>— Por favor. Ficou fabuloso. E está desperdiçando seu talento naquele</p><p>café, você realmente entende de roupas.</p><p>Ele deu ombros.</p><p>— É só até eu conseguir outra coisa. Tchau, Polly, tchau, Annie. Gata</p><p>motoqueira! Grrr. — Costas se abaixou para beijar Buster entre os olhos</p><p>escuros. — Tchau, tchau, fofura. Não se preocupe, o papai vai voltar a</p><p>tempo de levar você para fazer pipi de manhã.</p><p>Annie realmente esperava que ele não ficasse muito apegado ao</p><p>cachorro.</p><p>— Acho que devemos arrumar isso. — Ela começou a recolher</p><p>braçadas de roupas, distraída com o cintilar dourado das unhas das mãos. —</p><p>Aliás, onde você conseguiu todas essas coisas? Não são suas, com certeza.</p><p>— Polly era muito mais magra do que Annie e uns trinta centímetros mais</p><p>alta.</p><p>— Tenho uma amiga estilista, Sandy. Ela tem quartos cheios de roupas,</p><p>é in-crí-vel. Ela disse que você pode ficar com o que gostar, pois recebe</p><p>toneladas de coisas de empresas que têm a esperança de que suas clientes</p><p>famosas sejam fotografadas usando.</p><p>— Obrigada.</p><p>Não que Annie estivesse planejando usar algo daquilo. Era divertido</p><p>brincar de se arrumar, mas ela não iria sucumbir ao clichê de uma</p><p>transformação visual que muda sua vida.</p><p>Polly estava sentada, como se tivesse ficado subitamente sem energia.</p><p>— Então. Agora que estamos sozinhas, você vai me contar o que foi</p><p>aquilo tudo ontem?</p><p>Annie ficou paralisada com um chapéu de palha mole nas mãos.</p><p>— Hum... o quê?</p><p>— Aquele cara de quem você estava fugindo.</p><p>Annie apertou com força a aba do chapéu.</p><p>— Eu não estava fugindo.</p><p>Polly fez uma pausa.</p><p>— Annie. Tudo bem se não quiser me contar. Mas não minta, tá? Tem</p><p>alguma coisa a ver com o motivo de você morar aqui e dividir os custos</p><p>com o Costas?</p><p>— Moro aqui porque não consigo comprar um apartamento, e não</p><p>consigo pagar o aluguel sozinha, e não consigo um lugar melhor.</p><p>Polly examinou as próprias unhas, pintadas nas cores do arco-íris.</p><p>— Há muitos “não consigo” nessa frase, senhora estraga-prazeres.</p><p>Annie enfiou o chapéu dentro da mala, talvez com mais força do que o</p><p>necessário.</p><p>— Escute. A minha vida não foi sempre assim, certo? Só estou...</p><p>passando por um momento ruim. Eu gostava de roupas. Costumava me</p><p>arrumar quando saía, usava jeans, uma blusa bonita, sapatos de salto,</p><p>arrumava o cabelo. Também comprava revistas de decoração, fazia bolos e</p><p>estampava minha mobília com estêncil. Tudo isso. Até já fui proprietária de</p><p>uma casa... um lugar lindo, que eu adorava... mas isso foi com o Mike.</p><p>— E Mike é...?</p><p>Annie suspirou. Odiava aquela parte. Odiava o modo como as pessoas</p><p>olhavam para ela depois que ouviam a história.</p><p>— Ele era meu marido.</p><p>— Você é divorciada! Que chique. Ou ele morreu de um jeito horrível?</p><p>Ah, Deus, lamento se ele morreu de um jeito horrível.</p><p>— Não, até onde eu sei, ele está ótimo, ainda morando na nossa casa</p><p>com Jane.</p><p>— Mike e Jane parece o nome de um livro infantil. E Jane é...?</p><p>— Ela era a minha melhor amiga. Desde que tínhamos cinco anos.</p><p>Annie-e-Jane. Ensino fundamental, ensino médio, visitas a Jane na</p><p>universidade, mochilão pela Espanha, madrinha de casamento de Annie.</p><p>Até o dia em que Mike chegou em casa e disse: Annie, preciso contar uma</p><p>coisa. Ela só compreendera partes daquela conversa, tamanho o seu choque.</p><p>Apaixonado... não pretendia... nunca quis magoar você.</p><p>— Ah, entendi. — Polly sorriu. — O cara no hospital era o Mike?</p><p>— Sim.</p><p>— O que ele estava fazendo lá? Está doente?</p><p>— Não sei.</p><p>Havia outra possibilidade para ele estar lá, mas era tão terrível que</p><p>Annie não queria nem pensar a respeito.</p><p>— Sinto muito, deve ter sido péssimo, mas adoro uma boa história de</p><p>sofrimento. Seu marido deixou você por sua melhor amiga! Fica melhor?</p><p>Quer dizer, pior, é claro. Eles se casaram?</p><p>Em resposta, Annie pegou o celular no bolso. Ela procurou no</p><p>Facebook até encontrar a foto de uma loira sorridente segurando um</p><p>coquetel cor-de-rosa durante as férias. O nariz da mulher</p><p>também estava</p><p>rosa — Jane nunca usava filtro solar o bastante, e Annie sempre implicou</p><p>com ela por isso.</p><p>Polly espiou no celular.</p><p>— Jane Hebden. Esse era o sobrenome dele? Você não mudou seu</p><p>sobrenome de volta para Annie Clarke?</p><p>— Não.</p><p>Annie não sabia bem por quê. Talvez por achar que já havia perdido o</p><p>bastante. Uma espécie de rancor... não quis apagar todos os traços do</p><p>casamento deles. Jane ficara com todo o resto.</p><p>— E você ainda segue os dois no Facebook? Assim pode olhar para as</p><p>fotos deles e se torturar?</p><p>— Hum... sim.</p><p>Na verdade, era o principal passatempo de Annie, fuçar sobre os dois na</p><p>internet.</p><p>— Uau. — Polly se levantou, e pareceu ter que fazer algum esforço. —</p><p>Preciso admitir que essa é uma bela coleção de sofrimento, Annie. Mais</p><p>alguma coisa? É melhor não ter câncer também, já vou avisando. Isso é</p><p>coisa minha. É melhor não tentar me vencer na competição pela “história</p><p>mais trágica do mundo”.</p><p>Por um instante, Annie pensou em contar tudo a ela — o sangue no</p><p>pijama de Mike, as luzes azuis da ambulância preenchendo sua sala, o som</p><p>de seus próprios gritos vindo de algum lugar dentro dela —, mas não</p><p>conseguiu. Achava que não conseguiria dizer tudo aquilo em voz alta.</p><p>— Só o emprego ruim, o apartamento, o divórcio e a mãe doente.</p><p>— Ótimo. — Polly se inclinou para ajudar Annie a recolher as roupas,</p><p>os chiffons e rendas e sedas e couros. — Somos uma bela dupla, não somos,</p><p>Annie Hebden? Eu estou morrendo e você provavelmente desejaria estar.</p><p>— Na verdade, já desejei bastante.</p><p>— Não a culpo. É mesmo muita merda. A pergunta é... o que você vai</p><p>fazer a respeito?</p><p>— Como assim?</p><p>— Ora, para mim é tarde demais... posso tentar aproveitar meus últimos</p><p>cento e poucos dias, mas não muito mais que isso. Você ainda tem a vida</p><p>toda. O que vai fazer dela? Lembre-se: Não é sobre contar os dias, é sobre</p><p>fazer os dias contarem.</p><p>Annie não disse nada. Aquela era uma pergunta apavorante demais para</p><p>ela. A raiva e a dor que sentia haviam moldado sua vida, como uma pérola</p><p>se forma ao redor do grão de areia na concha da ostra. Quando deixou de</p><p>ser Annie, esposa de Mike e mãe de Jacob, passou a ser Annie que odiava</p><p>Jane e Mike. Que fora traída. Que vivia com raiva, com rancor. O que ela</p><p>seria sem aquelas coisas? Se deixasse aqueles sentimentos irem embora?</p><p>— Grandes perguntas — comentou Polly. — E o que me diz de, por</p><p>enquanto, apenas assistirmos TV tomando uma xícara de chá?</p><p>— Eu adoraria — disse Annie, grata.</p><p>— Mas amanhã, Annie Hebden-Clarke, você vai usar o vestido</p><p>vermelho, passar batom do jeito que eu ensinei, arrumar o cabelo e fazer</p><p>alguma coisa para mudar tudo isso. Combinado?</p><p>Annie assentiu com a cabeça. Era mais fácil apenas se deixar levar, ela</p><p>já havia aprendido àquela altura.</p><p>— Deixa eu tirar essa maquiagem e vou preparar chá para nós.</p><p>Polly parecia exausta, apesar do tom de voz animado. Seus olhos</p><p>estavam fundos, com sombras esverdeadas que não tinham nada a ver com</p><p>maquiagem.</p><p>— Tudo bem. Acho que vou fechar os olhos por um instante.</p><p>No banheiro, Annie procurou pelo removedor de maquiagem. Já fazia</p><p>muito tempo que não usava nada além de protetor labial. Quando</p><p>encontrou, parou ao perceber outra coisa no armário do banheiro. Uma</p><p>caixinha de comprimidos com o nome MAUREEN CLARKE na frente.</p><p>Comprimidos para dormir, prescritos quando sua mãe começou a apresentar</p><p>os primeiros sintomas, que Annie acabou escondendo porque Maureen</p><p>tomara cinco em um dia, todas as vezes esquecendo que já havia tomado.</p><p>Annie tinha uma lembrança da época — tudo perdido, o marido e a</p><p>melhor amiga morando juntos na casa dela. A polícia aparecendo. Senhora,</p><p>acho que encontramos a sua mãe. Andando pela rua, de camisola, sem ter</p><p>ideia de quem era ou de onde estava. Annie havia ficado parada naquele</p><p>banheiro, olhando para aqueles comprimidos. Ela correra os dedos pelas</p><p>pequenas saliências no papel laminado e se imaginara tirando os</p><p>comprimidos e os engolindo, um a um. Assim iria dormir e não acordaria</p><p>para o esmagador muro de sofrimento que parecia ter caído sobre dela. Não</p><p>fizera aquilo, é claro — a mãe precisava dela. Mas, mesmo assim, ainda não</p><p>havia jogado os comprimidos fora. Ela tocou a caixa gentilmente, então</p><p>fechou a porta do armário.</p><p>Na sala, Polly dormia, respirando lentamente, com Buster aconchegado</p><p>em seus braços roncando baixinho. Uma das orelhas dele estava em pé e a</p><p>outra abaixada. Annie cobriu os dois com uma manta e ligou a TV em</p><p>Grey’s Anatomy. Se ao menos o hospital Lewisham fosse cheio de gente</p><p>bonita como o Seattle Grace. Era preciso admitir que o Lewisham tinha o</p><p>lindo e rígido dr. Quarani. E havia o dr. Max, nervoso e desarrumado, com a</p><p>barba por fazer e as camisas amarrotadas. Talvez amanhã ela usasse o</p><p>vestido vermelho, afinal. Se usasse preto mais uma vez, alguém poderia</p><p>confundi-la com o asfalto e andar por cima dela.</p><p>DIA 22</p><p>FLERTE COM ALGUÉM</p><p>— Annie?</p><p>Ela se virou do balcão da cafeteria onde estava comprando o café da</p><p>manhã — um café com leite com calda e um pãozinho doce. Havia poucas</p><p>outras coisas mais capazes de tirá-la da cama em uma manhã escura e</p><p>gelada.</p><p>— Ah, oi, dr. Max.</p><p>Annie reposicionou o café em uma vã tentativa de esconder o pãozinho.</p><p>O dr. Max parecia ter passado a noite toda acordado de novo. Seu</p><p>uniforme azul estava amassado e os cabelos, arrepiados em vários ângulos,</p><p>como se ele tivesse enfiado o dedo em uma tomada. Ao mesmo tempo, vê-</p><p>lo fez com que uma espécie de calor começasse a se espalhar partindo do</p><p>estômago de Annie, descendo até os dedos dos pés, subindo até as mãos e</p><p>chegando ao topo da cabeça. Ele franziu o cenho para ela.</p><p>— Você parece diferente. Fez alguma coisa?</p><p>Annie estava usando o vestido vermelho, como fora orientada, com o</p><p>casaco de couro e as botas. Os cabelos ainda estavam sedosos e com</p><p>movimento por causa dos bobes, e ela os prendera em um rabo de cavalo.</p><p>— Ah, eu só... Polly repaginou meu visual.</p><p>Ele revirou os olhos.</p><p>— Francamente. Aquela mulher... Vocês têm o que, doze anos? E o que</p><p>havia de errado com a sua aparência anterior?</p><p>Annie odiava ter que admitir, mas havia saído de casa com uma leveza</p><p>extra no passo naquela manhã, sentindo os cabelos balançarem atrás dela.</p><p>Costas, que estava chegando da noitada quando ela saía, coberto de glíter,</p><p>rosnara de novo para ela, o que Annie considerou um bom sinal. E ali</p><p>estava o dr. Max, olhando-a com atenção.</p><p>— É um vestido — disse ele, por fim. — É isso que está diferente?</p><p>— Ah, sim, é novo.</p><p>— É bonito. Quer dizer, a cor é bonita. Quer dizer...</p><p>Annie sentiu que todo o seu rosto ficava vermelho como o vestido. E</p><p>arriscou:</p><p>— Quer um café? Estou só tomando o café da manhã antes de ir para o</p><p>trabalho.</p><p>— Hummm. Bem, seria bom fazer uma pausa de cinco minutos. Tenho</p><p>que operar o cérebro de alguém em uma hora e estou tão cansado, que</p><p>posso acabar dormindo com as mãos dentro do crânio.</p><p>— Que imagem horrível...</p><p>— Normal. Esse não é um trabalho das nove às cinco.</p><p>Ele pediu um expresso triplo e pegou uma nota de dez toda amassada</p><p>para pagar, mas Annie afastou a ideia com um aceno de mão.</p><p>— Eu pago. É o mínimo que eu posso fazer, agora que minha mãe está</p><p>melhorando.</p><p>Até a mãe comentara sobre o novo visual de Annie, dizendo:</p><p>— Que vestido bonito, Sally, posso pegar emprestado para ir dançar?</p><p>Sally era uma amiga de juventude da mãe de Annie, trazida de volta à</p><p>mente dela quarenta anos depois.</p><p>Annie e Max se sentaram em uma mesa pequena engordurada da cor de</p><p>notícias ruins. O dr. Max virou o expresso de um gole.</p><p>— Isso é bom, mas você sabe que talvez não dure. Os testes de Sami</p><p>estão indo bem até agora, mas há um limite para o que o remédio</p><p>experimental pode fazer por ela.</p><p>— Eu sei. Só estou feliz por ela não estar tentando arremessar cadeiras.</p><p>Os olhos dele estavam cansados.</p><p>— Não é fácil. E você? Está se cuidando? Dormindo o suficiente e tudo</p><p>o mais?</p><p>— Eu tento. É difícil vir aqui todo dia e ainda trabalhar, sem falar nos</p><p>planos de Polly. Além disso, agora tenho Buster para me manter acordada.</p><p>— Como está o mijãozinho?</p><p>— Até agora, ele comeu cinco livros, três pares de sapatos e um</p><p>abacate</p><p>inteiro. Com casca e tudo.</p><p>Além das várias subidas e descidas de elevador, durante a noite toda, na</p><p>vã tentativa de evitar poças de xixi no chão.</p><p>— Ele vai precisar tomar vacinas e outras coisas. E você sabe que não</p><p>pode ficar com ele para sempre. Não mora em um apartamento? Quem</p><p>toma conta dele quando você vai para o trabalho?</p><p>— Sim. Eu sei, eu sei. Tive que contratar uma pessoa para passear com</p><p>ele. — Uma despesa de fazer chorar que pegara Annie desprevenida. —</p><p>Mas Buster faz a Polly feliz.</p><p>O dr. Max terminou o café e franziu o cenho. Annie disfarçou um</p><p>sorriso: ele tinha gotas de café na barba por fazer.</p><p>— Não deixe a Polly intimidá-la. Sei que ela é muito divertida e</p><p>cativante, mas lembre-se de que o cérebro dela está em processo de</p><p>implosão, certo? Talvez nem sempre Polly seja racional.</p><p>— Ah, tudo bem. Acho que fui um pouco racional demais por muito</p><p>tempo, se entende o que eu quero dizer.</p><p>Ele suspirou.</p><p>— Lamentavelmente, se em algum momento eu tiver um lapso de</p><p>racionalidade, pessoas literalmente morrem.</p><p>— Em algum momento você tira folga? Quer dizer, é ocupado demais</p><p>aqui?</p><p>— Há apenas dois neurologistas trabalhando no hospital no momento, e</p><p>mal conseguimos dar conta de tudo. Não somos pagos para ficar aqui o</p><p>tempo todo, mas se não ficarmos, como eu disse, pessoas morrem.</p><p>Annie comeu o último pedaço do pãozinho e reparou que estava todo</p><p>manchado de batom. Era por isso que ela normalmente não se dava ao</p><p>trabalho de usar.</p><p>— É melhor eu ir. O dever me chama.</p><p>Ele olhou a hora.</p><p>— E a mim também. Eu deveria estar cerrando o crânio de alguém neste</p><p>momento.</p><p>E Annie tinha que... o que ela tinha que fazer? Passar alguns</p><p>documentos adiante, digitar alguns números? Era embaraçoso se dar conta</p><p>de como o seu trabalho tinha pouca importância. Ela se levantou.</p><p>— Bem, obrigada mais uma vez por ajudar a minha mãe. E boa sorte</p><p>com o negócio do cérebro.</p><p>— Obrigado pelo café. — Ele ainda a observava. — É o vestido, eu</p><p>acho. Bonito.</p><p>No ônibus, Annie se sentou ao lado de uma adolescente com fones de</p><p>ouvido pulsando e tocando uma música alto. Normalmente, ela suspiraria e</p><p>torceria o nariz, pensando coisas horríveis sobre a pessoa. Mas hoje ela não</p><p>se incomodou tanto. Sua mãe estava bem, ao menos por enquanto, ela</p><p>estava usando um belo vestido e tinha tomado café com um médico. E</p><p>ainda não eram nem nove da manhã. Annie começou a pensar em sua rotina</p><p>diária. Levantar-se, entrar no chuveiro mofado, comer uma tigela de cereais,</p><p>vestir-se com alguma roupa preta. Sair. Esperar pelo ônibus, mexendo o</p><p>corpo e suspirando no frio caso estivesse atrasada. Ficar espremida dentro</p><p>do ônibus, normalmente sem lugar para se sentar. Chegar ao trabalho,</p><p>digitar o código da porta, sentir o coração afundar no peito porque, por mais</p><p>que o trajeto até ali fosse horrível, era o paraíso comparado a estar no</p><p>escritório. Sentar-se à mesa. Ligar o computador. Responder a e-mails.</p><p>Almoço à uma da tarde — sentada diante da mesa, comendo um sanduíche,</p><p>stalkeando Mike e Jane no Facebook. E se hoje ela fizesse alguma coisa</p><p>diferente? E se mudasse?</p><p>A garota tirou os fones de ouvido e passou por Annie para descer.</p><p>— Vestido legal — disse em um tom descontraído.</p><p>— Obrigada!</p><p>Annie ainda continuou sorrindo por um bom tempo depois que a garota</p><p>desceu.</p><p>Quando Annie chegou em sua parada, seu olhar se fixou na padaria ao lado</p><p>do ponto de ônibus, em uma vizinhança meio decaída, que cheirava a</p><p>açúcar de confeiteiro e chocolate derretido. Em um impulso, ela entrou.</p><p>Dez minutos mais tarde, um pouco constrangida, Annie chegou ao</p><p>trabalho. Outra pessoa precisou digitar o código para que ela entrasse, já</p><p>que estava carregando uma caixa grande cheia de pãezinhos.</p><p>— Obrigada.</p><p>— Tem alguma coisa boa aí dentro? — O homem indicou a caixa com</p><p>um aceno de cabeça. Annie achava que ele trabalhava no andar de cima. Às</p><p>vezes, ela o via fumando do lado de fora, na chuva.</p><p>— Pãezinhos. Hum... quer um?</p><p>O coração dela disparou. O homem ia rir, achar que ela era maluca.</p><p>— Sério?</p><p>— Claro. Tem um monte.</p><p>— Nossa, obrigado! — Agora ele estava sorrindo, e até então Annie só</p><p>o vira parecendo infeliz e desanimado. — Muito obrigado mesmo. Mais um</p><p>dia na batalha, né?</p><p>— Sim. — Ela revirou os olhos e sorriu, enquanto o homem seguia para</p><p>o elevador e Annie passava pela recepcionista, que assistia à cena de olhos</p><p>arregalados. — Pãozinho? — perguntou.</p><p>— Estou na dieta dos dois dias.</p><p>— Ah, bem, talvez um outro dia.</p><p>Annie abriu a porta do escritório e viu Jeff saindo da cozinha com a</p><p>mesma caneca de café manchada de todo dia nas mãos — estampada com a</p><p>logomarca de uma empresa de software.</p><p>— Bom dia.</p><p>— Ah. Oi, Annie. — O tom dele não tinha grande inflexão. Ela sempre</p><p>parecia tão abatida quanto todo mundo naquele prédio? — Você está... —</p><p>Jeff reparou em seu vestido e maquiagem. — Ocasião especial?</p><p>— Ah, não. Trouxe pãezinhos. Quer um?</p><p>Jeff pareceu espantado.</p><p>— Ah, isso é... nossa. Hum. Tem o bastante?</p><p>— Claro.</p><p>Annie levou os pãezinhos até a mesa central onde o pessoal do</p><p>escritório costumava fazer a triagem da correspondência, sentindo todos os</p><p>olhares sobre ela. Era irritante. Annie sabia que a maioria deles a</p><p>considerava uma antissocial, antipática e pouco disposta a gastar dinheiro.</p><p>— Hum... eu trouxe alguns pãezinhos, se alguém quiser... — Ela deixou</p><p>a frase morrer, subitamente certa de que estavam todos seguindo alguma</p><p>dieta sem glúten.</p><p>Mas Jeff já estava pegando um com cobertura de creme.</p><p>— Obrigada, Annie. Isso vai me ajudar a aguentar as três horas da</p><p>reunião de orçamento.</p><p>Depois Syed se aproximou, e então, Fee.</p><p>Annie foi para a mesa dela e ligou o computador.</p><p>— Oi, Sharon. — Ela podia muito bem ir até o fim naquela ideia de</p><p>“alguma coisa diferente”.</p><p>Sharon estivera observando todo o incidente dos pãezinhos com os</p><p>olhos estreitados enquanto o resto do escritório atacava a caixa como um</p><p>bando de corvos.</p><p>— Não é muito saudável, certo? Pães doces. — Aquilo vindo de uma</p><p>mulher que sempre pedia duas porções de fritas no almoço, uma para comer</p><p>na hora e a outra para beliscar durante a tarde. — De qualquer modo, você</p><p>tem trabalho a fazer. Mais quinze minutos de atraso em sua folha de ponto.</p><p>Annie suspirou e deixou de lado a ideia de tornar o escritório um lugar</p><p>melhor. Mesmo se limpasse a cozinha e levasse petiscos, estava lutando</p><p>contra o peso da apatia. Contra o fato de que nenhuma pessoa naquele</p><p>prédio queria estar lá. Quem iria querer ficar fechado em uma caixa mal</p><p>iluminada, cercado por pessoas de quem não gostava, fazendo um trabalho</p><p>sem a menor importância, em meio à sujeira e a restos de anos de</p><p>indiferença?</p><p>Ela pegou a primeira fatura. Antes, quando começou a trabalhar ali,</p><p>chegara quase a gostar do que fazia. A organização de tudo, somar as</p><p>coisas, apertar os botões para aprovar o pagamento das pessoas, produzir</p><p>planilhas limpas de números e fatos. Receber um holerite e ser adulta. Mas,</p><p>de algum modo, vir para o trabalho começou a lhe dar a sensação de morte.</p><p>Como se não conseguisse respirar, como se cada pedaço da pele dela</p><p>estivesse coberto de poeira, de sujeira, da infelicidade de outras pessoas.</p><p>Era engraçado, mas aquele escritório, na verdade, era mais deprimente do</p><p>que o hospital, um lugar onde as pessoas iam para receber más notícias.</p><p>Talvez porque no hospital as pessoas realmente confrontassem a vida, em</p><p>vez de ignorá-la com os olhos colados na tela dos computadores.</p><p>Ao redor de Annie, os sons do escritório se diluíam em um só. Teclas</p><p>sendo digitadas, o zumbido da copiadora, a vibração dos fones de ouvido de</p><p>Syed, que estava ouvindo os episódios do The Qi Podcast. E o mesmo</p><p>pensamento voltou à mente de Annie: Tem que haver mais do que isto,</p><p>precisa.</p><p>DIA 23</p><p>VEJA ANTIGOS AMIGOS</p><p>— Bom dia.</p><p>A mãe de Annie estava acordada, sentada na cama com as mãos</p><p>dobradas no colo como uma rainha.</p><p>— Oi, mãe. Como você está?</p><p>— Muito bem, obrigada — disse Maureen lentamente, com o tom muito</p><p>educado. — Quem é você, querida?</p><p>O coração de Annie voltou a afundar no peito. Nem se dera conta de</p><p>que estava animada antes.</p><p>— Sou a Annie.</p><p>— Ah,</p><p>que engraçado, acho que a minha filha também se chama Annie.</p><p>Ela vem me visitar às vezes.</p><p>Do outro lado da ala, Annie viu o dr. Quarani se aproximando e se</p><p>apressou em secar os olhos.</p><p>— Sra. Clarke — disse ele, enquanto enfiava uma caneta no bolso do</p><p>jaleco branco engomado. Annie se perguntou se ele teria uma esposa que</p><p>era dona de casa para cuidar de suas roupas. — Como a senhora está se</p><p>sentindo hoje?</p><p>Annie gostou do senhora. Tantas enfermeiras a chamavam de</p><p>“Maureen”, ou “amor”, ou mesmo de “Mary”. Sua mãe sempre foi uma</p><p>defensora das boas maneiras.</p><p>— Estou bem, obrigada, doutor. — Ela sussurrou alto. — Essa moça</p><p>veio me visitar.</p><p>— Que gentil da parte dela. — Ele verificou a pulsação da mãe de</p><p>Annie e fez uma anotação no prontuário. — Está indo bem, sra. Clarke.</p><p>Seus sinais vitais estão estabilizados e vimos uma grande redução nos</p><p>momentos de aflição.</p><p>— Ela ainda não me reconhece — comentou Annie, engolindo as</p><p>lágrimas.</p><p>— Não. Lamento. Talvez não sejamos capazes de fazer nada a esse</p><p>respeito, como a senhora sabe.</p><p>— O senhor é bonito, não é? — falou a mãe de Annie em voz alta. —</p><p>De onde você é, doutor?</p><p>— Da Síria, senhora.</p><p>— Nossa, é muito longe. Ele não é um moço bonito... é... Qual é mesmo</p><p>o seu nome? Você acha que ele é casado?</p><p>Annie enrubesceu.</p><p>— Mãe, não podemos falar assim com os médicos.</p><p>— Tudo bem. — O dr. Quarani sorriu, ficando ainda mais bonito. —</p><p>Volto mais tarde para ver como você está. Até logo, sra. Hebden.</p><p>Conforme ele se virava para sair, Annie ouviu o som alto de saltos no</p><p>piso e soube que era Polly. Ela estava tentando manter a mãe longe da nova</p><p>amiga — não conseguia suportar que mais alguém visse como Maureen</p><p>estava fraca e confusa, e não sabia bem como explicar a amizade entre elas.</p><p>Parecia cedo demais, frágil demais para ser chamada de amizade.</p><p>— Oiiii! — Polly se adiantou. — Onde você esteve? Fiquei procurando</p><p>você. Meu velho cérebro foi escaneado de novo. Aposto que tiraram mais</p><p>fotos dele do que do meu rosto em toda a minha vida. Oi, sou a Polly. —</p><p>Ela estendeu a mão para o dr. Quarani.</p><p>Ele apertou educadamente a mão de Polly.</p><p>— Paciente do dr. Fraser, certo?</p><p>— Ah, sim, essa sou eu. A garota do tumor no cérebro. — Ela segurou</p><p>subitamente o pulso dele e Annie se encolheu por dentro, constrangida por</p><p>Polly. — Uma pulseira Fitbit? Pratica esportes?</p><p>Ele puxou a mão de volta.</p><p>— Estou treinando para a maratona de Londres. Eu e o dr. Fraser vamos</p><p>participar.</p><p>— É mesmo? Que incrível. Participei há cinco anos, se quiser alguma</p><p>dica de treino, eu...</p><p>— Com licença, senhorita. Preciso ir. Até mais, sra. Clarke.</p><p>Polly o observou partir.</p><p>— Gostaria que nem todo mundo pensasse em mim como paciente de</p><p>Max. Quer dizer, o cérebro é meu, não dele. Quem era esse?</p><p>— O médico da minha mãe, dr. Quarani.</p><p>— Ele é, de longe, a coisa mais linda que eu já vi entre as paredes deste</p><p>hospital.</p><p>— Pol-lyyy — gemeu Annie. — Não. Ele é muito sério. E mais, acho</p><p>que é casado.</p><p>— Sabe — a mãe de Annie falou alto —, quase todo médico que eu tive</p><p>aqui é estrangeiro. As pessoas dizem que isso é ruim, mas o que eu gostaria</p><p>de saber é quem faria o trabalho se não fossem eles. Graças a Deus eles</p><p>vieram para cá, é o que eu digo!</p><p>— Tenho que concordar, sra. Clarke — falou Polly. — Estaríamos</p><p>literalmente mortas sem eles, não é mesmo?</p><p>Annie pensou no dr. Max, britânico, mas também longe de casa. Por que</p><p>ele trabalhava ali, lutando todo dia com um inimigo que não conseguia ver</p><p>ou tocar? Polly estava se inclinando sobre a mãe de Annie, falando</p><p>claramente:</p><p>— Olá, sra. Clarke, sou amiga da Annie.</p><p>Maureen estava olhando mais uma vez para o ambiente com aquela</p><p>expressão confusa e desconcentrada que partia o coração de Annie.</p><p>— Ah, a Annie, minha filha? Ela deve chegar logo. Annie nunca me</p><p>visita, acho que está ocupada demais com aquele marido dela.</p><p>Annie evitou o olhar de Polly, não queria ver piedade neles.</p><p>— Mãe, acho que você está um pouco confusa, não? Eu sou a Annie.</p><p>— Não seja tola, Annie é a minha filha. Conheço a minha própria filha,</p><p>embora ela não me visite. Gostaria que visitasse. Gostaria muito de algumas</p><p>uvas.</p><p>Ela falou em um tom lastimoso, e Annie se lembrou das poucas vezes</p><p>em que levara uvas para a mãe, só para ouvi-la dizer que não deveria ter</p><p>desperdiçado o seu dinheiro.</p><p>Annie acariciou a mão da mãe, reparando em como a pele havia ficado</p><p>flácida e não voltara ao normal. Ela não tinha nem sessenta anos. Como</p><p>envelhecera tanto, ficara tão desamparada?</p><p>— Mãe, agora chega. Está tudo bem.</p><p>O rosto da mãe ficou de repente sem expressão, ela piscou e se virou</p><p>para Polly. Sua voz de repente ficou mais alta, como a de uma menina.</p><p>— Moça, pode me ajudar? Estou esperando o Andrew.</p><p>— Quem é Andrew? — perguntou Polly, olhando para Annie.</p><p>A mãe deu uma risadinha, como uma garota.</p><p>— Andrew é meu amigo especial. Ele vai me pedir em casamento, sabe,</p><p>posso sentir. Sally, você não acha que ele vai me pedir em casamento?</p><p>Sally era Annie.</p><p>— É claro que vai, Maureen. — Annie teve que se esforçar para falar.</p><p>— Mas não acha que agora deveria descansar?</p><p>Polly a encarou sem entender.</p><p>Annie mexeu os lábios para dizer sem som: Confusa. Então, virou-se</p><p>para a mãe:</p><p>— Estou certa de que Annie logo estará aqui, Maureen. E sei que ela vai</p><p>te trazer um monte de uvas.</p><p>Ela se levantou. Tinha que ir embora. Havia um limite de quanto</p><p>conseguia suportar diariamente.</p><p>Polly a seguiu até o corredor.</p><p>— Annie...</p><p>— Não. — A voz dela estava trêmula. — Sei que você tem perguntas,</p><p>mas por favor. Não consigo. Não agora.</p><p>— Andrew é o seu pai?</p><p>— Sim. Ela... às vezes, ela não se lembra de que ele a abandonou há</p><p>trinta e cinco anos. Acha que eles ainda estão juntos, apaixonados.</p><p>Um longo momento se passou. Annie ficou encarando o linóleo</p><p>manchado sob seus pés, controlando-se para não chorar.</p><p>Por fim, Polly falou.</p><p>— Não temos que conversar sobre isso se você não quiser. Na verdade,</p><p>estava vindo procurá-la. Tenho uma coisa para te mostrar.</p><p>— Aonde estamos indo?</p><p>— À biblioteca médica. Sabia que tem uma aqui? Podemos conseguir</p><p>cópias de artigos e essas coisas. Sabe, há um monte de novas pesquisas</p><p>acontecendo o tempo todo. Às vezes, não conseguimos os tratamentos mais</p><p>modernos deste país por causa do custo.</p><p>Polly bateu na porta de vidro da pequena sala protegida por persianas.</p><p>Quem atendeu foi uma bela mulher com um lenço rosa na cabeça.</p><p>— Ah, oi, Polly. Consegui as cópias que você queria.</p><p>Annie ficou para trás, o coração aos pulos, os olhos fixos no teto.</p><p>Aquilo era uma armadilha? Ou só coincidência? Talvez Polly nem tivesse</p><p>percebido. Mas é claro que ela percebeu.</p><p>— Obrigada, Zarah. Em troca, trouxe uma surpresinha pra você. Olhe</p><p>quem está aqui!</p><p>Zarah viu Annie e piscou, espantada.</p><p>— Annie! Ah, meu... O que você está fazendo aqui?</p><p>— Minha mãe está doente. Você... você trabalha aqui?</p><p>— Sim, eu... consegui o emprego no ano passado.</p><p>E Annie teria sabido na época, porque Zarah costumava lhe contar tudo.</p><p>Mas não a encontrava havia quase dois anos. Desde que tudo desmoronou.</p><p>— Vocês duas precisam colocar a conversa em dia — insistiu Polly,</p><p>sorrindo como se fosse a apresentadora de um programa de encontros na</p><p>TV. — Annie vem aqui quase todo dia, Zar. Fico surpresa por vocês ainda</p><p>não terem se esbarrado.</p><p>Mas, mesmo se tivessem, Annie teria dado um jeito de fugir.</p><p>— Hum... Como você descobriu que nos conhecíamos, Polly? — Annie</p><p>tomou cuidado em manter a voz firme.</p><p>— Estávamos conversando e Zar mencionou a escola em que estudou.</p><p>Mundo pequeno, não?</p><p>— Não exatamente, frequentamos uma escola que fica a uns cem</p><p>metros daqui. — Mais uma vez o tom leve. Não havia nada errado ali.</p><p>Annie forçou no rosto um sorriso.</p><p>— De qualquer modo, é um sinal — continuou Polly — vocês duas</p><p>estarem aqui, então têm que se encontrar. Vocês têm o número uma da</p><p>outra, certo?</p><p>— O meu continua o mesmo. — O tom de Zarah era tranquilo, não</p><p>revelava nada. Annie não conseguia olhá-la nos olhos.</p><p>— Ah, o meu também.</p><p>— Ótimo, a Annie vai te mandar uma mensagem de texto, então. —</p><p>Polly estava de braços dados com Annie, implacável. — Até mais</p><p>tarde,</p><p>Zarah!</p><p>Do lado de fora, Annie se desvencilhou.</p><p>— Não faça isso.</p><p>— O quê?</p><p>— Me forçar a fazer coisas. Você poderia apenas ter me dito que Zarah</p><p>trabalhava aqui.</p><p>— E você teria ido falar com ela? Porque as coisas estão ótimas entre</p><p>vocês?</p><p>— Talvez.</p><p>— Eu acredito que, se as coisas estivessem bem, você já saberia que</p><p>uma de suas melhores amigas trabalha neste hospital.</p><p>— Ela não é... quer dizer, nós éramos...</p><p>— O que aconteceu?</p><p>Polly parecia genuinamente interessada enquanto subia no balcão da</p><p>recepção mais próxima e balançava as pernas com seus sapatos boneca</p><p>verdes.</p><p>— Senhora, precisa descer... ah, é você, P — disse a recepcionista. Mais</p><p>uma pessoa que Annie nunca vira antes. Polly realmente conhecia todo</p><p>mundo.</p><p>Ela respirou fundo.</p><p>— Escute, sei que você está tentando ajudar, mas há um motivo para</p><p>Zarah e eu não sermos mais exatamente amigas.</p><p>— Qual é o motivo?</p><p>Annie abriu a boca. E voltou a fechar. Ainda não estava pronta.</p><p>— Não force a barra — explodiu. — Eu já te contei sobre o meu pai.</p><p>Só... não sou como você, tudo bem? Não consigo simplesmente... me abrir.</p><p>— Certo. Não precisa me contar. Mas pelo amor de Deus, Annie, você</p><p>sabe que perde cem por cento das possibilidades se nunca se arrisca.</p><p>— O que quer dizer com isso?</p><p>— Quero dizer... mande uma mensagem de texto para a sua bendita</p><p>amiga. Tome um café com ela. O que de pior poderia acontecer?</p><p>DIA 24</p><p>PASSE UM TEMPO COM CRIANÇAS</p><p>— Annie! Que bom conhecer você. — Annie ainda nem havia chegado à</p><p>porta da casa dos pais de Polly quando foi abraçada com força por Milly,</p><p>amiga de Polly. Ela usava os cabelos escuros em um corte chanel com</p><p>mechas roxas e tinha óculos de sol no alto da cabeça, embora já fosse noite.</p><p>— Entre, entre, estão todos aqui.</p><p>Annie a seguiu, já desejando ter ficado em casa. Polly tinha finalmente</p><p>organizado uma reunião com seus amigos e insistira para que Annie fosse</p><p>“para dar apoio”, mas estava começando a ter a sensação de que era ela</p><p>quem precisaria de apoio.</p><p>Annie parou na porta da cozinha, sua cozinha dos sonhos, segurando</p><p>uma garrafa de vinho. Parecia uma cena de catálogo. Pessoas lindas e</p><p>elegantes — Polly, George e seus pais, Milly e seu marido, Seb, que usava</p><p>óculos modernos e um pulôver de cashmere, e outra amiga de Polly, Suze</p><p>(montes de cabelos loiros, esmalte azul-céu e jeans justos). Annie não</p><p>conseguiria se sentir mais deslocada mesmo se tentasse. O vestido vermelho</p><p>e as botas pareciam um esforço para se encaixar, e ela sabia que não passara</p><p>o delineador direito. Teve vontade de sumir, mas Polly se levantou de um</p><p>pulo e passou o braço ao redor dela.</p><p>— Pessoal, esta é Annie, minha amiga do hospital.</p><p>Aquilo fez Annie pensar em vômito, lágrimas e linóleo. Ela deu um</p><p>aceno sem graça.</p><p>— Oi.</p><p>Sentia-se tão constrangida, que seus ombros estavam quase se</p><p>encontrando na frente do peito. George lhe dirigiu um sorriso simpático,</p><p>mas isso não ajudou. Ele fazia parte das pessoas descoladas: relaxado e</p><p>confiante.</p><p>Valerie, mãe de Polly, estava usando um tubinho chique, óculos de</p><p>armação escura, e tinha feito escova no cabelo.</p><p>— Olá, querida, que bom vê-la de novo.</p><p>Annie sentiu o coração pesado. A mãe dela era uma velha senhora em</p><p>comparação com a de Polly, embora fosse mais jovem. Mesmo quando</p><p>estava bem de saúde, não se vestia como Valerie, pois achava que comprar</p><p>roupas novas era um desperdício de dinheiro quando podia costurar as</p><p>próprias roupas. Não era justo. Por que a mãe de Annie recebera uma</p><p>porção tão pequena da vida? Para depois perder até isso? E nem sequer se</p><p>lembrar que o marido a abandonara havia uma vida?</p><p>Valerie convidou Annie a se aproximar da mesa.</p><p>— Por que não se senta aqui, ao lado de George? Vejo que vocês dois se</p><p>deram bem.</p><p>— Mãe... — George estava franzindo o cenho.</p><p>— Lembre-me, Annie, você é solteira, não é?</p><p>Seguiu-se um silêncio constrangedor.</p><p>— Bem, sim, mas...</p><p>— Mãe. — O rosto de George estava tenso. — Já conversamos sobre</p><p>isso, certo? Não se meta.</p><p>Perplexa, Annie ficou parada perto da cadeira. Polly apertou o ombro</p><p>dela e sussurrou:</p><p>— Vamos. Não é tão assustador.</p><p>Era fácil para Polly falar. Será que ela não conseguia ver que nem todo</p><p>mundo conseguia saltar em direção à vida, agarrá-la com ambas as mãos,</p><p>ser forçada a se encontrar com antigas amigas com quem não falava havia</p><p>dois anos, acabar dançando em fontes e saindo para jantar com pessoas</p><p>novas e admitir que não sabia nada sobre arte, música ou roupas?</p><p>Todos estavam sorrindo para Annie. Como se ela fosse a prima pobre</p><p>que eles tivessem que paparicar.</p><p>— Então, Annie — disse Suze —, ouvi dizer que você adotou o</p><p>cachorro da Poll?</p><p>— Bem, estou só meio que tomando conta dele por enquanto. — O que</p><p>queria dizer que era ela quem tinha os sapatos mastigados, que não dormia</p><p>e que encontrava poças de xixi por toda parte.</p><p>— George poderia ajudá-la com isso — voltou a falar Valerie, servindo</p><p>uma cesta com focaccia feita em casa. — Ele adora animais.</p><p>George e Polly trocaram olhares. Annie olhou irritada o jogo americano</p><p>cinza-escuro a sua frente. Não entendia o que estava acontecendo.</p><p>Então as coisas ficaram cem vezes piores quando ela ouviu um barulho</p><p>no corredor, como se os cavalos da cavalaria tivessem disparado, e um uivo</p><p>como o de um demônio, e Annie sentiu o peito apertado de medo. Crianças.</p><p>Havia crianças ali. Por que ninguém a avisara? Duas coisinhas loiras</p><p>surgiram, uma usando um vestido rosa e outra, uma blusa listrada e jeans.</p><p>— Mamãe, o Harry fez cocô no vaso!</p><p>— Mamãe, a Lola me machucou. Coloca ela de castigo!</p><p>Annie ficou olhando, horrorizada, enquanto os dois se atiravam sobre</p><p>Milly, um ao redor de cada perna. Milly riu, impotente.</p><p>— Queridos, digam oi para Annie.</p><p>As crianças viraram o rostinho para ela, curiosas, como se pudessem se</p><p>aproximar. Annie não conseguiria. Simplesmente não conseguiria. O nariz</p><p>arrebitado, os cabelos loiros cacheados, os sapatinhos. Quantos anos</p><p>tinham? Três, quatro? Gêmeos. Ela não ia aguentar.</p><p>— Eu...</p><p>Por sorte, Polly pareceu ter entendido.</p><p>— Annie e eu vamos só dar uma saidinha. É... conversa secreta de</p><p>hospital.</p><p>Ela a puxou através das portas do pátio até o jardim fresco e silencioso.</p><p>— Desculpe, eu só... Foi um pouco intimidante, todos de uma vez.</p><p>Annie estava tentando desesperadamente se recompor.</p><p>— Não se culpe — murmurou Polly, deixando-se cair em uma cadeira</p><p>do pátio. — Essas crianças nos cansam demais. Não sei como Mill</p><p>consegue. Vou ter que passar uma semana deitada depois que elas forem</p><p>para casa.</p><p>— Hum. — Annie se sentou ao lado dela depois de secar o assento com</p><p>a manga.</p><p>— Quer dizer, talvez seja melhor que eu nunca tenha tido filhos.</p><p>Imagine como seria mais difícil agora, com tudo isso.</p><p>— Você quis ter?</p><p>— Não sei. Sempre achei que teria. Quer dizer, com você também foi</p><p>assim, não?</p><p>— Hummm.</p><p>— Mas sempre adiei. Dizia a mim mesma que tentaria aos trinta e três,</p><p>ou trinta e quatro, ou trinta e cinco. E veja só, meu tempo acabou. Aquele</p><p>adorável bebezinho enrolado em uma mantinha... isso nunca vai acontecer.</p><p>Não vou deixar nada para trás.</p><p>Uma pausa. Àquela altura, Annie já sabia que não deveria dizer que</p><p>lamentava. Polly odiava aquilo.</p><p>— Mas talvez seja melhor assim — repetiu Polly. — Toda aquela</p><p>gritaria, e não poder ir ao banheiro sozinha, e veja — ela levantou o braço</p><p>do casaco —, mancha de chocolate em seu Chanel vintage. Pelo menos eu</p><p>consegui fazer coisas. Viajar, trabalhar e... você sabe. E Milly mudou tanto,</p><p>foi como se a vida fosse sugada dela. Ela era tão divertida, a última a sair</p><p>do bar, sempre a par das novidades do dia, e agora ela às vezes nem sabe</p><p>que dia é. É claro que eu também não, mas é porque meu cérebro está sendo</p><p>comido por um tumor. Talvez a maternidade seja isso. Um tumor.</p><p>Annie cerrou os dentes.</p><p>— Algumas pessoas simplesmente adorariam a chance de ter esse</p><p>tumor. Tenho certeza que Milly está feliz.</p><p>— Não sei. Você ficaria feliz coberta de vomito de bebê e tendo que</p><p>assistir à Peppa Pig dez vezes seguidas?</p><p>— Eu era — deixou escapar Annie, irritada. E se arrependeu na mesma</p><p>hora.</p><p>Na escuridão do jardim, Polly a observava.</p><p>— Estava me perguntando quando você ia me contar.</p><p>— Não ia. Não necessariamente.</p><p>— Achei que não.</p><p>Mais silêncio. Dentro da casa, o subir e descer das vozes das crianças.</p><p>Nunca chegara a ouvir Jacob falar, mas ele costumava balbuciar, uma</p><p>explosão de sons claros e alegres, como bolhas subindo.</p><p>Polly esperou.</p><p>— Imagino que isso tenha alguma coisa a ver com Mike e Jane?</p><p>— Mais ou menos.</p><p>— Viu? Eu sabia que havia mais. Annie, você realmente está tentando</p><p>me derrubar do primeiro lugar no pódio da “história mais trágica”!</p><p>Annie respirou com dificuldade.</p><p>— Então, você sabe sobre o divórcio, sobre a minha mãe estar doente e</p><p>sobre a minha amiga ter ficado com o meu marido. Um pouco de</p><p>infertilidade ajuda?</p><p>— Sempre.</p><p>— Tive três abortos antes de Jacob. Um com três semanas... arruinei o</p><p>carpete. Sangue por toda parte. Nos meus cabelos, na cama, no pijama de</p><p>Mike. Outro com dez semanas... descobriram na ultrassonografia já</p><p>agendada, e tive que fazer uma curetagem. E o último já com cinco meses.</p><p>É preciso dar à luz quando a gravidez já está tão adiantada. Foi terrível.</p><p>Polly ficou em silêncio por um momento.</p><p>— Então você parou de tentar? — disse por fim.</p><p>Annie balançou a cabeça. Ela puxou a meia-calça com as mãos</p><p>trêmulas.</p><p>— Hum... Mike quis parar. Mas eu... não consegui. Assim, tentei de</p><p>novo. Fingi que estava tomando a pílula. Ele ficou furioso. Mas então</p><p>pareceu dar certo. Jacob nasceu a termo. Saudável.</p><p>— Que nome lindo — comentou Polly.</p><p>— Sim. Sempre gostei. Então ele... — Ela prendeu a respiração. Depois</p><p>de tanto tempo, a história ainda parecia uma pedra presa em sua garganta.</p><p>— Uma manhã, Mike foi acordá-lo. Achamos que Jacob havia dormido a</p><p>noite toda. Eu estava feliz! Pensei que as coisas iam melhorar a partir dali.</p><p>Ele não dormia bem, estávamos acabados. E tive aquele momento de me</p><p>sentir muito feliz... o sol entrava pelas cortinas, e pensei... pensei em como</p><p>a vida era boa. Mas, quando Mike entrou no quarto, Jacob estava... ele</p><p>estava frio. Mike não queria que eu visse, mas eu... fui até ele e vi que... ele</p><p>já estava azulado, e... chamamos a ambulância, mas ele... se fora. Ele se</p><p>fora. Morte súbita do lactente, foi o que disseram. Uma dessas coisas que</p><p>acontecem. — Embora Annie tivesse se dilacerado procurando por motivos.</p><p>Ele estava frio demais quando foi dormir? Quente demais? Será que estava</p><p>doente e ela não percebera? Annie voltou a respirar fundo. — Fiquei</p><p>devastada. Foi como... Eu não sabia mais quem eu era. Não sabia se</p><p>sobreviveria. Não conseguia dormir, não conseguia comer, ficava só deitada</p><p>no chão do quarto dele, a noite toda, uivando como um cão. Não tomava</p><p>banho. Passei dois meses sem trocar de roupa. E Jane... bem. Ela era a</p><p>minha melhor amiga. Estava por perto o tempo todo, me reconfortando.</p><p>Ajudando. Só que ela não conseguia chegar em mim, ninguém conseguia,</p><p>por isso ela passou a confortar Mike. Então, depois de algum tempo, ele</p><p>disse que sentia muito, que havia sido sem querer, mas eles estavam</p><p>realmente apaixonados, acho que porque ela ainda se arrumava e não</p><p>chorava o tempo todo, nem se recusava a jogar fora os lençóis antigos do</p><p>berço, já que eles eram tudo o que restava.</p><p>Annie respirou mais uma vez. Pronto, falara. Falara e nada se rompera.</p><p>As vozes continuavam do lado de dentro, Lola estava pedindo bolo. O</p><p>pássaro na árvore continuava a cantar. O barulho dos apitos dos barcos no</p><p>rio também continuava, melancólico, como o cântico de uma baleia.</p><p>Depois de algum tempo, Polly procurou a mão de Annie e deu uma</p><p>palmadinha gentil, como se estivesse lhe entregando um objeto invisível.</p><p>— Tome.</p><p>— O que é isso? — perguntou Annie com a voz trêmula.</p><p>— Meu trunfo do câncer. Pode ficar com ele por um tempo.</p><p>— Posso?</p><p>— Merda, é claro que sim, Annie. Isso é.... nem sei o que dizer.</p><p>— É inédito.</p><p>— Eu sei. É melhor enviar um comunicado à imprensa. — As duas</p><p>riram por um momento, o riso misturado às lágrimas. — Annie. Estou tão...</p><p>meu Deus. E eu trouxe você aqui, com as crianças... eu não sabia, juro.</p><p>Sabia que havia alguma coisa, mas não isso. Cristo.</p><p>— Não diga que sente muito. Vamos fazer um pacto, certo? Não</p><p>dizemos sinto muito, a menos que seja nossa culpa. — Annie estreitou os</p><p>olhos para Polly. — Então... esta era a sua vida antes? Todos falando sobre,</p><p>sei lá, quinoa e o Ato dos Direitos Humanos, e planejando fins de semana</p><p>em chalés em Norfolk?</p><p>— Acho que era. Devemos parecer um bando de babacas pretensiosos.</p><p>— Não. É só que... não teríamos tido nada em comum se tivéssemos</p><p>nos conhecido antes disso tudo.</p><p>Polly não mentiu.</p><p>— Talvez não . Mas aqui estamos nós, e não sei se consigo passar por</p><p>isso sem você, então agora você está presa a mim, Annie Hebden. É a única</p><p>pessoa que já me venceu na competição de história que faz chorar. Chata.</p><p>— Você também é — disse Annie.</p><p>Ela pegou a mão fria de Polly e a apertou, e elas ficaram sentadas ali no</p><p>escuro por algum tempo, vendo as luzes dos barcos e a cidade ao redor</p><p>delas, com oito milhões de corações batendo sem parar.</p><p>DIA 25</p><p>COMPARTILHE ALGUMA COISA</p><p>— Annie! De volta novamente? Você pode pular um dia, sabe disso.</p><p>Ninguém pensaria menos de você, e sua mãe... bem, você sabe. Talvez ela</p><p>não perceba.</p><p>O dr. Max estava outra vez diante da máquina de venda automática e</p><p>tinha um Twix em cada mão.</p><p>— Eu sei. Na verdade, vim me encontrar com uma amiga. — A palavra</p><p>soou estranha em sua boca. Já fazia muito tempo que ela não a dizia. —</p><p>Isso é o seu almoço?</p><p>Ele abriu um sorriso.</p><p>— A máquina me deu dois chocolates por engano! Carma por todo o</p><p>meu dinheiro suado que essa ajudante de satã já engoliu. — Max olhou para</p><p>ela. — Ah... gostaria de ficar com um?</p><p>— Você não quer?</p><p>Ele deu uma palmadinha no estômago.</p><p>— Estou vivendo de açúcar. Não consigo me lembrar da última vez que</p><p>comi uma refeição em um prato.</p><p>— Você gostaria...? — Annie se deu conta de que quase convidara o</p><p>médico para jantar. — Hum, bem, nesse caso, é claro que aceito o Twix.</p><p>Vou guardar para depois do almoço.</p><p>— Almoço — disse ele em tom nostálgico. — Eu costumava almoçar.</p><p>Mas hoje é dia de comer besteira na cantina. É claro que é sempre dia de</p><p>comer besteira quando se trabalha em um hospital. Quando não é a</p><p>gerência, são os pacientes querendo o seu sangue.</p><p>— Você tira o sangue deles o tempo todo — argumentou Annie.</p><p>Ele havia aberto o Twix e comido quase a metade.</p><p>— Sangue metafórico, Annie. Juro que esse hospital está me matando.</p><p>Há uma fila de dez pessoas esperando para terem a cabeça escaneada para</p><p>que eu possa lhes dizer que têm câncer. Isso não está certo.</p><p>— Há alguma coisa que possamos fazer? Sabe, um evento para levantar</p><p>fundos ou algo do tipo. O dr. Quarani vai correr a Maratona de Londres. —</p><p>Quando chegou, Annie o tinha visto dando voltas ao redor hospital, o rosto</p><p>muito sério e composto. — Achei que você também correria.</p><p>— Eu só queria ficar em forma — retrucou Max, na defensiva. — Não</p><p>acredito em levantar fundos para serviços públicos. O governo adoraria nos</p><p>fazer doar nosso próprio dinheiro para um maldito bazar. Eles precisam</p><p>financiar o sistema de saúde devidamente com os impostos que cobram, não</p><p>vendê-lo barato para os colegas privilegiados da saúde privada. É uma</p><p>vergonha, Annie, é isso que é. Enfim, nos vemos por aí; agora tenho que</p><p>olhar dentro do cérebro de alguém.</p><p>Ele parecia furioso, mas acenou alegremente enquanto se afastava.</p><p>Annie não conseguia entender esse homem.</p><p>A cantina estava cheia de médicos e familiares, e Annie demorou um pouco</p><p>até ver Zarah. Ela estava usando um lenço azul estampado com borboletas,</p><p>com lantejoulas azuis na borda. Annie desejou ter sugerido que se</p><p>encontrassem em algum lugar onde não pudessem ser vistas por um dos</p><p>muitos espiões de Polly. Mas Zarah tinha apenas um pequeno intervalo, e,</p><p>como Annie ia ao hospital todo dia mesmo, fazia sentido.</p><p>— Oi.</p><p>Zarah não estava sozinha na mesa, e, por um momento, Annie achou</p><p>que elas teriam que dividir o espaço com alguém aleatório, mas então viu</p><p>quem era.</p><p>Zarah encontrou o olhar de Annie.</p><p>— Espero que não se importe, Annie. Só achei que nós três</p><p>precisávamos conversar.</p><p>Já se passou tempo demais.</p><p>— Concordo — disse a outra mulher à mesa. Ela era alta e estava</p><p>deslumbrante em um vestido vermelho bem justo, os cabelos em uma trança</p><p>brilhante.</p><p>Annie engoliu em seco.</p><p>— Oi, Miriam.</p><p>Miriam também encontrou o olhar dela, com a expressão franca e</p><p>honesta de que Annie se lembrava. Honesta demais, às vezes. Por isso elas</p><p>não se falavam havia tanto tempo.</p><p>— Você está bem? Zar disse que a sua mãe está doente.</p><p>— Sim, ela está... — Annie não suportaria explicar tudo. — Ela está</p><p>internada. E como está Jasmine?</p><p>Miriam pareceu surpresa por um momento, como se não esperasse que</p><p>Annie fosse se lembrar do nome de sua filha. Mas é claro que Annie se</p><p>lembrava. Ela sabia tudo sobre Jasmine, outra criança que ela acabara</p><p>deixando de ver, mas nesse caso por sua própria culpa.</p><p>— Ela está bem.</p><p>— Eu sinto muito por... tudo.</p><p>— Está se referindo ao aniversário dela?</p><p>Annie assentiu com a cabeça, os olhos fixos no tampo oleoso da mesa.</p><p>— Eu não deveria nem ter aparecido lá. Não estava preparada. Só não</p><p>quis... decepcionar você.</p><p>E por isso ela acabara se forçando a ir. E a visão de todas aquelas</p><p>crianças de um ano de idade, sujas de bolo, fez com que Annie saísse</p><p>correndo, chorando. E, quando Miriam foi atrás dela, Annie a afastou, a</p><p>empurrou fisicamente, bateu a porta do carro e foi embora, deixando Mike</p><p>parado na calçada, vendo-a ir. Annie se perguntara várias vezes se o marido</p><p>a teria deixado se ela não tivesse feito essa cena naquele dia. Se teria sido</p><p>naquele momento que ele decidiu reduzir as perdas e ir embora, desligar-se</p><p>do caos em lágrimas que Annie havia se tornado.</p><p>Miram suspirou.</p><p>— Annie, a festa não importa. A Jas nem se lembra. Mas você nos</p><p>cortou completamente da sua vida. Todas nós, não só a Jane.</p><p>Ao ouvir o nome da outra, Annie cerrou os dentes.</p><p>— Entendo que todas vocês ainda são amigas.</p><p>Zarah e Miriam trocaram um olhar.</p><p>— Annie... também somos suas amigas — falou Zarah. — Senti tanto a</p><p>sua falta... você sempre foi a primeira pessoa para quem eu ligava quando</p><p>tinha uma crise, lembra? Era a única que nunca entrava em pânico, que</p><p>sempre me animava quando eu tinha um encontro péssimo, se meu carro</p><p>não ligava, ou se meus pais estavam me perturbando... Nunca quis deixar de</p><p>ser sua amiga. Você simplesmente parou de nos ver. De ver todo mundo. E</p><p>a Jane... ela se sente péssima, de verdade.</p><p>— Não péssima o bastante para não fazer o que fez.</p><p>— Eles se apaixonaram — falou Miriam. — Eu realmente acredito</p><p>nisso. Quer dizer, é óbvio que foi terrível para você. Não estamos do lado</p><p>dela.</p><p>Mas foi o que pareceu, quando Mike finalmente lhe disse por quem a</p><p>estava trocando e ela ligou para Zarah, absolutamente em choque. Quando</p><p>contou à amiga o que tinha acontecido, ouviu o silêncio que significava que</p><p>todos já sabiam. Annie foi a última a saber. Então ela arrumou suas coisas e</p><p>se mudou, e nunca mais falou com nenhum deles de novo até aquele</p><p>momento. Que terrível tinha sido. Tudo — seu filho, sua casa, seu marido,</p><p>suas amigas — perdido em um instante.</p><p>Annie sentiu uma mão sobre a sua e, quando levantou os olhos, viu que</p><p>Miriam sorria para ela. E a primeira lágrima caiu sobre a mesa suja.</p><p>— D-desculpe.</p><p>— O que aconteceu com você foi tão terrível, An — disse Zarah. —</p><p>Tão terrível. Só queríamos ficar ao seu lado. Mas você desapareceu.</p><p>Annie balançou a cabeça, as lágrimas escorrendo.</p><p>— Ninguém poderia ajudar. Não adiantava.</p><p>Zarah assentiu.</p><p>— Bem, talvez agora a poeira tenha baixado um pouco... Talvez</p><p>possamos nos encontrar de novo como costumávamos fazer. Quer dizer, só</p><p>nós três. — Annie se deu conta de que como deve ter sido constrangedor</p><p>para elas quando uma das melhores amigas ficou com o marido de outra. —</p><p>Não espero que você... Mas ela realmente se sente péssima, sabe. Ainda</p><p>mais agora, que... — Zarah ficou em silêncio. Trocou outro olhar com</p><p>Miriam. — Ela se sente péssima — repetiu Zarah.</p><p>E deveria mesmo.</p><p>— Não posso perdoá-la. Simplesmente não consigo.</p><p>Annie mal conseguia falar, a garganta apertada. Era cedo demais, ainda</p><p>estava em carne viva. Ver as duas trouxera muitas lembranças de volta. Da</p><p>antiga Annie, que tinha amigas, que era até a mais sensata do grupo. A</p><p>quem as amigas recorriam quando os namorados as traíam, ou quando os</p><p>chefes exigiam demais, ou quando não conseguiam fazer o bolo crescer.</p><p>Aquela Annie morrera com Jacob.</p><p>Ela se levantou, arrastando a cadeira no chão.</p><p>— Tenho que ir. Desculpem. Obrigada por... obrigada. Eu gostaria</p><p>disso, de nos encontrarmos. Em breve. Tenho que ir.</p><p>E, mais uma vez, ela saiu correndo pelo corredor pintado em todos os</p><p>tons de infelicidade que existiam.</p><p>DIA 26</p><p>RECUPERE UM HOBBY</p><p>— Você vem muito aqui?</p><p>Annie balançou a cabeça.</p><p>— Às vezes não sou capaz de encarar isso. — Que tipo de pessoa ela</p><p>era, que não visitava o túmulo do próprio filho? — É só que... é muito</p><p>doloroso — falou. — E sempre fico preocupada de esbarrar com Mike.</p><p>— Entendo. Onde é?</p><p>Polly girou o corpo, olhando ao redor do enorme cemitério municipal.</p><p>Ela estava usando um macacão jeans e All Star estampados com flores.</p><p>Parecia um anúncio da loja Abercrombie and Fitch.</p><p>— Terceira fileira à esquerda.</p><p>Annie sabia exatamente onde ficava. Poderia ter chegado ali dormindo</p><p>— e foi o que fez algumas vezes, quando sonhava que estava diante do</p><p>túmulo de Jacob. Procurando por ele. Já havia passado dois anos, mas em</p><p>alguns dias ela ainda acordava esperando ouvir o choro do filho. Deveria ter</p><p>imaginado, na manhã em que ele permaneceu em silêncio. Não sabia se</p><p>algum dia se perdoaria pelo breve alívio que sentira quando achou que</p><p>Jacob havia dormido a noite toda, por aquele momento de felicidade. Se ao</p><p>menos ela tivesse ido conferir como ele estava mais cedo. Se tivesse</p><p>acordado antes. Annie afastou o pensamento — sabia que, se continuasse</p><p>com isso, os “e se” a matariam.</p><p>— É este.</p><p>Ela sentiu uma onda de vergonha. Estava tudo abandonado. As ervas</p><p>daninhas quase cobriam a pequena lápide onde se lia JACOB MATTHEW</p><p>HEBDEN, e o pote de geleia em que Annie havia levado flores na última</p><p>vez em que estivera ali estava caído de lado, cheio de água suja esverdeada.</p><p>— Matthew — leu Polly. — Em homenagem a alguém?</p><p>— Ao pai de Mike.</p><p>— Hummm. O dele, não o seu.</p><p>Annie deu de ombros.</p><p>— Por que eu daria ao meu filho o nome de alguém que nem cheguei a</p><p>conhecer? Ao menos não que me lembre.</p><p>Polly se agachou na grama.</p><p>— Você nunca tentou procurar por ele, em todo esse tempo?</p><p>— Eu não saberia por onde começar. Nem me lembro dele. Meu pai foi</p><p>embora quando eu tinha dias.</p><p>— Coitada da sua mãe. Deve ter sido difícil.</p><p>— Sim. Acho que ele era um fracassado. Sempre achei que não</p><p>precisava disso na minha vida. É meio irônico que meu marido também</p><p>tenha acabado me abandonando, não é? Talvez seja um traço de família ser</p><p>abandonada.</p><p>Polly estalou a língua.</p><p>— Espero que não esteja contando com a minha presença nessa sua</p><p>festa de autopiedade, Annie.</p><p>— Não, não. Eu não preciso dele. Só é estranho ouvir a minha mãe falar</p><p>como se ele estivesse por perto. Eles devem ter sido felizes em algum</p><p>momento.</p><p>— Penso a mesma coisa sobre os meus pais, às vezes.</p><p>Annie franziu o cenho.</p><p>— Seus pais parecem ser realmente felizes!</p><p>— Sim, bem... as aparências nem sempre são a realidade, Annie. Mas</p><p>olhe só para mim! Nada de festa de autopiedade. Estamos aqui pelo Jacob,</p><p>para lembrar dele com amor.</p><p>Annie se inclinou para arrancar uma erva daninha.</p><p>— Eu... acho que Mike também não vem muito aqui. Você deve me</p><p>achar horrível.</p><p>Polly não disse nada por um tempo.</p><p>— Sabe, quando eu era pequena, meu avô morreu. Ele foi cremado e</p><p>suas cinzas foram espalhadas no mar, ele amava barcos. Uma vez eu</p><p>perguntei a minha mãe como iríamos visitá-lo, se ele não tinha um túmulo.</p><p>Ela me disse que as pessoas não estão nos túmulos... que eles são apenas</p><p>um lugar aonde vamos para nos lembrar delas. Aposto que você não precisa</p><p>de ajuda para se lembrar de Jacob.</p><p>Annie balançou a cabeça, tentando engolir, apesar do nó na garganta.</p><p>Polly se curvou, fazendo uma careta com a mão nas costas e abriu uma</p><p>echarpe roxa embaixo dos joelhos.</p><p>chegado em casa bêbada, mas bêbada de infelicidade, de luto, de raiva.</p><p>Triiimmm.</p><p>— Já vai!</p><p>Jesus, que horas eram, afinal? O relógio da TV mostrava 9h23. Ela</p><p>precisava se apressar ou perderia o horário de visita. Costas provavelmente</p><p>saíra há tempos para pegar o turno do café da manhã; deve ter entrado e</p><p>saído de casa sem que Annie sequer o visse. Ela sentiu uma onda de</p><p>vergonha dominá-la — a Annie de dois anos atrás nunca teria dormido sem</p><p>trocar de roupa.</p><p>— Annie Hebden! Você está aí?</p><p>Annie se retraiu. Pela abertura da porta, ainda com a corrente da tranca,</p><p>conseguia ver um borrão verde-esmeralda — era a mulher estranha do</p><p>hospital. Polly alguma coisa.</p><p>— Hum, sim?</p><p>— Recebi a sua carta do hospital. — Uma mão apareceu na fresta da</p><p>porta, dessa vez com unhas prateadas, e acenou um envelope embaixo do</p><p>nariz de Annie. O nome de Annie estava nele, mas com um endereço</p><p>diferente, em uma parte elegante da cidade. — Você provavelmente recebeu</p><p>a minha — disse a mulher em um tom animado.</p><p>Annie olhou para a pilha de correspondência no capacho. Contas. Uma</p><p>assinatura da Gardening Monthly, que ela já deveria ter cancelado àquela</p><p>altura. E um envelope branco endereçado a Polly Leonard.</p><p>— Como isso aconteceu?</p><p>— Acho que Denise deve ter se confundido quando você mudou o</p><p>endereço. Já liguei para ela para que destrocasse, sem problema.</p><p>Era certo o hospital fornecer o endereço dela?</p><p>— Então você veio até aqui só para me dar isto?</p><p>Provavelmente, demorou mais de meia hora da casa de Polly, em</p><p>Greenwich, para a de Annie, em Lewisham, especialmente na hora do rush.</p><p>— Sim. Nunca estive nesta parte da cidade, então pensei: Por que não?</p><p>Havia mil razões para não fazer isso. As altas taxas de criminalidade</p><p>daquela área. A monstruosidade de seu shopping center dos anos 70. O fato</p><p>de que já vinham escavando o coração do bairro havia anos, tornando o</p><p>trânsito ali um permanente inferno ao som de furadeiras e com cheiro de</p><p>asfalto derretido.</p><p>— Bem. Obrigada por trazer. — Annie atravessou a carta de Polly pelo</p><p>vão da porta. — Então, tchau.</p><p>Polly não se abalou.</p><p>— Você vai ao hospital hoje?</p><p>Todos os seus instintos diziam a Annie para mentir, mas, por algum</p><p>motivo, ela não fez isso.</p><p>— Ah... sim. Vou, mas...</p><p>— Consulta?</p><p>— Não exatamente. — Annie não teve a menor vontade de explicar.</p><p>— Também vou para lá. Pensei que poderíamos ir juntas.</p><p>Annie era conhecida por ficar no escritório vinte minutos além do</p><p>horário, alguns dias, só para garantir que seus colegas já tinham ido embora</p><p>e que ela não teria que pegar o ônibus com eles.</p><p>— Não estou vestida — ela disse.</p><p>— Tudo bem. Posso esperar.</p><p>— Mas... mas... — O cérebro idiota de Annie não conseguiu pensar em</p><p>uma única razão para não deixar aquela estranha irritante e exageradamente</p><p>colorida entrar em sua casa. — Acho que... tudo bem, então. — Ela deixou</p><p>Polly entrar.</p><p>— Então, esta é a sua casa.</p><p>Polly ficou parada na sala sem graça de Annie como uma árvore de</p><p>Natal. Naquele dia, ela usava o que parecia ser um vestido de festa em</p><p>cetim cor de creme de menta e, nos pés, botas de motociclista. Um casaco</p><p>de pele falsa e um gorro de tricô completavam o visual. A bainha do vestido</p><p>estava úmida e suja, como se ela tivesse acabado de atravessar Lewisham</p><p>na chuva. A mulher parecia uma modelo em uma sessão de fotos urbanas.</p><p>— Não tenho permissão para redecorar. O locador não deixa. — O</p><p>apartamento no décimo andar ainda tinha um depressivo piso laminado e as</p><p>paredes texturizadas dos anos 70. Cheirava a umidade e a comida de outras</p><p>pessoas. — Hum, preciso de um banho. Você quer... quer chá ou alguma</p><p>outra coisa?</p><p>— Não se preocupe. Vou só ficar aqui e ler, ou algo assim.</p><p>Polly olhou ao redor da sala bagunçada, a roupa no varal que acabara</p><p>secando toda amassada, as calças e leggings de Annie já desbotadas de</p><p>tanto lavar.</p><p>Ela pegou alguma coisa de cima da mesa de centro empoeirada.</p><p>— Como conseguir uma procuração legal. Isso parece interessante.</p><p>Aquilo era sarcasmo?, Annie se perguntou. Um folheto fino, com uma</p><p>foto triste de alguém segurando a mão de um idoso, quando, na verdade,</p><p>obter uma procuração legal era mais como agarrar a mão daquele idoso e</p><p>amarrá-la ao lado do corpo antes que ele pudesse causar algum dano a si</p><p>mesmo. Ou a outra pessoa.</p><p>— Bem, certo. Não demoro.</p><p>Annie entrou no banheiro — espelho enferrujado, cortina do boxe</p><p>mofada — e se perguntou se teria enlouquecido. Havia uma mulher</p><p>estranha em sua casa e ela estava permitindo aquilo. Uma mulher de quem</p><p>ela não sabia nada a respeito, que poderia ser louca — e provavelmente era,</p><p>a julgar pelas roupas que usava. Talvez tenha sido por isso que as duas se</p><p>conheceram no setor de neurologia do hospital. Talvez Polly tivesse sofrido</p><p>um golpe na cabeça e isso a tivesse transformado em uma pessoa sem</p><p>limites, que entrava em seu apartamento e ficava lendo folhetos particulares</p><p>deprimentes.</p><p>Annie tomou o banho mais rápido do mundo, que sua mãe teria</p><p>chamado de “banho de gato”. Por muitos meses depois que a vida dela</p><p>desmoronara, o chuveiro costumava ser o lugar em que Annie chorava, o</p><p>punho enfiado na boca para abafar o som. Mas não havia tempo para isso</p><p>naquele dia, então ela vestiu uma roupa quase idêntica à que usara na</p><p>véspera. Não adiantava nada parecer elegante. Não para ir a um lugar onde</p><p>as pessoas ou estavam morrendo ou desejavam estar.</p><p>Quando saía do banheiro — sem maquiagem, os cabelos presos para o</p><p>alto —, Annie ouviu vozes vindo da sala. Seu coração afundou no peito.</p><p>Provavelmente, o turno dele fora curto hoje.</p><p>— Annie — disse Polly com um sorriso quando ela entrou na sala. —</p><p>Acabei de conhecer seu encantador amigo aqui!</p><p>— Oiê, Annie! — Costas acenou.</p><p>Costas era grego, lindo e tinha um abdome tão rígido que era possível</p><p>quebrar um ovo nele. Também tinha vinte e dois anos, transformara o</p><p>quarto vago de Annie em um depósito de lixo nojento e, por mais hilário</p><p>que isso pudesse parecer, trabalhava no Café Costa. Ao menos ele achava</p><p>isso hilário.</p><p>— Ele divide o apartamento comigo. Preciso ir agora.</p><p>— Em um minuto. O Costas trouxe alguns doces.</p><p>— O chefe me disse para trazer. Mas ainda estão bons! — O rapaz abriu</p><p>um saco de papel pardo cheio de croissants e pães doces. E sorriu para</p><p>Polly. — Apareça um dia no Costa e eu vou lhe preparar um café grego</p><p>especial. Forte o bastante para explodir o seu cérebro.</p><p>Annie se sentiu subitamente furiosa. Como aquela mulher ousava</p><p>aparecer ali e revelar a vida de Annie, o apartamento sórdido, a louça para</p><p>lavar?</p><p>— Estou indo agora — anunciou ela. — Costas, você pode lavar a</p><p>louça? Você deixou uma forma toda suja com uma coisa verde, na noite</p><p>passada.</p><p>— Era spanokopita; precisa ficar de molho.</p><p>— Ah, adoro spanokopita! — exclamou Polly. — Viajei de mochilão na</p><p>Grécia quando tinha dezoito anos. Yiasou!</p><p>— Yiasou! — Costas a cumprimentou erguendo o polegar, abrindo seu</p><p>sorriso mais largo e mais branco. — Muito bem, Polly.</p><p>Annie vestiu o casaco, comportando-se da forma mais passivo-agressiva</p><p>possível.</p><p>— Vou me atrasar.</p><p>— Ah! Certo, vamos embora. Adorei conhecer você Costas-amigo-da-</p><p>Annie.</p><p>— Ele é meu colega de apartamento — reafirmou Annie e abriu a porta</p><p>irritada. Por mais que não soubesse direito o motivo.</p><p>— Senhoras e senhores, o ônibus vai parar para troca de motorista. Vai</p><p>levar... bem... não sabemos.</p><p>O ônibus se encheu de suspiros de lamento.</p><p>— Agora eu com certeza vou me atrasar — resmungou Annie para si</p><p>mesma.</p><p>— Malditos esbanjadores — reclamou um senhor que estava sentado ao</p><p>lado dela usando um terno felpudo com cheiro forte de umidade. — Duas</p><p>libras para uma viagem como esta. Estão enchendo os bolsos. Isso, sim.</p><p>— Ora, podemos apreciar a paisagem — comentou Polly, animada.</p><p>Annie e o homem trocaram um rápido olhar de incredulidade. A vista</p><p>da janela era um grande supermercado Tesco e um terreno baldio com um</p><p>carro queimado.</p><p>— Ou conversar — continuou Polly. — Para onde o senhor está indo?</p><p>— Para um funeral — grunhiu o homem, apoiando-se na bengala.</p><p>— Sinto muito. Um amigo seu?</p><p>Annie se encolheu no assento. Um homem usando jeans manchado de</p><p>tinta</p><p>— Podemos arrumar isso aqui rapidinho. Tirar as ervas daninhas,</p><p>limpar tudo.</p><p>Annie desejou ter levado algumas ferramentas de jardinagem. Ela havia</p><p>deixado todas as que tinha para trás, com seu jardim, na casa onde agora</p><p>moravam Mike e Jane, a menos de cinco quilômetros dali. Annie também</p><p>se ajoelhou, sabendo que acabaria com manchas de grama no jeans, mas</p><p>sem se importar. Havia esquecido como era boa a sensação da terra sob seu</p><p>corpo na primavera, da umidade suave.</p><p>— Tome. — Polly lhe entregou uma minipá e um miniforcado, que</p><p>tirou da bolsa grande.</p><p>— Onde conseguiu isso?</p><p>— Ah, são da minha mãe. Ela não usa nunca, tem um jardineiro para</p><p>cuidar das plantas. Achei que pudessem ser úteis.</p><p>Por algum tempo, elas capinaram e cortaram em silêncio, os sons da</p><p>cidade bem distantes. As únicas outras pessoas ali estavam do outro lado do</p><p>cemitério, cuidando da lápide de alguém. Annie levantou os olhos em</p><p>determinado momento e viu Polly cavando com determinação, com uma</p><p>mancha de terra no rosto pálido. Ela pensou em como tudo aquilo era</p><p>estranho, cuidar do túmulo do seu filho, que morrera ainda bebê, com</p><p>aquela mulher que conhecia havia poucas semanas.</p><p>— Você deveria perdoá-los — falou Polly baixinho.</p><p>Annie não precisou perguntar a quem ela se referia.</p><p>— Não consigo.</p><p>— Eu sei. O que eles fizeram foi uma merda, foi mais que uma merda</p><p>isso. Mas... é você quem sofre quando não consegue perdoar as pessoas. É</p><p>você quem tem que carregá-las por aí, dia após dia.</p><p>Annie arrancou ervas daninhas em silêncio por um tempo.</p><p>— Eles quase me destruíram.</p><p>— Eu sei. Mas isso não aconteceu. Você ainda está aqui.</p><p>Mais ou menos. Houve momentos ao longo dos últimos dois anos em</p><p>que Annie não tinha certeza se conseguiria. A sensação de ter Jacob em</p><p>seus braços, com a mesma leveza de sempre, mas frio e imóvel. No dia em</p><p>que se mudou para o apartamento pequeno e úmido, ela olhou ao redor e se</p><p>perguntou como diabo havia descido tão baixo na vida. No dia em que a</p><p>polícia apareceu para dizer que havia encontrado sua mãe confusa, vagando</p><p>pela rua, Annie se dera conta de que estava perdendo mais uma pessoa</p><p>diante dos seus olhos, mas não conseguia ver além do próprio luto para</p><p>perceber isso. Ela mal estava vivendo... Por isso, o que Mike e Jane tinham</p><p>feito parecia insuperável. Assim, ela deu sua resposta padrão para a maioria</p><p>das sugestões de Polly.</p><p>— Vou pensar no assunto.</p><p>— Tchã nã!</p><p>Annie olhou desconfiada para os narcisos nos braços de Polly.</p><p>— Onde conseguiu isso?</p><p>— Estavam só crescendo por aí. Acredite em mim, ninguém aqui vai</p><p>perceber a diferença. Não são bonitos? — Ela examinou as flores amarelas,</p><p>os caules verdes pingando seiva. — Amo o modo como eles brotam todo</p><p>ano, nesse solo frio e morto, bem quando achamos que o inverno vai durar</p><p>para sempre. Acho que é disso que vou mais sentir falta. Quer dizer... não</p><p>que eu vá saber, acho. Não sei nem se eu vou saber que é primavera ou só</p><p>vou ter... partido. Posso deixar algumas para Jacob?</p><p>Elas lavaram o pote e o encheram de água fresca da bica que o</p><p>cemitério disponibilizava. Ao menos dessa vez Annie aprovou a</p><p>organização da câmara municipal para a qual trabalhava. Nunca pensara em</p><p>como estavam presentes para preencher as necessidades na vida das</p><p>pessoas, levando o lixo, consertando buracos nas estradas, mantendo os</p><p>parques bonitos. Polly enfiou as flores no vidro e as arrumou para que as</p><p>pétalas se destacassem.</p><p>— Pronto. São para você, Jacob. Foi um prazer conhecê-lo.</p><p>Annie ficou parada em silêncio.</p><p>— Posso dizer uma coisa esquisita?</p><p>— Sempre.</p><p>— Não acho que ele possa me ouvir. Tentei acreditar nisso depois que o</p><p>perdemos... Doía demais pensar que eu nunca mais o veria. Mas acho que</p><p>Jacob simplesmente se foi. Talvez seja por isso que não o visito com muita</p><p>frequência. Eu costumava vir aqui com a minha mãe, que acredita em tudo</p><p>isso; mas seria cruel demais, agora, lembrá-la de que ele se foi. Às vezes</p><p>não sei nem se ela se lembra de que tinha um neto.</p><p>Polly deu de ombros.</p><p>— Acho que não somos feitos para compreender a morte. Às vezes,</p><p>imagino como seria parar ao lado das pessoas no metrô, ou na rua, dar um</p><p>tapinha no braço delas e perguntar: “Com licença, você tem noção de que</p><p>vai morrer? Talvez não hoje nem amanhã, mas UM DIA”. Todas essas</p><p>pessoas correndo para reuniões, comendo em fast foods ou indo à academia.</p><p>Eu me pergunto o que aconteceria se elas subitamente se dessem conta</p><p>disso. Se pensassem de verdade nisso. Você não largaria tudo e faria a única</p><p>coisa que sempre sonhou em fazer? Saltar de paraquedas. Largar o</p><p>emprego. Dizer àquela pessoa que está a fim dela.</p><p>Annie lançou um olhar ela.</p><p>— É melhor que isso não seja sobre o dr. Quarani.</p><p>— Mas ele é lindo. Tão sério.</p><p>— Ele tem uma foto de família na mesa.</p><p>— Pode ser irmã dele.</p><p>— Poll-yy. — Annie não tinha certeza se a própria Polly havia</p><p>assimilado de fato que estava morrendo. Como ela conseguia flertar com</p><p>pessoas, fazer planos e até fazer novos amigos quando sua vida tinha um</p><p>prazo de validade? — Talvez não seja possível viver constantemente</p><p>consciente de que vai morrer. Seria mais difícil conseguir motivação para</p><p>lavar o chão e coisas assim.</p><p>— Eu toda hora acho que preciso renovar o seguro do carro, ou comprar</p><p>meu casaco de inverno antes que todos os bons acabem — comentou Polly.</p><p>— Então, lembro a mim mesma... mas não consigo, sabe? É impossível não</p><p>pensar no futuro. — Ela ergueu o corpo com dificuldade. — Enfim. Outra</p><p>coisa que você não tem que fazer quando está morrendo é parar de</p><p>consumir açúcar. Na verdade, eu aumentei o consumo de açúcar. Então, o</p><p>que acha de chocolate quente com bolo?</p><p>Annie olhou mais uma vez para o pequeno túmulo abaixo dela. Estava</p><p>mais arrumado, o pior das ervas daninhas tinha sido arrancado e a grama</p><p>estava aparada. Jacob nunca deixaria sua marca no mundo. Ele mal passara</p><p>pelo mundo antes de ir embora. Mas para Annie, para Mike e para a mãe de</p><p>Annie — e, se fosse totalmente honesta, também para Jane — a curta vida</p><p>de Jacob significava que nada nunca mais seria da mesma forma.</p><p>Provavelmente, havia um pensamento profundo nisso, mas Annie se</p><p>sentia mexida demais para descobrir qual era, e Polly estava pálida e</p><p>cansada, e jogada na grama de um jeito que Annie agora sabia significar</p><p>que ela estava exausta.</p><p>— Claro — falou. — Vamos comer bolo.</p><p>DIA 27</p><p>TROQUE A ROUPA DE CAMA</p><p>— Annie! Alguém vai dormir aqui?</p><p>Annie deu uma risadinha zombeteira.</p><p>— Até parece.</p><p>Durante todo o tempo em que Costas morava com ela, Annie nunca</p><p>levara alguém para passar a noite. Ela sabia que às vezes ele levava, mas</p><p>essas pessoas sempre saíam de fininho antes do amanhecer, deixando</p><p>apenas fios de cabelo no chão do boxe.</p><p>— Então, por que você...?</p><p>Costas parou na porta do quarto de Annie e apontou para as pilhas de</p><p>roupas de cama por toda parte. Ele estava com Buster nos braços, que</p><p>lambia o rosto do rapaz com a língua cor-de-rosa.</p><p>— Não solte esse cachorro no chão, acabei de limpar tudo aqui —</p><p>avisou ela.</p><p>A roupa de cama bege de Annie estava enrolada no chão e ela colocava</p><p>uma nova, turquesa com flores rosa.</p><p>— Ele não vai comer as coisas, é um bom cachorro, não é, bebê? Sim,</p><p>você é. Sim, você é! Então, Annie, por que está fazendo essa limpeza?</p><p>— Ah, só achei que estava na hora de uma mudança. De deixar as</p><p>coisas mais bonitas.</p><p>Ela estava dormindo naquela roupa de cama desde que se mudou para</p><p>lá, falida e sem posses. Havia deixado todas as suas coisas bonitas para trás,</p><p>dado as costas à antiga vida. Comprara os tapetes mais baratos que</p><p>conseguira encontrar, ásperos e desconfortáveis, e não os lavava com a</p><p>frequência que deveria.</p><p>Costas levantou o polegar em aprovação.</p><p>— Bom para você, Annie. Vou sair agora.</p><p>Ele estava usando uma camiseta prateada apertada e Annie sorriu para o</p><p>colega de apartamento com indulgência.</p><p>— Divirta-se.</p><p>Talvez ela devesse comprar lençóis para ele também. Afinal, a caixinha</p><p>que ele chamava de quarto não era muito agradável. Annie afofou, alisou e</p><p>admirou sua nova cama enquanto pensava no que Costas dissera. Se, em</p><p>algum universo paralelo e bastante improvável, alguém</p><p>por acaso visse o</p><p>quarto dela, ao menos agora isso não a deixaria totalmente envergonhada.</p><p>Annie se abaixou para abrir a última gaveta do armário, procurando por</p><p>uma fronha. Algo farfalhou. Papel de seda. Então ela se lembrou tarde</p><p>demais do que havia escondido ali, seu tesouro mais precioso.</p><p>Era a única coisa de Jacob que guardara. O resto eram só roupas</p><p>compradas em lojas, que qualquer um poderia ter, mas aquele casaquinho</p><p>creme tinha sido feito pela mãe dela, tricotado diligentemente diante da TV</p><p>por dois meses. Os botões eram carinhas de ovelhas. Annie pressionou o</p><p>rosto contra ele e inspirou. Do papel, caiu uma pequena pulseira de plástico</p><p>com o nome JACOB MATTHEW HEBDEN impresso. Sua identificação do</p><p>hospital.</p><p>E Annie se viu de volta no passado, na antiga cama, de manhã cedo.</p><p>Mike levando Jacob para ela amamentar, o corpinho dele acomodado entre</p><p>os dois. O bebê que eles haviam feito. Um milagre. Normalmente, quando</p><p>Annie pensava naquela época, acabava ficando comprometida pela raiva</p><p>que sentia. Mas Mike também perdera tudo aquilo. Mesmo tendo Jane</p><p>agora, Annie não estava cega de raiva a ponto de não perceber que isso</p><p>nunca poderia compensá-lo pelo que acontecera. Nada poderia. Mike era a</p><p>única pessoa capaz de entender de verdade a sensação de segurar aquele</p><p>casaquinho e se lembrar do bebê que já não estava mais ali. E, afinal, talvez</p><p>aquilo contasse para alguma coisa.</p><p>Annie suspirou sozinha. Maldita Polly. Por mais que tentasse, era muito</p><p>difícil permanecer imune àquela irritante atitude esperançosa dela.</p><p>DIA 28</p><p>PERDOE ALGUÉM</p><p>— Acho que mudei de ideia. Podemos voltar?</p><p>— Vamos lá. Você sabe o que dizem: Amargura é como tomar veneno e</p><p>esperar que outra pessoa morra. E você, minha cara Annie, já tomou um</p><p>galão inteiro.</p><p>Annie fechou a cara. Gostava do seu veneno. Era como café forte, que a</p><p>estimulava e a fazia seguir em frente. Mas ali estava ela mesmo assim,</p><p>sentada no Volvo que Polly pegara emprestado com Milly.</p><p>— Então por que não estamos perdoando alguém por você, já que é tão</p><p>importante? Aposto que há alguém com quem esteja zangada.</p><p>Polly fechou a cara.</p><p>— Ainda não estou pronta.</p><p>— Eu também não.</p><p>— Você teve mais tempo. E, confie em mim, o meu é um desgraçado da</p><p>pior categoria.</p><p>— É você quem estava falando que temos que perdoar as pessoas,</p><p>deixar o veneno de lado e por aí vai. — Annie olhou para Polly. — É o Tom</p><p>que você não quer perdoar? — arriscou. — Não que você tenha me dito</p><p>quem é Tom.</p><p>Polly fez outra careta.</p><p>— Já disse que não estou pronta. E, de qualquer modo, hoje é o seu dia</p><p>de perdoar. Depois eu pensarei em mim. Vamos, é o momento perfeito para</p><p>você. Viu suas antigas amigas, elas disseram que Jane se sente péssima... é</p><p>o destino.</p><p>— Não é o destino, é você se intrometendo. Eu nem teria visto Zarah se</p><p>você não tivesse armado aquilo.</p><p>— Você teria esbarrado com ela em algum momento.</p><p>Annie suspirou. Não adiantava protestar.</p><p>— Tá bom. Mas só vou conversar com eles. Não consigo perdoá-los.</p><p>Ainda não. — E, provavelmente, nunca conseguiria.</p><p>Depois de um instante, Polly disse:</p><p>— Tom é mesmo um grande babaca. Acredite em mim.</p><p>— Vou ter que confiar na sua palavra em relação a isso. — Annie não</p><p>gostava de bisbilhotar, mas Polly não confiava nela o bastante para</p><p>compartilhar seus segredos? Ela conhecia todos os segredos de Annie.</p><p>Parecia um pouco injusto, com ou sem o trunfo do câncer. — Você sabe</p><p>mesmo dirigir, não é? — perguntou desconfiada enquanto Polly mudava a</p><p>marcha.</p><p>— É claro que sei! Agora, para onde eu vou?</p><p>— Direita, e próxima à esquerda. Olhe para onde você está... Cristo! —</p><p>Ela se encolheu no assento enquanto Polly se atirava na rua seguinte. —</p><p>Depois siga reto.</p><p>Ela se lembrava tão bem do caminho até a casa que poderia ter chegado</p><p>lá de olhos fechados. Floral Lane, 175, em Ladywell. Ela costumava pensar</p><p>que até o endereço era auspicioso. Porque aquela já havia sido a casa dela.</p><p>Estava destinada a ser dela quando Mike telefonou empolgado dizendo que</p><p>havia encontrado o lugar perfeito, e eles foram ver a casa depois do</p><p>trabalho, com as mãos entrelaçadas suadas de nervoso, enquanto</p><p>examinavam a cerâmica preta e branca do hall de entrada, os narcisos no</p><p>quintal dos fundos — a parte favorita de Annie. Ela até chegou a tentar</p><p>chamar a casa de Chalé Narciso por um tempo, mas Mike achou que era</p><p>bobagem e que o carteiro talvez nunca a encontrasse. A casa era dela</p><p>quando eles encontraram um sofá Chesterfield em um antiquário, e quando</p><p>lixaram o piso de madeira com uma máquina grande e barulhenta, tão</p><p>potente que conseguia levantar Annie. E a casa era dela quando chegaram</p><p>ali com Jacob, vindo da maternidade, o rostinho de pétala de rosa</p><p>aparecendo no cestinho.</p><p>Mas agora a casa não era dela. Era de Jane. De Jane e Mike.</p><p>— E se eles não estiverem em casa?</p><p>Polly dobrou uma esquina quase derrubando um poste de luz.</p><p>— É domingo, é claro que eles vão estar em casa. Devem estar</p><p>montando móveis e preparando receitas do Jamie Oliver, como todo casal</p><p>suburbano.</p><p>— Obrigada por me lembrar. E olhe por onde anda! Jesus! — Um</p><p>pequeno terrier escapou por pouco de morrer sob a roda do carro. —</p><p>Quando exatamente você tirou sua carteira de motorista?</p><p>— Muitos anos atrás. Relaxe, está certo? Tenho câncer, acidentes de</p><p>carro não me dão medo.</p><p>— Mas eu não tenho câncer!</p><p>— Quem está dificultando as coisas agora? Escute, você vai só dar um</p><p>oi, dizer que quer conversar com eles porque já faz muito tempo, e que</p><p>lamenta ter brigado com eles e acha que está na hora de se entenderem e</p><p>deixarem tudo para trás. Então vocês se abraçam.</p><p>— Eu não vou dizer isso. Eles vão achar que eu me juntei a algum culto</p><p>ou coisa assim. — O que, considerando as últimas semanas, de certa forma</p><p>era verdade: o culto de Polly. — E, além do mais, não lamento ter brigado</p><p>com eles. A culpa foi toda dos dois.</p><p>— Annieeeee... este não é o espírito de reconciliação, é? Você deve ter</p><p>feito alguma coisa de que se arrepende.</p><p>Annie pensou nos e-mails longos e raivosos que mandara para Mike e</p><p>Jane quando havia bebido vinho demais, dizendo como os odiava e que</p><p>torcia para que os dois pegassem ebola.</p><p>— Hum, não sei.</p><p>— Diga apenas que os perdoa, então. É o maior presente que você</p><p>poderia dar a eles.</p><p>Mas Annie não os perdoava. E, conforme se aproximavam do que já</p><p>havia sido a casa de Annie, com as ruas e lojas conhecidas, ela voltou a</p><p>sentir a raiva que ainda carregava dentro de si como uma criança irritada.</p><p>Mas havia chegado até ali — começado alguma coisa —, e sabia que não</p><p>poderia voltar a ser amiga de Zarah e Miriam sem ao menos tentar</p><p>conversar com Jane.</p><p>— Vire aqui. É a última casa à esquerda, 175. Eu disse 175. — Polly</p><p>havia ultrapassado longe. Annie viu o modo como Polly estava estreitando</p><p>os olhos e um pensamento terrível lhe ocorreu. — Você não consegue</p><p>enxergar ou alguma coisa assim?</p><p>— Está tudo bem!</p><p>— Polly!</p><p>— Ok, ok, venho tendo alguns problemas de visão. O Bob está</p><p>pressionando o nervo óptico, só isso.</p><p>Annie fechou brevemente os próprios olhos.</p><p>— Jesus. Eu dirijo de volta para casa. É aqui, aliás.</p><p>— É uma gracinha! Adoro as janelas salientes e as telhas de ardósia.</p><p>Annie costumava se aconchegar nos bancos das janelas e sonhar</p><p>acordada, nos dias frios de inverno. Ela imaginava Jacob fazendo a mesma</p><p>coisa quando fosse mais velho, lendo um livro ou assistindo a um filme. E</p><p>talvez mais um ou dois filhos, também. Crianças fantasma agora, nunca</p><p>nascidas, assim como Jacob.</p><p>— Uma pena que eu já não more mais aí. Bem, acho que é melhor</p><p>acabarmos logo com isso. Você vem comigo?</p><p>Polly balançou a cabeça, negando. Ela havia estacionado com uma roda</p><p>sobre a guia.</p><p>— Vou ficar aqui e ouvir as mais tocadas na Magic FM. A vida era</p><p>realmente curta demais para ouvir a Radio Three. Gostaria de ter sabido.</p><p>O que ela ia dizer? E se a expulsassem da casa? Na calçada, Annie</p><p>olhou para trás, nervosa, e viu Polly balançando a cabeça ao som do rádio.</p><p>Annie percebeu, com um estranho misto de satisfação e tristeza, que Mike e</p><p>Jane haviam deixado os canteiros crescerem de forma desordenada, que as</p><p>ervas daninhas sufocavam os bulbos</p><p>delicados e as mudas que ela havia</p><p>nutrido. Ela ergueu a mão para a campainha, mas ficou paralisada em pleno</p><p>ar. Ela voltou a olhar para Polly, que havia abaixado o vidro da janela,</p><p>deixando escapar a batida dos Backstreet Boys.</p><p>— TRUNFO DO CÂNCER! — gritou.</p><p>Annie se encolheu e tocou a campainha.</p><p>Ninguém respondeu por séculos, e ela já sentia um terrível alívio</p><p>subindo pelo peito quando, de repente, ouviu passos se aproximando do</p><p>outro lado da porta.</p><p>— Já vou! — Era a voz de Jane. Uma voz que Annie ouvia todo dia, se</p><p>não pessoalmente, pelo telefone. Dissecando namorados, empregos, os</p><p>planos de casamento de Annie e o enredo do episódio mais recente de</p><p>Grey’s Anatomy.</p><p>Aquela tinha sido uma péssima ideia. Mas já era tarde demais, porque</p><p>Jane estava abrindo a porta e Annie não sabia para que olhar primeiro. Se</p><p>para a ex-melhor amiga, que estava dois anos mais velha, um pouco mais</p><p>enrugada e grisalha, usando calça de pijama e um pulôver grande e largo.</p><p>Ou para o volume por baixo do pulôver, onde a mão de Jane estava pousada</p><p>com a aliança de casamento cintilando. Ah, Deus. Por que Annie não havia</p><p>considerado essa possibilidade?</p><p>Jane estava grávida.</p><p>Era estranho entrar em uma casa que já fora sua e agora não era mais. A</p><p>mobília e até muitos livros na sala de estar eram os mesmos, mas em cima</p><p>da TV estava um porta-retratos com a foto do casamento de Jane, não de</p><p>Annie. Inclusive com o mesmo noivo. Mas a casa estava muito mais</p><p>desarrumada — Annie já se sentira tão orgulhosa da arrumação da casa, era</p><p>estranho se lembrar disso —, e havia xícaras de café vazias e revistas</p><p>espalhadas pela casa. Ela também viu um tapete no chão que era claramente</p><p>para uma criança. Tinha a estampa de um jardim, com aplicação de</p><p>borboletas, pássaros e flores. Estavam preparando a casa para o bebê. O</p><p>bebê de Mike e Jane. Quando Annie falou, sua voz saiu como gelo fino</p><p>sobre um rio de lágrimas.</p><p>— Eu não sabia.</p><p>Jane parecia chocada.</p><p>— Não. Nós tentamos não publicar nada online, para o caso de... Eu</p><p>disse a Mike que ele deveria te contar, mas... você sabe.</p><p>Nós. As três letras foram como uma facada em Annie.</p><p>— Desculpe por aparecer de repente.</p><p>Jane se apressou em recolher algumas revistas.</p><p>— Você veio... hum, veio pegar alguma coisa?</p><p>— Não. Não é isso. — Ah, Deus, como explicar? — Eu poderia me</p><p>sentar por um segundo, Jane? Só quero conversar. Tudo bem para você?</p><p>Jane parou, e Annie se lembrou envergonhada da última vez que esteve</p><p>naquela casa, do dia em que foi embora, berrando na calçada da frente sobre</p><p>como Jane era uma destruidora de lares e Mike um traidor nojento.</p><p>— Tudo bem. Acho que já está na hora. — Ela indicou o sofá com um</p><p>aceno de cabeça. — Por que você não...?</p><p>Era o mesmo sofá, com um lindo couro vermelho craquelado. Annie</p><p>havia no entanto pagado por ele, o único sofá que ela tinha no momento era</p><p>horrível, uma imitação de couro que conseguira na loja de uma organização</p><p>de caridade, a British Heart Foundation. Ela tentou não se importar com</p><p>isso enquanto se sentava. Mike se sentira tão mal, que oferecera a ela a casa</p><p>e tudo o que estava dentro dela, mas Annie fora orgulhosa demais para</p><p>aceitar um centavo sequer. Quando ela se mudou, não tinha nem colheres,</p><p>de tão determinada que estava em abandonar a antiga vida e deixar tudo</p><p>para trás.</p><p>— Chá?</p><p>— Hum, não, obrigada. — Annie não tinha ideia de quanto tempo Jane</p><p>a deixaria ficar depois que ela começasse a falar. — Bem, você deve estar</p><p>se perguntando por que eu...</p><p>— Sim, é um pouco inesperado.</p><p>Jane se abaixou para pegar uma xícara suja e os cabelos esconderam seu</p><p>rosto. Ela ainda era loira, mas agora havia mais fios grisalhos na raíz.</p><p>Antes, já fora Jane sentada no sofá e Annie a anfitriã empolgada e feliz,</p><p>preparando-se para o nascimento do filho. Fora a única vez em sua vida que</p><p>ela não carregava uma inveja secreta de Jane — que, afinal, havia crescido</p><p>com irmãos, em uma bela casa e com um pai —, e se sentiu em paz.</p><p>Na época, Jane parecia ligeiramente perdida, sempre com o nome de um</p><p>homem diferente nos lábios, lágrimas presas na garganta enquanto falava. E</p><p>Annie estava sempre ali para ouvir, para oferecer lenços de papel, chá e</p><p>abraços. Engraçado... Quando Jane parou de reclamar da vida amorosa,</p><p>Annie pensou que a amiga finalmente estava feliz por estar solteira,</p><p>seguindo em frente com a vida. Mas, na verdade, ela estava seguindo... na</p><p>direção de Mike.</p><p>— Bem — disse Annie —, acho que venho fazendo um pouco de...</p><p>muita autoreflexão recentemente.</p><p>— Ah — falou Jane.</p><p>— Então, quis vir e lhe pedir... tentar entender o que aconteceu. Entre</p><p>você, eu e... ele.</p><p>— Você viu Zar e Miriam. Certo?</p><p>— Sim. Elas disseram que você... que você se sentia mal pelo que</p><p>aconteceu.</p><p>— Annie, eu me sinto tão mal que poderia morrer. Mas você precisa</p><p>entender que não planejei isso. Mike e eu...</p><p>Annie se retraiu. Ela costumava dizer a mesma frase. Mike e eu. Meu</p><p>marido, Mike.</p><p>— ... você e ele já estavam... tão devastados, e eu também estava, e</p><p>você estava totalmente fora de alcance, e ele só precisava de alguém com</p><p>quem conversar, e antes que eu me desse conta nós estávamos... e agora eu</p><p>estou... bem...</p><p>— Estou vendo. — Annie olhou para a barriga de Jane. — Quanto</p><p>tempo...?</p><p>Jane pousou as duas mãos na barriga, um gesto que Annie conhecia</p><p>muito bem.</p><p>— Cerca de sete meses.</p><p>O bebê dentro dela já estava totalmente formado, punhos e pés</p><p>enroladinhos. Os pezinhos de Jacob haviam sido assim, como minúsculos</p><p>ratinhos dentro de meias azuis e verdes. Tudo seguro, aconchegante, em</p><p>tons pastel.</p><p>Annie engoliu com dificuldade antes de continuar.</p><p>— Sei que você não fez o que fez de propósito — falou (embora não</p><p>estivesse totalmente convencida). — Mas eu tinha perdido tudo. Meu bebê,</p><p>meu marido, minha casa... e também você. Eu não tinha mais nada, Jane.</p><p>Jane não a olhava nos olhos.</p><p>— Eu sei. Sinto muito. Sinto tanto sobre Jakey... Você sabe quanto eu o</p><p>amava. Fiquei arrasada com tudo o que aconteceu.</p><p>Annie teve vontade de gritar: Não diga o nome dele! Mas mordeu a</p><p>língua. Jane tinha sido uma madrinha incrível, visitava Jacob toda semana,</p><p>tirava centenas de fotos lindas.</p><p>Jane fungou.</p><p>— Deve ter sido terrível para você. Não consigo nem imaginar. Mas o</p><p>que aconteceu com a gente... foi um acidente, e eu não tive a intenção.</p><p>Apenas me apaixonei. Sei que foi egoísta da minha parte. Mas eu o amava</p><p>tanto! Eu me apaixonei perdidamente e não sabia o que fazer.</p><p>— Vocês estão felizes? Vocês dois?</p><p>Logo seriam três. Annie se perguntou se iriam usar o quarto de Jacob.</p><p>Se o pintariam sobre os estênceis de patos e ursos felizes que ela havia</p><p>feito.</p><p>Jane hesitou, então assentiu, culpada.</p><p>— Ao menos acho que sim. Quer dizer, tenho andado nauseada e</p><p>cansada... — Ela se interrompeu, como se tivesse se dado conta de com</p><p>quem estava falando. — Desculpe. Acho que você não quer ouvir sobre</p><p>como é difícil estar grávida.</p><p>— Eu me lembro. — Também era difícil ter um bebê. Mas era fácil se</p><p>esquecer disso às vezes, tamanha era a sua vontade de ter Jacob de volta.</p><p>Parecia traição lembrar da sensação de ficar dando voltas naquela mesma</p><p>sala com ele gritando em seu ouvido, molhando-a de lágrimas e muco,</p><p>conforme três da manhã se tornava quatro. Annie sentiu uma profunda</p><p>tristeza. — Não foi culpa sua o que aconteceu com Jakey. Mas Jane... acho</p><p>que o que você fez foi a última gota. O que me destruiu de vez.</p><p>Jane deixou escapar um som, como uma fungada feia, e Annie viu que</p><p>ela estava chorando, o rosto franzido. E sentiu seu próprio rio de lágrimas</p><p>se desviando, fluindo perigosamente sob o gelo. Mas não, ela e Jane não</p><p>iriam chorar uma nos braços da outra e não voltariam a ser melhores</p><p>amigas.</p><p>— Sinto tanto — disse Jane, a voz estrangulada de choro. — Sinto tanta</p><p>saudade de você. Fiz uma coisa tão terrível.</p><p>O coração de Annie estava tão pesado, que parecia guardar um balde</p><p>cheio de água.</p><p>— É melhor eu ir.</p><p>Ela não podia ficar mais tempo ali, naquela casa encantadora que já fora</p><p>dela. Era tudo tão injusto. Jane tinha sua casa, seu marido, e agora um bebê.</p><p>E Annie... não tinha nada. Por um segundo, ela</p><p>imaginou outro mundo, um</p><p>em que Jane estivesse grávida de outro homem que não o seu ex-marido.</p><p>Como Annie teria ficado feliz por ela. A perda de tudo aquilo — não apenas</p><p>de Jacob, mas também de Jane e do bebê que estava para chegar — deixou</p><p>o coração de Annie muito apertado. Ela conseguiria imaginar um tempo em</p><p>que pudesse fazer parte da vida deles? Em que fosse a festas de aniversário,</p><p>mandasse presentes?</p><p>Annie levantou os olhos para o teto.</p><p>— Vocês vão usar... vão usar o quarto dele?</p><p>— Não há outro lugar. — Jane estava mordendo o lábio. — Sinto muito.</p><p>Teríamos nos mudado, só que, você sabe... o preço das casas, e...</p><p>— Tudo bem.</p><p>É claro que eles iam usar o quarto — onde mais poriam o bebê? —, mas</p><p>ainda assim doía, como um corte aberto.</p><p>Quando Annie já se encaminhava para a porta, de repente ela foi aberta</p><p>com um rangido, e Mike estava ali. Ele segurava a chave no alto, paralisado</p><p>de um jeito quase cômico, com uma expressão de surpresa no rosto.</p><p>Annie percebeu rapidamente que ele também havia envelhecido —</p><p>estava mais calvo, a barriga estava maior embaixo da camisa polo e do</p><p>jeans.</p><p>— Annie?</p><p>Mike tinha várias sacolas de pano nas mãos. Então ele finalmente</p><p>começara a usá-las.</p><p>— Oi, Mike.</p><p>Ele virou rapidamente a cabeça para Jane.</p><p>— Amor, ela...</p><p>Amor. Aquilo foi como uma faca enfiada na barriga de Annie. Ela</p><p>observou os dois terem uma rápida conversa silenciosa, como a própria</p><p>Annie costumava ter com ele.</p><p>Ela fez outra cena?</p><p>Não, está tudo bem.</p><p>Annie não conseguiria suportar outro confronto emocional. Ela se</p><p>forçou a dar um sorriso, ou ao menos alguma coisa próxima disso.</p><p>— Preciso ir. Obrigada por conversar comigo, Jane. Pa... — A palavra</p><p>ficou presa na língua dela. — Parabéns. Tchau.</p><p>Ela deixou os dois parados na porta da casa que logo abrigaria uma</p><p>família de três e, quando chegava à calçada, ouviu Mike dizer:</p><p>— Tem uma mulher maluca cantando a trilha de Grease no carro ali</p><p>fora.</p><p>DIA 29</p><p>FAÇA UMA LIMPA NO FACEBOOK</p><p>— Bom para você — disse Polly quando Annie, um tanto emburrada, lhe</p><p>mostrou o celular para inspeção. — Os dois se foram?</p><p>— Os dois.</p><p>Mas a sensação não era boa. Ela fora amiga de Jane desde antes da</p><p>existência da internet, antes das menstruações e dos garotos, antes até que</p><p>uma das duas soubesse amarrar os sapatos. E agora Annie apagara Jane de</p><p>vez. E não conseguia evitar a sensação de que tudo poderia ter sido</p><p>diferente se ela tivesse esperado mais um ou dois anos. Talvez se Polly não</p><p>a tivesse pressionado a fazer aquilo antes que estivesse pronta... Mas não.</p><p>Aquelas pontes haviam sido queimadas, com pessoas gritando e pulando de</p><p>cima dela nas águas raivosas. Não adiantava nada se prender aos “e se”.</p><p>Polly apertou o braço de Annie enquanto as duas se acomodavam na</p><p>cafeteria do hospital.</p><p>— Vamos, eu te pago um bolo. Acha que o dr. Q gostaria de alguma</p><p>coisa para comer depois da corrida dele? Eu o vi mais cedo, dando voltas ao</p><p>redor do hospital. Ele está, tipo, realmente em forma.</p><p>Annie franziu o cenho.</p><p>— Polly.</p><p>— É só bolo.</p><p>— Claro que é. De qualquer modo, se eu comer mais bolo, vou acabar</p><p>desenvolvendo diabetes tipo II e, quando eu estiver aqui com você, você</p><p>não poderá mais usar o trunfo do câncer.</p><p>— Tá bom, tá bom. Vamos sair daqui então; vi o dr. McRabugento e</p><p>tenho que evitá-lo. Ele disse que preciso passar a usar uma bengala branca,</p><p>de tão ruim que está a minha visão! Consegue imaginar, eu andando de</p><p>bengala branca? Não sou cega.</p><p>Annie viu o dr. Max no balcão da cafeteria, aguardando o que parecia</p><p>ser um expresso quádruplo, e acenou. Ela se pegou imaginando à toa se ele</p><p>tinha conta no Facebook.</p><p>DIA 30</p><p>ESCUTE</p><p>Annie respirou fundo. Já havia reescrito o e-mail algumas vezes e aquilo já</p><p>estava ficando ridículo. Eram apenas cinco palavras. Por que não podia</p><p>apenas apertar enviar? Mas e se o destinatário risse ou ignorasse o e-mail,</p><p>ou o encaminhasse para outra pessoa? A mão de Annie pairou sobre o</p><p>mouse, paralisada. O que Polly diria? Alguma coisa sem sentido sobre ter</p><p>que estar escuro para ver as estrelas, sem dúvida. Por alguma razão, grande</p><p>parte das frases motivacionais de Polly eram sobre astronomia.</p><p>Ela suspirou e clicou. Gostaria de almoçar comigo hoje? Então, baixou</p><p>os olhos para a mesa, sentindo um frio no estômago. Aquilo seria</p><p>constrangedor. Sobre o que conversariam? Considerando que ela aceitasse.</p><p>Mas quando levantou os olhos, Fee estava assentindo com a cabeça</p><p>entusiasmadamente para ela.</p><p>— Que ótima ideia, Annie. Eu sempre acabo almoçando na minha mesa e</p><p>continuo trabalhando enquanto como.</p><p>— Eu sei. Mas não somos pagas para isso, não é mesmo?</p><p>— Você está certa. E eu não conhecia este lugar. — Elas seguravam</p><p>copos de isopor com café e pãezinhos de bacon, sentadas nas cadeiras de</p><p>metal do lado de fora do quiosque de café do parque. Fee fechou os olhos</p><p>para sentir o calor suave do sol de primavera. — Isso me fez sentir melhor.</p><p>Obrigada, Annie.</p><p>— Está tudo... tudo bem? — perguntou Annie timidamente. Ela não</p><p>queria bisbilhotar, mas nos últimos tempos Fee andava diferente do que</p><p>costumava ser. Havia pelo menos um mês que não tentava convencer o</p><p>pessoal do escritório a ir ao karaokê.</p><p>— Ah, as coisas estão um pouco difíceis em casa. Minha companheira,</p><p>Julie, está fazendo tratamento de fertilização in vitro, e isso está custando</p><p>uma fortuna. E continuam falando em demissões no trabalho. Acho que isso</p><p>me deixa nervosa.</p><p>— Lamento saber disso. Sei como pode ser difícil quando se está</p><p>tentando engravidar. — Uma lembrança a atingiu, Mike implorando: Por</p><p>favor, Annie, temos que parar de tentar, isso está matando você, e ela tentou</p><p>esconder a careta com um gole de café.</p><p>— Eu me sinto tão impotente. Como se eu devesse estar fazendo isso,</p><p>mas ela é mais nova e faz mais sentido... — Fee se interrompeu. — Você</p><p>deve me achar péssima por levantar esse assunto, Annie. Depois de tudo</p><p>pelo que passou.</p><p>— Ah! Por causa do... meu filho? — Todos sabiam é claro, embora</p><p>ninguém mencionasse o assunto. Ela passara meses de licença, com a</p><p>sensação de que também acabaria morrendo de puro sofrimento. —</p><p>Sinceramente, não me importo. Por séculos depois do que aconteceu,</p><p>ninguém sequer mencionava os próprios filhos comigo ou os levava para</p><p>me ver. Eu me sentia uma leprosa. — Como se filhos mortos fossem</p><p>contagiosos ou coisa parecida. — Portanto, por favor. Fico feliz de ouvir.</p><p>Durante a meia hora seguinte, Annie escutou Fee falar sobre o estresse</p><p>por que estava passando, como Julie estava dormindo no quarto de</p><p>hóspedes, como estavam prestes a estourar os fundos das contas bancárias,</p><p>como Fee estava preocupada com a possibilidade de perder o emprego. E</p><p>era estranho, pensou Annie, ao menos por uma vez, não ser a pessoa que</p><p>estava desmoronando. Como se talvez ela ainda pudesse ser alguém que</p><p>ajuda outras pessoas.</p><p>DIA 31</p><p>DANCE COMO SE NINGUÉM ESTIVESSE OLHANDO</p><p>— Mas você deveria estar fazendo isso, Poll? Quer dizer, está bem o</p><p>bastante?</p><p>— Do que você está falando? Estou perfeitamente bem!</p><p>Polly já estava dançando no ritmo da música enquanto as pessoas se</p><p>trocavam, tirando os agasalhos e revelando leggings justas e coletes. Annie</p><p>abraçou o próprio corpo — estava usando tantas camadas, que era</p><p>impossível dizer se era uma mulher, um homem ou o Abominável Homem</p><p>das Neves.</p><p>— Isso vai ser um pesadelo — disse George, bebendo uma Coca Diet.</p><p>Ele tinha sombras escuras sob os olhos e um sutil cheiro de vodca emanava</p><p>de seus poros. — Detesto essas coisas hippies. Ainda mais quando não</p><p>estou completamente chapado.</p><p>Ao menos uma vez Annie concordou com ele. Abraçar estranhos e ficar</p><p>se roçando neles provavelmente é normal quando se está sob o efeito de</p><p>drogas, mas não às seis da manhã de uma quarta-feira, totalmente sóbria.</p><p>Ela sentiu medo. Estava fazendo o melhor possível para evitar contato</p><p>visual, fingindo que nada estava acontecendo, mas, em algum momento nos</p><p>minutos seguintes, a aula de dança seguindo a técnica de contato</p><p>improvisação iria começar, e ela teria que tocar as pessoas, deixá-las</p><p>colocar a mão em sua cintura — se conseguissem encontrar — e em suas</p><p>pernas e braços,</p><p>e talvez até em seu rosto, e... ah, Deus.</p><p>Annie segurou o braço de George.</p><p>— Não consigo. Eu só... não consigo mesmo. Não sei dançar, odeio que</p><p>as pessoas me toquem e realmente, realmente não consigo. Sinto muito.</p><p>— Não diga que sente muito para mim, estou no mesmo barco. — Ele</p><p>passou os dedos pelo rosto exausto. — Odeio dançar sóbrio. Odeio usar</p><p>roupas apertadas. Odeio sorrir.</p><p>Os outros participantes estavam todos cintilando de saúde, sorrindo</p><p>animados uns para os outros, cumprimentando a professora com abraços.</p><p>Annie estava em um canto, o mais escondida possível. Sentindo uma</p><p>pulsação de pânico no estômago.</p><p>— Ah, Deus. Não consigo.</p><p>— Por que eu não entro de verdade em uma academia de ginástica, em</p><p>vez de fingir? — lamentou George, encolhendo a barriga. — Achei que os</p><p>benditos gays eram só fortes e em forma. Esses aqui são tão... saudáveis.</p><p>Polly veio girando na direção deles. Embora estivesse magra, não era</p><p>saudável. Era possível ver os cabelos quebradiços embaixo do lenço de</p><p>cabeça, os ossos proeminentes, a pele cansada. Ela já estava arfando e eles</p><p>nem haviam começado. Annie e George trocaram um rápido olhar.</p><p>— Isso vai ser incrível. Vocês vão participar, não vão?</p><p>— É claro! — disse Annie, tentando parecer convincente.</p><p>— Mal posso esperar! — George sorriu e fez um joinha. Quando Polly</p><p>deu as costas, ele fez uma careta para Annie. — Vamos. A gente vai dar um</p><p>jeito de enfrentar isso e ganhar, tipo, um milhão de pontos como bom irmão</p><p>e boa amiga. Está dentro?</p><p>— Estou — concordou Annie, relutante, achando bom ter um aliado,</p><p>mesmo que inesperado.</p><p>— Agora, pegue seu parceiro pelos braços... olhe bem dentro dos olhos</p><p>dele!</p><p>Naquele momento, Annie tinha como par um homem de meia-idade de</p><p>hálito tóxico e cabelos grisalhos ondulantes.</p><p>— Ajuda se você realmente se abrir para isso, Anna.</p><p>— É Annie. — E quem fez dele o rei da aula de contato e improvisação?</p><p>— E empurreeeeee... — cantarolou a professora, uma ruiva muito</p><p>magra chamada Talia; a calça de lycra que usava parecia ter sido pintada</p><p>com spray em suas pernas esguias.</p><p>O homem do hálito ruim empurrou Annie com força.</p><p>— Você deve empurrar de volta — disse ele, prestativo.</p><p>— Estou empurrando — ofegou Annie.</p><p>— Uau. Você realmente precisa trabalhar seus quadris, Anna. Eu</p><p>poderia sugerir uma academia ótima...</p><p>— E mudaaaandoooo de parceiros!</p><p>— Tchau! — Annie escapou antes do inevitável high five. Ela não fazia</p><p>mais aquilo. Era uma questão de princípios.</p><p>George a agarrou, os olhos arregalados.</p><p>— Socorro. Eu acabei de colocar a minha cabeça entre as pernas de</p><p>uma mulher. Não fazia isso desde que nasci.</p><p>Eles olharam para Polly, que estava girando, a echarpe turquesa</p><p>flutuando como um estandarte, roçando nas pessoas. Ela estava respirando</p><p>com dificuldade, e Annie desconfiava de que a amiga não conseguia</p><p>enxergar muito bem.</p><p>— Ela está bem? — Annie perguntou a George.</p><p>— Não sei. Ela está em total negação sobre esse problema de visão.</p><p>Venha comigo. — Eles foram dançando até onde ela estava. — Ei, Poll, que</p><p>tal descansar por algumas músicas?</p><p>— Não preciso... descansar — arquejou ela.</p><p>— Não, mas você está ofuscando o resto de nós. Que tal dar um tempo</p><p>para que Annie e eu possamos nos conectar com as pessoas?</p><p>— Tá bom — disse ela e se sentou rapidamente em uma cadeira</p><p>próxima. Ela levou a mão às costas, o rosto contorcido de dor. — Só por</p><p>vocês.</p><p>— Cole em mim — murmurou George para Annie. — Vamos só fingir.</p><p>E assim, pelos cinquenta minutos seguintes, os dois giraram, gemeram,</p><p>rolaram no chão e jogaram os braços para o alto para absorver a energia do</p><p>universo. Annie sentia cada vez mais calor dentro de suas inúmeras</p><p>camadas de roupa, até conseguir sentir o suor escorrendo por baixo do sutiã.</p><p>George estava irritantemente próximo, a barba no queixo por fazer às vezes</p><p>arranhando a pele dela, o som de sua respiração zumbindo em seu ouvido.</p><p>Quanto tempo fazia que ela não ficava tão próxima de outra pessoa? Não</p><p>desde Mike, certamente. Annie manteve os olhos fixos no chão, os tapetes</p><p>de ioga amassados com um leve cheiro de suor, e tentou contar os segundos,</p><p>como quando fazia algum procedimento médico doloroso e indigno. E isso</p><p>era algo que ela conhecia bem. Por fim, acabou. Ela tirou a cabeça de baixo</p><p>da axila de George, que cheirava como se alguém tivesse espirrado todo um</p><p>frasco de aromatizador de ambiente nela.</p><p>— Acho... que terminou — disse ela, mal conseguindo acreditar.</p><p>— Sério? — Ele soava arrasado.</p><p>— Oiii! — Polly se aproximou. Ela parecia cansada, mas feliz, com</p><p>olheiras escuras no rosto pálido. — Isso foi incrível. Eu só queria ter feito</p><p>essa aula anos atrás. Me senti tão... conectada.</p><p>Para Annie, a sensação fora de estar em um vagão do metrô lotado,</p><p>prensada contra a braguilha de alguém por uma hora inteira. Só que com</p><p>todo mundo olhando para ela e sorrindo agressivamente.</p><p>— Foi... uma experiência — arriscou Annie.</p><p>George foi mais honesto.</p><p>— Jesus Cristo, Poll. É melhor você realmente estar morrendo, porque</p><p>eu nunca, nunca mais farei isso. Vou precisar de anos de terapia para</p><p>superar essa experiência.</p><p>Polly afastou o comentário com um aceno de mão. Ofender-se era uma</p><p>das muitas coisas com as quais decidira que não tinha tempo a perder, junto</p><p>com se preocupar em contar calorias ingeridas, entrar em filas e tentar</p><p>parecer descolada. Ela passou um cardigã por cima dos ombros magros e</p><p>Annie percebeu que as mãos da amiga tremiam. Mas sua voz estava</p><p>animada.</p><p>— Acho que vou sair para tomar um smoothie de maconha com parte</p><p>do pessoal, interessados?</p><p>George e Annie trocaram um olhar.</p><p>— Tenho que trabalhar — Annie apressou-se em dizer.</p><p>— No fim de semana?</p><p>— Hum, hoje é quarta-feira, Poll.</p><p>— Ah, é? Bem, para mim dá tudo no mesmo, hoje em dia. E você,</p><p>mano?</p><p>— Tenho um teste dos grandes... provavelmente.</p><p>— Para quê?</p><p>— Hum, não sei — improvisou George. — O agente se esqueceu de me</p><p>dizer, haha.</p><p>— Certo. — Polly acenou. — Vejo vocês logo?</p><p>— Amanhã. Lembra-se?</p><p>— É claro que me lembro. Dã, ainda estou no domínio das minhas</p><p>faculdades mentais. Até logo, então.</p><p>Quando ela saiu, Annie olhou para George de novo e os dois caíram na</p><p>gargalhada.</p><p>— Santo Deus — disse Annie. — Já tomei anestesia geral mais</p><p>agradável do que esta aula.</p><p>— Nunca mais faremos isso. Mesmo se ela implorar. Temos um acordo?</p><p>— Temos — concordou ela. — Você realmente tem um teste?</p><p>— Ha, não. Do jeito que vão as coisas, eu não conseguiria ser escolhido</p><p>nem para uma fila de suspeitos da polícia. A menos que alguém esteja</p><p>selecionando candidatos para o papel de “marido espancado”.</p><p>Annie ficou em silêncio. Ela desconfiava de que havia mais por trás do</p><p>olho roxo de George — agora já quase curado — do que ele estava dizendo,</p><p>mas teve medo de perguntar.</p><p>George jogou a bolsa por cima do ombro e enfiou as mãos nos bolsos</p><p>do colete.</p><p>— Tchau, Annie. Nos vemos amanhã, em mais uma invenção absurda</p><p>da minha irmã.</p><p>Ele se inclinou e deu um beijo no rosto dela.</p><p>Annie enrubesceu. Jamais teria sequer falado com alguém como George</p><p>— tão rabugento e teimoso —, se não fosse por Polly e toda aquela loucura.</p><p>A menos que ele ligasse para reclamar sobre algum imposto. E ali estava</p><p>ela, na manhã de um dia de semana, fazendo gracinhas e cintilando de suor,</p><p>tendo que estar no trabalho dali a uma hora. Tempo para comprar um café</p><p>com leite em algum lugar, talvez um croissant, e se sentar um pouco para</p><p>aproveitar o sol da primavera. Annie pensou na cidade que se espalhava</p><p>diante dela, e pensou em Sharon, em Jeff e Fee, todos enfiados naquele</p><p>escritoriozinho fedorento em Lewisham, e deu um suspiro profundo,</p><p>sentindo algo que talvez estivesse próximo de satisfação.</p><p>DIA 32</p><p>FAÇA TRABALHO VOLUNTÁRIO</p><p>— Isso é ainda pior — reclamou George. — Olhe para mim...</p><p>— Você está ótimo. Esse amarelo realmente combina com o branco do</p><p>seu olho.</p><p>Ele olhou irritado para Polly.</p><p>— Posso dizer de novo que, se você já não estivesse morrendo...</p><p>Annie ajeitou a própria fantasia.</p><p>— Entendo que George é o coelhinho da Páscoa, mas o que somos nós?</p><p>— Pintinhos, é claro. Pintinhos descolados.</p><p>Isso explicava o vestido amarelo</p><p>de babados e a meia-calça laranja. Pelo</p><p>menos ela precisava usar uma cabeça com bico que, com sorte, esconderia</p><p>sua identidade.</p><p>George ainda estava resmungando por causa de sua fantasia, que era</p><p>feita de pelo amarelo pálido e tinha orelhas caídas.</p><p>— Isto é tão humilhante. Sou protegido pelo princípio da equidade,</p><p>sabe?</p><p>— Pense nisso como um bico de alto nível como ator — estimulou</p><p>Polly. Ela conseguia fazer sua própria fantasia de pintinho parecer alta-</p><p>costura. — Qual é, pessoal? Isso é realmente importante.</p><p>Annie e George trocaram um olhar deprimido.</p><p>— Ao menos você não está vestido como uma corista rechonchuda —</p><p>disse ela. — Você ficou com o papel principal.</p><p>— Até parece. Qual é a minha motivação para o papel?</p><p>— Entregar ovos de Páscoa às pobres criancinhas sofridas da ala</p><p>infantil do hospital — falou Polly com severidade. — Àquelas que não</p><p>podem sair porque estão tão doentes, que isso poderia matá-las.</p><p>— Tá bom, tá bom. — George ajeitou as orelhas. — Vou atuar como</p><p>um Coelho da Páscoa que perdeu o papel principal de Em busca de</p><p>Watership Down por causa de uma trágica batalha contra a mixomatose e,</p><p>para compensar, imprime profundidade e emoção até nesse bico.</p><p>— Beleza. Muito bem, já escondemos os ovos por toda a ala infantil,</p><p>então vocês só precisam ajudar as crianças a os encontrarem, além de serem</p><p>legais, e tal. Acham que conseguem fazer isso?</p><p>— Sim — murmuraram Annie e George.</p><p>— Och, é o Pernalonga!</p><p>Ah, não. Sotaque escocês. O dr. Max estava se aproximando, com</p><p>camisa social e gravata, as duas amassadas, assim como o rosto ainda</p><p>cansado. Junto dele estava o dr. Quarani, elegante como sempre.</p><p>— Oi, dr. McRabugento! — gritou Polly. — O que acha? — Ela deu</p><p>uma voltinha e acrescentou, fingindo indiferença: — Ah, oi, dr. Quarani.</p><p>— Olá — disse ele. Educado, mas distante. Annie viu a expressão de</p><p>Polly desanimar. — Como está sua mãe, sra. Hebden?</p><p>— Muito melhor, obrigada. Eu a encontrei jogando caça-palavras em</p><p>uma revista, mais cedo. Há meses ela não conseguia.</p><p>— Que roupa interessante. — O dr. Max estava olhando para Annie.</p><p>Ela enrubesceu e puxou a bainha do vestido de babados para baixo.</p><p>— É para as crianças — falou.</p><p>— É mesmo, ou é para fazer os adultos se sentirem melhor consigo</p><p>mesmos? Espero que as fantasias tenham sido esterilizadas. É sério, Polly,</p><p>algumas daquelas crianças estão realmente muito doentes.</p><p>Polly revirou os olhos.</p><p>— Pare de se preocupar! Vai ser incrível.</p><p>— Ora, sinto muito, mas é meu trabalho me preocupar. Todos</p><p>higienizando as mãos! Se virem o aviso de que a criança não pode comer ou</p><p>beber, isso significa NADA na boca dessa criança. Não deem chocolate. Se</p><p>houver aviso de contato limitado, NÃO as aconcheguem ou peguem no</p><p>colo. Sei que isso pode perturbar vocês, mas pode realmente matá-los.</p><p>Entendido?</p><p>— Quer se juntar a nós, dr. Quarani? — perguntou Polly em um tom</p><p>inocente.</p><p>— Costumo lidar com os pacientes mais velhos.</p><p>O dr. Max o olhou de relance.</p><p>— Sami é um médico sério. Duvido que queira se juntar a adultos</p><p>vestidos como animais de fazenda.</p><p>— Coelhos não são animais de fazenda. — Polly ajeitou seu bico. —</p><p>Vamos, as crianças são muito fofas.</p><p>— Tenho que ir. Está na hora da minha corrida.</p><p>Ele se afastou apressado, sem nem olhar para trás, mexendo na pulseira</p><p>Fitbit.</p><p>— Bem, ele não é exatamente divertido — resmungou Polly.</p><p>O dr. Max franziu o cenho.</p><p>— Estou falando sério, Polly. Deixe Sami em paz. E tenha cuidado com</p><p>aquelas crianças. Elas são mesmo muito frágeis.</p><p>— Você vem também? — perguntou Annie.</p><p>Ele balançou a cabeça.</p><p>— Preciso extrair um tumor cerebral. Não é um...</p><p>— Emprego das nove às cinco, nós sabemos. — Polly revirou os olhos</p><p>de novo. — Essa é mesmo a sua frase preferida.</p><p>— Ora, peça mais fundos ao governo, se quiser que as coisas mudem.</p><p>Mas agora, divirtam-se.</p><p>Era engraçado como ele sempre conseguia fazer Annie se sentir frívola</p><p>e tola, mesmo quando estava tentando ajudar. Ela puxou a barra da saia de</p><p>novo. Polly mostrou a língua para as costas do dr. Max.</p><p>— Não liguem para o dr. McRabugento. Vamos lá, fazer o que viemos</p><p>fazer.</p><p>Annie sentia-se estranhamente nervosa conforme as portas se abriam e</p><p>ela desinfetava as mãos. Com adultos doentes, ela conseguia lidar. Ao</p><p>menos eles conseguiam compreender pelo que estavam passando. Mas o</p><p>que dizer a uma criança pequena que pode morrer antes mesmo de ter</p><p>vivido? Ao menos não haveria nenhum bebê. Ela não conseguiria lidar com</p><p>bebês doentes.</p><p>Havia cinco camas na ala, cada uma com um rosto espiando. No fim,</p><p>um garotinho usando pijama de Superman olhou para eles com uma</p><p>expressão esperançosa, de dentro de uma tenda plástica. Annie engoliu com</p><p>dificuldade. Tentou sorrir. A paleta de cores ali era mais viva, mas ainda</p><p>horrível. O amarelo da falsa esperança, o rosa do amor vão.</p><p>— Ei, todo mundo! Aqui estamos! O Coelho da Páscoa e os incríveis</p><p>pintinhos! — Polly entrou correndo na ala batendo as asas. As crianças</p><p>permaneceram em silêncio.</p><p>— Elas são um pouco tímidas — disse o enfermeiro, um rapaz robusto</p><p>cujo crachá dizia que se chamava Leroy. — Oi, Polly.</p><p>— Querido! — Eles trocaram beijos no rosto.</p><p>Annie ergueu as sobrancelhas para George. Como Polly conhecia todo</p><p>mundo?</p><p>— Este é Leroy, que basicamente manda neste lugar, e esta é Kate, a</p><p>pediatra. — Era uma moça sardenta, que parecia ter doze anos, usando o</p><p>uniforme do hospital e os cabelos presos em uma trança.</p><p>— Oi, pessoal. O dr. Max orientou vocês em relação ao controle de</p><p>infecções? Sei que é chato, mas alguns deles estão muito doentes.</p><p>— O que... o que eles têm? — George parecia uma figura mitológica</p><p>um tanto desanimada enquanto olhava para uma das crianças, que estava</p><p>com a cabeça enfaixada.</p><p>Kate deu uma volta com eles, apontando com o estetoscópio:</p><p>— O Bilal ali tem fluido no cérebro. A Amy tem um buraco no coração;</p><p>ela logo vai fazer a sua décima quarta cirurgia. — Era uma garotinha com</p><p>trancinhas que combinavam com a de Kate, usando um macacão rosa de</p><p>elefante, que ficou olhando para os três. — Matty tem ossos de vidro, e essa</p><p>é a sua décima fratura. — O garoto estava jogando em um Gameboy, as</p><p>duas pernas engessadas. — Matty! — Ela fez um gesto para que ele tirasse</p><p>os fones de ouvido, e o menino tirou, relutante. Kate continuou. — Esta é</p><p>Anika, ela tem um tumor cerebral.</p><p>— Hum — disse Polly, com o sorriso desconcertante que abria sempre</p><p>que falava sobre a própria doença. Ela explicou a Annie: — É que todo</p><p>mundo diz “câncer” do mesmo jeito, como se tivesse que engolir a palavra</p><p>com medo dela matar. É como falar o nome do Voldemort. Estou tentando</p><p>uma abordagem diferente, só isso.</p><p>Kate chegou às duas últimas crianças.</p><p>— Esta é Roxy. Tem quinze anos, mas pensa que tem cinquenta, não</p><p>acha que deveria estar na enfermaria das crianças.</p><p>Roxy era uma adolescente de aparência gótica usando um pulôver preto</p><p>e legging, com uma echarpe preta ao redor da cabeça careca. Ela desenhara</p><p>as sobrancelhas que não tinha com lápis escuro. A garota estalou a língua</p><p>em reprovação.</p><p>— Posso ouvir vocês, sabe? E isso é um horror.</p><p>— Sim, Roxy, sabemos que você odeia tudo. E na câmara ali está</p><p>Damon. O pobrezinho nasceu praticamente sem sistema imunológico.</p><p>Annie tentou não parecer horrorizada.</p><p>— Então... ele tem que ficar aí dentro?</p><p>— Estamos preparando Damon para um transplante de células-tronco,</p><p>por isso não podemos correr o risco de ele pegar uma infecção. Até seus</p><p>pais precisam conversar com ele através da câmara, infelizmente.</p><p>Annie sentiu um puxão nas penas e, quando olhou para baixo, viu Amy,</p><p>a menina menorzinha, parada timidamente perto dela.</p><p>— Aquele é o Coelho da Páscoa?</p><p>— Claro que é! Hum, talvez ele queira falar, agora...</p><p>Ela quase podia ver George se encorajando, entrando no papel. A voz</p><p>dele saiu aguda, com um ligeiro sotaque americano.</p><p>— Oi, crianças! Sou o Coelho da Páscoa! Sei que estão todos um pouco</p><p>tristes, mas estou aqui para comandar a caça aos ovos de Páscoa. Vamos ver</p><p>o que conseguem encontrar!</p><p>— É um profissional — murmurou Polly.</p><p>Annie não teria acreditado que seis crianças — uma dentro de uma</p><p>câmara — poderiam</p><p>causar tanta confusão. Foram encontrados ovos</p><p>embaixo das camas, no depósito de remédios, nos armários ao lado dos</p><p>leitos, no bolso do jaleco de Kate. Até Roxy se juntou ao grupo,</p><p>empurrando Matty em uma cadeira de rodas para que ele também pudesse</p><p>participar. Polly estava conversando com Anika.</p><p>— Você sabia que somos gêmeas de cérebro?</p><p>Anika a encarou timidamente.</p><p>— Eu tenho um caroço ruim na minha cabeça.</p><p>— Eu também. — Polly levantou o bico de pinto para mostrar a parte</p><p>careca da cabeça.</p><p>Kate chamou Annie.</p><p>— Acho que o Bilal precisa de ajuda. Ele está um pouco debilitado por</p><p>causa da cirurgia.</p><p>Bilal, que tinha metade do rosto escondido atrás de uma atadura, estava</p><p>tateando com cuidado a beirada de algumas prateleiras que guardavam</p><p>brinquedos. Embora “brinquedos” fosse um jeito gentil de chamar — o que</p><p>havia ali era alguns blocos coloridos encardidos, uma boneca com um olho</p><p>só e bichos de pelúcia com o enchimento para fora. Um pouco como as</p><p>crianças.</p><p>— Oi — disse Annie, desesperadamente nervosa. Ela não tinha</p><p>experiência com crianças com mais de dois meses de idade. — Hum... eu</p><p>sou Annie. Você é o Bilal?</p><p>Ele a encarou.</p><p>— Quantos anos você tem, Bilal?</p><p>— Cinco. — Ele parecia tão pequeno, tão doente.</p><p>— Veja, acho que tem alguma coisa escondida ali atrás. Junto dos</p><p>blocos de empilhar.</p><p>O menino esticou a mão e pegou um ovo pequeno, embrulhado em um</p><p>papel roxo cintilante. Seu rostinho, tão machucado e pálido, se acendeu.</p><p>— O Coelho da Páscoa!</p><p>— Isso mesmo, ele deixou um ovo para você! — Ela olhou para Kate</p><p>para confirmar se ele podia comer, e a pediatra assentiu. — Por que não</p><p>damos uma mordida?</p><p>Enquanto Bilal sujava o rosto todo de chocolate, Annie olhou ao redor.</p><p>Lá estava George, deixando a pequenina Amy deslizar sobre os pés/patas</p><p>dele. Polly, com Anika perto dela dissecando um ovo, conversava com</p><p>Roxy, fazendo gestos de como aplicar delineador. Também já não restava</p><p>muito de suas sobrancelhas por causa da quimioterapia. Matty conversava</p><p>com Damon, mostrando os ovos que encontrara, enquanto o outro menino</p><p>só olhava. Ele estava careca e pálido, mas usava uma camisola de hospital</p><p>de Star Wars, e Annie viu que havia um sabre de luz pendurado acima da</p><p>cama dele. Será que Jacob também teria gostado daquilo se tivesse vivido?</p><p>Ela teria que aprender sobre Stormtroopers, futebol e Lego?</p><p>Annie saiu do devaneio e viu Bilal a encarando debaixo da atadura.</p><p>— Ei, sabe de uma coisa? — disse ela, tentando parecer animada. —</p><p>Aposto que você poderia usar uns gorros legais sobre essa atadura. Polly,</p><p>você tem um chapéu em sua bolsa?</p><p>— É claro! Nunca vou a lugar algum sem um chapéu. Deixe-me ver. —</p><p>Ela procurou dentro da bolsa grande estampada e puxou um gorro. — Que</p><p>tal este? É o mais descolado que eu tenho. — Ela o colocou na cabeça de</p><p>Bilal e recuou para examinar o resultado. — Ah, não! Ele ficou descolado</p><p>demais... Não podemos deixar que ele use isso, podemos, Annie? Vai</p><p>roubar todo o meu estilo.</p><p>Annie seguiu a deixa.</p><p>— Ah, por favor, Polly, não precisa ficar com inveja só porque ele é</p><p>mais descolado que você.</p><p>Bilal riu. O gorro era grande demais para ele, mas escondia a brancura</p><p>ofuscante da atadura e o deixava mais como uma criança comum, ainda que</p><p>magérrima e usando pijamas do dr. Who durante o dia.</p><p>George se aproximou, empurrando suas orelhas de coelho para cima.</p><p>Estava ruborizado e sorrindo.</p><p>— Adivinhem só? Eles querem que eu volte, talvez toda semana. Ao</p><p>que parece, há um armário cheio de fantasias aqui. Quem diria que o</p><p>Coelho da Páscoa seria o meu papel de estreia! Preciso me preparar para a</p><p>minha interpretação de Coco, o Palhaço.</p><p>O olhar de Annie encontrou o de Polly e elas começaram a rir.</p><p>— Agora ele vai ficar insuportável — falou Polly. — E você, Annie?</p><p>Aprendeu alguma lição de vida na ala infantil? As crianças te ensinaram o</p><p>verdadeiro significado das coisas?</p><p>— Eu não iria tão longe. — Annie olhou para trás, para a triste coleção</p><p>de brinquedos. — Mas talvez eu tenha uma ideia da próxima coisa que</p><p>podemos fazer.</p><p>DIA 33</p><p>ORGANIZE-SE</p><p>— Certo, então Milly vai organizar as mídias sociais e as coisas online...</p><p>Ela diz que se eu ficar de longe, deixando que ela cuide de tudo, consegue</p><p>fazer acontecer. Suze vai cuidar da divulgação e da imprensa. O dr. Max vai</p><p>esclarecer tudo com o hospital, e...</p><p>— Ele vai? — interrompeu Annie. — Achei que ele não acreditasse em</p><p>arrecadação de fundos.</p><p>— Bem, alguma coisa o fez mudar de ideia — comentou Polly, fingindo</p><p>inocência. — Tem ideia do que possa ter sido, Annie?</p><p>— Não — apressou-se em dizer. — Eu posso cuidar dos ingressos,</p><p>receber o dinheiro, essas coisas. Também temos que criar um site para o</p><p>levantamento de fundos, caso as pessoas queiram doar pela internet.</p><p>— Boa ideia. Vai ser incrível.</p><p>Annie não estava tão certa. Sempre que pensava no que estavam</p><p>planejando, tinha a mesma sensação de quando era criança e subiu no</p><p>escorregador mais alto do parquinho — voltar para trás seria vergonhoso,</p><p>mas seguir em frente também era muito apavorante.</p><p>DIA 34</p><p>LIBERE SEU LADO ARTÍSTICO</p><p>— O que deveria ser isto?</p><p>— É uma criança. Sabe, como as que pretendemos ajudar?</p><p>Annie examinou a tela que Polly estava pintando.</p><p>— Para mim, parece um urso.</p><p>— Um urso?</p><p>— Sim. As pessoas vão achar que estamos arrecadando fundos para o</p><p>urso Paddington.</p><p>— Ok, ok, não fui bem em arte na escola, por isso acabei fazendo</p><p>história da arte. Mas pelo menos estou me esforçando.</p><p>Annie deu uma palmadinha no ombro dela. Polly estava usando o</p><p>macacão de novo, e o que restava de seus cabelos estava preso para trás</p><p>com uma echarpe de seda. Annie tinha que admitir que a amiga sabia tudo</p><p>sobre se vestir para uma ocasião.</p><p>— Tudo certo, vamos dizer às pessoas que as crianças pintaram. Talvez</p><p>você deva usar aquela bengala branca, afinal.</p><p>Polly fez biquinho por um momento, depois puxou o pincel para trás e</p><p>jogou tinta azul em Annie. A tinta aterrissou no jeans de Annie, que apenas</p><p>ficou de boca aberta. Então, ela enfiou os dedos no pote de tinta e jogou de</p><p>volta em Polly. A tinta acertou no rosto dela, e por um segundo Annie ficou</p><p>apavorada com a possibilidade de ter machucado a amiga. Mas então Polly</p><p>caiu na gargalhada e jogou mais tinta.</p><p>— Och, pelo amor de Deus — repreendeu o dr. Max, que estava só</p><p>passando. Aparentemente, ele estava “só passando” muito, para alguém tão</p><p>ocupado. — Vocês duas têm o que, doze anos?</p><p>Era assim que se sentia quando estava com Polly, percebeu Annie.</p><p>Como se fosse jovem e tivesse encontrado uma nova melhor amiga, e elas</p><p>tivessem a vida pela frente, empolgante, fresca, nova. A não ser, é claro,</p><p>que não era assim. Ela passou um lenço de papel para Polly.</p><p>— Pegue. Desculpe por isso. Por que não me deixa terminar este?</p><p>— Tá bem — disse Polly, surpreendentemente dócil. — Acho que vou</p><p>só me sentar ali um minutinho.</p><p>Annie viu a amiga se arrastar para uma cadeira, o rosto com uma</p><p>expressão de dor, e sentiu um frio de medo no estômago.</p><p>DIA 35</p><p>AJUDE ALGUÉM</p><p>Annie estava parada do lado de fora do quarto de Costas, a mão pairando a</p><p>um centímetro de bater. Buster fungava ao redor da porta, desacostumado a</p><p>vê-la fechada. Ela devia bater. Sabia disso. Mas nunca fizera isso, sempre</p><p>preferindo mandar uma mensagem de texto ou escrever bilhetes passivo-</p><p>agressivos (na verdade, ela não era muito melhor que Sharon nesse quesito).</p><p>Do outro lado da porta, Annie ouviu outro soluço profundo. Não havia</p><p>como negar: Costas estava chorando.</p><p>— Talvez seja melhor darmos algum espaço para ele — sussurrou para</p><p>Buster. O cachorrinho inclinou a cabeça para ela e soltou um ganido</p><p>baixinho.</p><p>— Tá bom, tá bom, está certo. — Annie suspirou e bateu com</p><p>delicadeza na porta. — Costas?</p><p>No mesmo instante, ele ficou quieto. Depois de um momento, disse:</p><p>— Sim?</p><p>— Hum... você está bem?</p><p>— Estou ótimo! — Foi como uma paródia de seu tom animado de</p><p>sempre.</p><p>— Escute, eu ouvi você. Sei que não está ótimo.</p><p>A porta se abriu e lá estava Costas usando a camiseta do trabalho, o</p><p>rosto vermelho e inchado.</p><p>Ele passou a mão pelo rosto parar secar as lágrimas como uma criança.</p><p>— Não é nada.</p><p>— É</p><p>alguma coisa, sim.</p><p>— É o trabalho — falou ele em um tom deprimido. — Eu estava na</p><p>cozinha, dançando com a Magic FM, sabe? Estava tocando a minha música</p><p>favorita.</p><p>— E qual era? — Como se ela não soubesse.</p><p>— Uma da Mariah Carey, é claro. E uns caras, os que entregam os</p><p>copos, riram de mim, me chamaram de uma palavra feia. — Ele abaixou a</p><p>voz para sussurrar. — Viado.</p><p>— Que horror. Sinto muito, mas não ligue, são só um bando de</p><p>preconceituosos.</p><p>— Eu não achei que seria assim aqui. Achei que não teria problema ser</p><p>gay, sabe? — O rosto dele estava franzido, a respiração, entrecortada, e</p><p>Annie reconheceu os sintomas de alguém à beira de uma grande crise de</p><p>choro. — E só o que eu faço é café. Eu queria trabalhar com moda, Annie.</p><p>Por isso eu vim para Londres. Não temos indústria de moda em Atenas. Só</p><p>que, em vez disso, só aprendi a fazer aqueles desenhos na espuma do leite.</p><p>— Ah, mas isso é bom também.</p><p>Ele fungou um pouco mais, os braços musculosos cruzados sobre o</p><p>peito.</p><p>— Sinto falta da minha casa, Annie. Estou com saudade da minha mãe</p><p>e das minhas irmãs. Elas estão tão longe. Vim para tão distante delas e não</p><p>consegui chegar a lugar nenhum em minha vida. Só faço imagens no café.</p><p>— Costas fungou de novo. — Eu... desculpe, Annie. Sei que isso é</p><p>bobagem, quando sua amiga e sua mãe estão doentes, mas... estou triste.</p><p>E, durante todo aquele tempo, Costas estivera do outro lado da parede e</p><p>Annie não fora capaz de ouvi-lo acima do som do próprio coração partido.</p><p>— Sinto tanto, Costas. Isso é mesmo muito chato.</p><p>Ele assentiu com a cabeça, as lágrimas escorrendo de novo.</p><p>— Está tudo bem. Vou ficar bem. É só... um revés. Pelo menos temos o</p><p>cachorrinho. Vem cá, bebê. — Ele pegou Buster no colo e o cachorrinho</p><p>começou a lamber suas lágrimas, fazendo Costas rir. Eles logo teriam que</p><p>se desfazer do cão, ele não poderia viver para sempre em um apartamento.</p><p>Mas como Annie conseguiria fazer isso?</p><p>Annie olhou para o relógio — duas da tarde. Ela havia planejado passar</p><p>o dia na cama com seus médicos de ficção favoritos (e não pensar no seu</p><p>médico favorito da vida real).</p><p>— Escute, vamos sair? Este apartamento é deprimente demais para</p><p>ficarmos aqui dentro, não é de espantar que a gente fique mal. Que tal eu te</p><p>oferecer o tradicional almoço britânico de domingo, no pub? Podemos até</p><p>levar o Buster, se você quiser.</p><p>DIA 36</p><p>CUIDE DO CABELO</p><p>— Sinceramente, Annie, você precisa deixar ir.</p><p>— Mas sou apegada a ele!</p><p>— Esse é o problema. — Polly se inclinou e levantou uma mecha dos</p><p>cabelos escorridos castanhos de Annie. — Cortar o cabelo é simbólico.</p><p>Significa abandonar o passado, se libertar... pense em Rapunzel, Dalila,</p><p>Britney Spears.</p><p>— Não vou raspar a cabeça.</p><p>— Corte apenas alguns centímetros, pelo amor de Deus. Se vai falar em</p><p>público, precisa se sentir confiante.</p><p>O estômago de Annie deu uma cambalhota quando ela se lembrou</p><p>daquilo. Por que tinha concordado?</p><p>— Ah, tá bom, então. Só alguns centímetros.</p><p>Mas todos sabem que “só alguns centímetros” é o código dos</p><p>cabeleireiros para “corte tudo, por favor”. Assim, uma hora mais tarde,</p><p>Annie estava fitando seu reflexo no espelho com os cabelos cortados logo</p><p>abaixo das orelhas e modelado em cachos escuros e macios.</p><p>— Devemos pintar também — comentou Polly, passando as mãos pelos</p><p>cabelos da amiga em um gesto possessivo. — Talvez possamos...</p><p>— Nada disso. — Annie se desvencilhou. — Olhe só para mim! Estou</p><p>totalmente diferente!</p><p>— Eu sei! — Polly fez joinha em aprovação. — Adeus cabelo cheio de</p><p>energias negativas, olá novo corte chanel! Gostaria de poder fazer o mesmo.</p><p>Mas bastaria um jato de ar do secador para que tudo o que sobrou caísse.</p><p>— Meu cabelo não tinha energia negativa. Era só... cabelo.</p><p>Que agora estava no chão.</p><p>Annie se olhou no espelho, para o modo como seu cabelo se curvava</p><p>para dentro abaixo de suas orelhas, fazendo seu rosto parecer que tinha</p><p>formato de coração. Ela estava usando um dos vestidos que Polly a forçara</p><p>a aceitar, um verde de babados com estampa de flores, e All Star nos pés.</p><p>Parecia bem. Parecia uma pessoa normal. Através do espelho, ela viu o</p><p>sorrisinho presunçoso da amiga.</p><p>— Certo, certo, é só um corte de cabelo. Nada mudou.</p><p>— Tem certeza disso? — perguntou Polly.</p><p>DIA 37</p><p>RETRIBUA</p><p>— Onde quer que fiquem esses revólveres, Annie?</p><p>Annie checou a prancheta, agitada.</p><p>— Hum... Acho que esses são para a apresentação de Garotos e</p><p>Garotas. Se puder encontrar pessoas vestidas de gângster, entregue a elas.</p><p>— Certo. — Zarah, que estava ajudando nos bastidores, saiu apressada.</p><p>Estava frenético. Dezenas de pessoas procuravam Annie para fazer</p><p>perguntas. Por incrível que pudesse parecer, ela sabia a resposta para a</p><p>maioria delas, porque, de algum modo, contra toda as possibilidades,</p><p>haviam conseguido organizar aquele espetáculo beneficente em uma</p><p>semana.</p><p>Mantiveram tudo o mais simples possível, convencendo a equipe do</p><p>hospital a cantar ou apresentar alguma cena, assim como os amigos de</p><p>George, que eram atores e dançarinos nos espetáculos do West End. Annie</p><p>ficara encantada com a quantidade de pessoas dispostas a ajudar com tão</p><p>pouco tempo de antecedência, e ainda mais encantada quando os ingressos</p><p>começaram a ser comprados por membros ricos do conselho de</p><p>administração do hospital e seus amigos. E continuavam a ser vendidos.</p><p>Os ex-clientes de Polly, de quando ela trabalhava com relações públicas,</p><p>quiseram ajudar e compraram fileiras de assentos.</p><p>— Mais uma vez, o trunfo do câncer — explicara Polly. — Todos</p><p>lamentam por mim, por isso posso pedir o que quiser.</p><p>E assim foi. Suze conhecia todo mundo da mídia. Costas ficou muito</p><p>feliz em escolher figurinos entre as roupas emprestadas pela amiga estilista</p><p>de Polly e pelo grupo amador de arte dramática de Valerie. O marido de</p><p>Miriam, que era eletricista, estava cuidando da iluminação. E a própria</p><p>Annie havia organizado tudo isso, criando planilhas, delegando tarefas,</p><p>cuidando do dinheiro.</p><p>Ela chegou a falar diante do conselho de administração do hospital —</p><p>homens e mulheres realmente intimidantes — para explicar o projeto. E a</p><p>notícia se espalhou rapidamente. As doações aumentaram, de pacientes, da</p><p>família deles, de todos que conheciam Polly. Assim, eles estavam esperando</p><p>cerca de cem pessoas para assistir ao espetáculo de variedades que haviam</p><p>conseguido montar. Annie estava fazendo o melhor possível para não</p><p>pensar muito no assunto, caso contrário acabaria vomitando de nervoso em</p><p>cima de todos que estivessem na primeira fileira. Como ela, Annie Hebden,</p><p>Annie Clarke, acabou fazendo aquilo?</p><p>Polly. Polly era a resposta.</p><p>— Annie. — O dr. Max se aproximou, descendo pelo corredor da sala</p><p>de convenções do hospital, os olhos estreitados para vê-la no escuro. —</p><p>Cabelo novo?</p><p>— Ah, sim. — Ela tocou nos cabelos, embaraçada.</p><p>— Foi o que pensei. Muito... bonito. — Ele se inclinou e pegou uma</p><p>pena amarela grande. — Vejo que conseguiu que o Garibaldo participasse.</p><p>— Ah, isso deve ser de uma das dançarinas burlescas.</p><p>— Vai haver um número burlesco? Você sabe que alguns membros mais</p><p>velhos do conselho administrativo virão esta noite, certo?</p><p>— Polly diz que é de bom gosto. Não vai haver striptease. Ela já</p><p>trabalhou como relações públicas para um cabaré ou coisa assim.</p><p>— Tirar a roupa ao som de música? Isso me parece a definição do</p><p>dicionário para striptease. Não que eu saiba. — Ele passou a mão pela</p><p>cabeça, deixando o cabelo arrepiado de novo. Mais uma vez Max parecia</p><p>exausto, as roupas amassadas. Annie se perguntou se ele se olhava no</p><p>espelho. Como era possível alguém ser capaz de fazer cirurgias no cérebro e</p><p>ainda assim não conseguir abotoar a camisa direito? — Imagino que tenha</p><p>sido ideia da Polly. Aliás, onde está ela?</p><p>— Na verdade, a ideia foi minha. Ela está ali.</p><p>Annie apontou para Polly em cima de uma escada, prendendo luzinhas.</p><p>O dr. Max cerrou os dentes.</p><p>— Pelo amor de Deus. Ela não está bem para fazer isso, Annie. Eu te</p><p>disse. Polly precisa descansar.</p><p>— Ela não quer descansar! — Annie tentou manter a voz baixa. —</p><p>Polly sabe que não tem muito tempo e não quer desperdiçá-lo deitada em</p><p>uma cama de hospital! Ok?</p><p>— Eu sei. Sei disso. Mas, acredite em mim, ela vai precisar ter força.</p><p>Quando for a hora.</p><p>Annie afastou o arrepio frio que aquelas palavras provocaram.</p><p>— Escute aqui, em vez de ficar reclamando, que tal se envolver?</p><p>Estamos tentando arrecadar dinheiro para a ala infantil. Para comprar</p><p>alguns brinquedos, coisas do tipo.</p><p>Com relutância, ele colocou a gravata manchada de café para cima e se</p><p>abaixou para afastar algumas caixas que estavam espalhadas pelo palco.</p><p>— Tudo isso é muito louvável, Annie, mas o que essas crianças</p><p>realmente precisam é de investimento adequado do Sistema Nacional de</p><p>Saúde. De tempo para pesquisas em busca da cura de doenças. De médicos</p><p>e enfermeiros que não se sintam exaustos e desmoralizados.</p><p>Magoada, Annie se abaixou para pegar uma caixa também. Ela achou</p><p>que Max estava do seu lado, já que ajudou a envolver o conselho de</p><p>administração do hospital no projeto.</p><p>— Estou só tentando fazer alguma coisa.</p><p>— Eu sei. Sei que está tentando ajudar. Mas sinceramente... coisas</p><p>como esta? Onde todos se divertem e voltam para casa se sentindo bem</p><p>consigo mesmos? Eu me preocupo que seja só uma forma de não fazer as</p><p>perguntas difíceis. As maiores. Mas vá em frente. Imagino que mal também</p><p>não vá fazer.</p><p>Vá em frente. Como se estivesse dando uma palmadinha de aprovação</p><p>na cabeça de uma criança. Annie o encarou irritada.</p><p>— Ao menos estou tentando. Não sou cientista nem médica, mas posso</p><p>fazer essa pequena coisa, e estou fazendo. Certo?</p><p>Ele levantou as mãos.</p><p>— Annie, não tive a intenção de...</p><p>— Deixa pra lá.</p><p>Ela deu as costas e se concentrou na prancheta, escondendo o rosto.</p><p>— É o dr. McRabugento! — falou Polly, oscilando na escada. — Veio</p><p>nos dizer que estamos quebrando alguma regra de saúde ou de segurança,</p><p>ou alguma coisa parecida?</p><p>— Você com certeza está, em cima dessa escada usando esses sapatos.</p><p>Vai descer daí algum dia, mulher?</p><p>— Em um minuto. — Ela estava olhando com dificuldade para o fio de</p><p>luzes, tentando prendê-lo com fita adesiva. Pareceu demorar séculos.</p><p>O dr. Max a observava.</p><p>— Quer uma mãozinha com isso?</p><p>— É claro que não, é só fita adesiva. Droga!</p><p>O fio de luzes caiu no chão e se apagou. O dr. Max encontrou os olhos</p><p>de Annie com uma expressão que dizia claramente: Eu te disse.</p><p>— Polly — chamou Annie. — Preciso da sua ajuda com uma coisa</p><p>aqui. Hum... as dançarinas burlescas estão sem... spray de cabelo. Pode</p><p>descer?</p><p>— Ah, está bem. — O dr. Max correu para segurar a escada enquanto</p><p>Polly descia vacilante, vestindo escarpins prateados e um vestido rosa leve.</p><p>— Não sou inválida — resmungou. Mas parecia. Annie reparou em como a</p><p>amiga estava magra. Ainda mais do que algumas semanas atrás. Como</p><p>podia ter perdido tanto peso tão rapidamente? O vestido estava solto, o</p><p>corpo sumia nas camadas ondulantes de chiffon. Mas ela ainda estava</p><p>sorrindo. — Agora, o que esse spray de cabelos... Ah, meu Deus.</p><p>— POLLLYYY! — gritaram duas vozes agudas.</p><p>Milly e Suze haviam aberto a porta da sala de convenções. As duas</p><p>usavam salto alto, jeans justos e estavam fotografando com os iPhones.</p><p>— Quem são essas? — O dr. Max estava observando as duas se</p><p>aproximarem, mirando os celulares como se fosse uma equipe da SWAT</p><p>registrando uma cena de crime.</p><p>— São minhas amigas. O Esquadrão de Relações Públicas. — Polly</p><p>acenou para elas. — Ai. Meu. Deus. Vocês vieram! Deixe-me fazer as</p><p>apresentações. Este é meu neurologista, dr. Max, e estas são Milly e Suze.</p><p>Essas mulheres basicamente dominam a mídia do Reino Unido.</p><p>As duas partiram para cima dele.</p><p>— Ai, meu Deus, adoro seu visual. Nobre, mas atormentado. O que</p><p>acha de uma entrevista rápida?</p><p>— Hum, senhoras...</p><p>— Ai, meu Deus, ele é ESCOCÊS! Melhor ainda. Estou pensando no</p><p>rádio. Uma participação no Today.</p><p>Elas digitavam sem parar nos celulares.</p><p>— Os acessos ao site não param de crescer, P — falou Milly. — Já</p><p>estamos em cinco mil. Todos estão comentando no Facebook. O Twitter</p><p>está bombando. O Telegraph quer uma entrevista.</p><p>— Vou ligar para a Ivana, do Guardian. Interesse humano, preocupação</p><p>social etc. etc. Eles vão amar.</p><p>Milly segurou Polly pelo queixo.</p><p>— Meu bem, você está um pouquinho pálida. O fotógrafo que</p><p>chamamos já deve estar chegando, posso dar uma maquiada em você?</p><p>Suze estava tirando fotos do dr. Max de todos os ângulos.</p><p>— No cirurgião também. Mantenha as sombras do rosto dele, mas</p><p>suavize um pouco o nariz e...</p><p>— SENHORAS! — rugiu Max. — Não serei entrevistado, e vocês não</p><p>vão me maquiar! Tenho formulários para preencher, pacientes doentes para</p><p>visitar e curativos para checar. Não tenho tempo para isso.</p><p>— Amo a fúria — disse Suze com um suspiro. — Talvez possamos</p><p>aproveitá-la. Estou pensando no noticiário do Channel 4. Vou contatar</p><p>Liam.</p><p>— O dinheiro está entrando. — Milly acenou com o celular. — Uma</p><p>grande onda de adesão no Twitter. Mas precisamos de uma história pessoal,</p><p>Polly, meu amor. Para que as pessoas possam se identificar. Um rápido</p><p>diário em vídeo?</p><p>— Dinheiro — disse Polly a Max. — Não ajudaria na compra do</p><p>escâner novo de que você está precisando? Da máquina de ressonância</p><p>extra? Assim as pessoas não teriam que esperar tanto pelo diagnóstico e</p><p>talvez pudessem tratar do câncer mais cedo?</p><p>Ele pensou por um momento.</p><p>— Nada de maquiagem. Não vou mudar de ideia.</p><p>— Viva!</p><p>Elas se afastaram com ele, digitando, fotografando e falando, tudo ao</p><p>mesmo tempo.</p><p>Polly suspirou.</p><p>— Essas duas poderiam governar o mundo. Acho que eu não deveria ter</p><p>me afastado delas.</p><p>— O câncer é seu. Pode afastar as pessoas o quanto quiser.</p><p>Polly riu.</p><p>— É por isso que eu gosto de você, Annie. Sem pressão para eu ser</p><p>positiva, para organizar corridas beneficentes ou para escrever longos posts</p><p>em um blog sobre como me sinto.</p><p>— Achei que fosse exatamente isso que você queria fazer.</p><p>— Nos meus próprios termos. Não porque as pessoas esperam isso de</p><p>mim.</p><p>— Mas pelo menos esta noite temos que fingir que somos esperançosas,</p><p>felizes e que podemos fazer a diferença, certo? — Não importava o que</p><p>dizia o dr. Max.</p><p>— Isso mesmo. Só que acho que podemos ter um pequeno problema.</p><p>Annie sentiu uma pontada de pânico no estômago.</p><p>— Qual?</p><p>Polly checou o relógio.</p><p>— Bem, sei que ele tem o papel principal e tudo o mais, mas por acaso</p><p>você viu o George por aí?</p><p>Annie já tinha suado por todo o colete preto que usava. Os bastidores</p><p>estavam lotados de comediantes ensaiando suas apresentações, dançarinas</p><p>se alongando, cantores repassando as escalas musicais e até uma pessoa</p><p>fazendo malabarismo com bolsas de transfusão. Mas de George, que</p><p>deveria ser o mestre de cerimônias da noite, nem sinal.</p><p>— Ligou de novo para ele?</p><p>— Tentei. — Polly estava ainda mais pálida. — Ai, meu Deus. Aposto</p><p>que o George está bêbado em algum lugar. Foi isso que aconteceu quando</p><p>ele estava estreando no West End... Ele participava do coro como um</p><p>soldado em Miss Saigon. Não conseguiu continuar. Foi demitido depois da</p><p>primeira noite. Aposto que está com o maldito Caleb. Vou matá-lo.</p><p>— O ex-namorado dele? — Mas Polly não estava ouvindo. — Escute,</p><p>talvez haja uma explicação. Talvez ele tenha ficado preso no trânsito, ou...</p><p>— Ele vinha de metrô! — Polly estava começando a se descontrolar,</p><p>algo que Annie nunca vira. — Vai dar tudo errado. Todo esse pessoal da</p><p>mídia... vamos desapontá-los, Annie. As crianças. O hospital. Vamos</p><p>fracassar.</p><p>Fracassar. A palavra ficou presa na garganta de Annie. É claro que ela</p><p>não conseguiria fazer aquilo. Por que nem sequer tentara? Ela não era o tipo</p><p>de pessoa que conseguia mudar as coisas. Era do tipo que se deixava</p><p>arrastar pela vida e de vez em quando era rebocada. Mas, através da nuvem</p><p>incessante de pensamentos, começou a ouvir alguma coisa.</p><p>— O que é esse barulho?</p><p>— Que barulho? — Polly torcia as mãos uma na outra com tanta força,</p><p>que estavam brancas.</p><p>— Parece...</p><p>Era choro. Annie tinha certeza disso. Ela procurou pelo pequeno</p><p>corredor dos bastidores até abrir a porta do banheiro para deficientes. Lá,</p><p>curvado sobre o vaso sanitário, usando o terno vermelho enfeitado com</p><p>lantejoulas de mestre de cerimônia, estava George.</p><p>Ele tinha o rosto</p><p>escondido nas mãos e os ombros se sacudiam em soluços.</p><p>— O que aconteceu? Você está bem? — Ela correu para ele, mas Polly</p><p>ficou onde estava.</p><p>— Deixe-me ver o seu rosto — disse ela friamente.</p><p>Ele balançou a cabeça.</p><p>— George! Deixe-me ver.</p><p>George levantou a cabeça lentamente. Annie arquejou. O olho e o lado</p><p>esquerdos de seu rosto estavam cobertos por outro hematoma roxo, e havia</p><p>sangue em seus cabelos.</p><p>— Ele fez isso? — perguntou Polly.</p><p>George só assentiu com a cabeça.</p><p>Polly praguejou.</p><p>— Desta vez, vamos chamar a polícia. Tudo bem? Você prometeu.</p><p>George falou em uma voz muito apagada, que Annie nunca ouvira.</p><p>— Não posso subir no palco. Olhe o meu estado.</p><p>— Mas você precisa! — disse Polly. — Você tem que fazer isso!</p><p>George soluçou.</p><p>— Olha o que ele fez comigo. Eu... eu o amava. E olha o que ele pensa</p><p>de mim. Que eu... não sou nada. Sou um ninguém. Um ninguém gordo. E</p><p>ele é uma grande estrela da TV, e eu um fracasso, e... — Annie de repente</p><p>juntou os pontos. É claro, Caleb. Era o cara naquele programa sobre</p><p>veterinária.</p><p>— Vocês voltaram? — A voz de Polly soou furiosa.</p><p>George balançou a cabeça, envergonhado.</p><p>— Ele não me quis de volta. Estávamos só... nos vendo de vez em</p><p>quando. Mas agora... — A voz dele se perdeu em mais lágrimas. — Sinto</p><p>muito. Sinto tanto, Poll. Eu queria que ele viesse hoje. Queria que me visse</p><p>fazer as coisas direito. Por isso, liguei para ele e... aconteceu isso.</p><p>Polly entrou pisando firme e se ajoelhou na frente do irmão.</p><p>— Escute o que eu vou dizer, George. Você não é um nada. Era ele que</p><p>deveria se envergonhar. Ele deveria estar na cadeia. Mas você é meu irmão,</p><p>e eu preciso de você neste momento. Preciso muito. Esta é a sua grande</p><p>noite. Mas é mais do que isso. Podemos arrecadar milhares de libras hoje.</p><p>Podemos ajudar muitas pessoas, pessoas doentes como eu. Podemos passar</p><p>a diagnosticar o câncer mais cedo, dar uma chance às pessoas... Veja. — Ela</p><p>pegou a bolsa. — Onde está, onde está... aqui. — Ela sacou da bolsa seu</p><p>chapéu do dia. — Hoje é um fedora, por sorte. Coloque na cabeça, incline</p><p>em um ângulo ousado e vamos pedir a alguém para fazer um curativo em</p><p>você... aquele enfermeiro querido, o Leroy, está por aqui... Então, um pouco</p><p>de maquiagem e ninguém vai saber. Vai estar escuro. Eu prometo.</p><p>Ele apenas engoliu em seco, com tanta força, que Annie conseguiu</p><p>ouvir de onde estava. Ela se ouviu dizer:</p><p>— O show deve continuar. Certo?</p><p>George se levantou, trêmulo. Quando se virou para a luz, Annie se</p><p>encolheu ao ver como o machucado estava feio.</p><p>— Não vou usar um fedora — declarou ele, fungando. — Não sou um</p><p>ativista pelos direitos dos homens. Veja o que mais consegue encontrar, e</p><p>me consiga o enfermeiro mais gato e o melhor maquiador que tivermos, e</p><p>vamos tentar seguir com esse show.</p><p>— Combinado. — Polly estendeu a mão. — Venha comigo. Não temos</p><p>muito tempo.</p><p>— Annie? — Ela se virou e viu o dr. Max parado no corredor. — Está</p><p>tudo bem?</p><p>Annie estava distraída, vendo algumas dançarinas com a cauda de penas</p><p>perigosamente perto das luzes.</p><p>— Escute, sei que você acha tudo isso uma bobagem, mas realmente</p><p>não ajuda se ficar só criticando as coisas, e...</p><p>— Não acho uma bobagem. Eu não deveria ter dito aquilo... me</p><p>desculpe.</p><p>Ela o encarou com uma expressão cética.</p><p>— Ok, não é o meu tipo de coisa. Mas... você fez um bom trabalho. Um</p><p>trabalho incrível, na verdade, com o pouco tempo que teve. Vai ser bom,</p><p>tenho certeza.</p><p>— Vai? — De repente, o pânico de Annie ficou visível. — Não sei,</p><p>porque realmente não tive muito tempo, e foi tudo um pouco improvisado, e</p><p>você está certo, há pessoas importantes na plateia, e o George está tendo</p><p>uma crise de nervos, e dançarinas seminuas estão prestes a subir no palco.</p><p>Ah, Deus. Você está certo. Eu não deveria ter arriscado assim.</p><p>— Ei, pare com isso. — Ele estendeu os braços musculosos de um jeito</p><p>constrangido. — Vai dar tudo certo. Calma. Respire fundo.</p><p>Annie se viu amassada contra ele, o cordão do crachá do médico</p><p>enfiado em sua bochecha. O dr. Max a estava abraçando. Ela estava</p><p>abraçando o dr. Max. Annie se afastou um pouco, zonza, e o rosto dele</p><p>estava muito próximo do dela. Como se estivesse em uma espécie de transe,</p><p>ele levantou uma das mãos, uma daquelas mãos eficientes de cirurgião, e</p><p>acariciou o rosto dela.</p><p>— Vai dar tudo certo, Annie. Eu prometo.</p><p>— Eu...</p><p>Será que ele ia beijá-la? Com certeza, não. Ele era o médico de Polly, o</p><p>espetáculo estava prestes a começar e ninguém a beijava havia anos. Por</p><p>que ele se interessaria por ela, afinal? Mas ele não estava se afastando.</p><p>O momento continuou. Annie sustentou o olhar dele. Ela pensou em</p><p>Mike e Jane. Seu coração ainda sangrava. E se ela o beijasse, se se</p><p>apaixonasse por ele e fosse magoada de novo? Não sabia se conseguiria</p><p>suportar. Mas não deveria arriscar? Ele era tão incrível. Tinha cheiro de</p><p>sopa e café. E seus braços eram tão sólidos ao redor dela.</p><p>— Annie! — Droga. Polly estava parada atrás deles, o cenho franzido.</p><p>— O que vocês estão fazendo?</p><p>O dr. Max se afastou e pigarreou.</p><p>— Annie não estava se sentindo bem. Estava um pouco nervosa, eu</p><p>acho.</p><p>— Estamos prontos para começar.</p><p>Annie se recompôs.</p><p>— Ótimo, ótimo. Eu só...</p><p>— Hum, é melhor eu... — O dr. Max começou a se afastar.</p><p>— Está bem... — Ela o observou se afastar.</p><p>— Está pronta? — Polly ainda estava com o cenho franzido.</p><p>— Desculpe. Sim, sim, estou. Vamos lá.</p><p>Depois que tudo acabou, Annie só se lembrava da noite como um borrão.</p><p>Lantejoulas, luzes, risadas e suspiros da audiência, aplausos. O som de pés</p><p>batendo no chão do palco da sala de convenções, que normalmente só</p><p>mostrava slides sobre doenças. Um lugar sempre cheio de morte, morte e</p><p>mais morte, e eles o haviam enchido de vida, barulhenta, brilhante e</p><p>vibrante. Ao menos no palco. Nos bastidores, as coisas foram um pouco</p><p>mais frágeis: todos perdendo os figurinos, a maquiagem, as deixas e os</p><p>parceiros de dança.</p><p>Annie correu de um lado para o outro, mal vendo qualquer uma dessas</p><p>coisas. No fim, estava ensopada de suor, certa de que tinha uma mancha</p><p>úmida nas costas, e com os pés doendo. Agora podia ouvir o aplauso final,</p><p>enquanto George fazia um discurso. Ele passara a noite toda no palco,</p><p>sorrindo, divertindo as pessoas, totalmente no controle da situação.</p><p>Ninguém diria que era o mesmo homem que estava chorando no banheiro.</p><p>Era tão fácil encenar, percebeu Annie. E se perguntou o que aconteceria</p><p>agora. Ele deixaria Caleb de vez, como Polly queria? Ou continuaria</p><p>voltando para se machucar mais? Annie sabia que não era tão simples</p><p>deixar alguém no instante em que essa pessoa o magoava.</p><p>Ela parou para ouvir por um momento.</p><p>— Senhoras e senhores, médicos e enfermeiros, pais, pacientes. Hoje</p><p>fizemos algo maravilhoso. Com as doações online, arrecadamos a incrível</p><p>quantia de sessenta mil libras. — Ouviram-se arquejos. Annie ficou</p><p>boquiaberta. Como poderia ser tanto assim?</p><p>A tela atrás de George foi acesa e Annie viu uma página de arrecadação</p><p>de fundos, a meta ultrapassada centenas de vezes.</p><p>George estava dizendo:</p><p>— ... para explicar por que esse dinheiro é necessário, eu gostaria de</p><p>apresentar possivelmente a paciente mais irritante na história deste hospital:</p><p>minha irmã, Polly.</p><p>Aplausos estrondosos. Annie virou a cabeça e viu Polly entrando no</p><p>palco pelo outro lado. Ela caminhava lentamente, como se suas costas</p><p>doessem, mas acenava e sorria. Annie viu Milly e Suze de pé na primeira</p><p>fila, prontas para filmarem todo o discurso e colocarem online.</p><p>— Olá! — disse Polly. Annie percebeu que a voz dela estava áspera, a</p><p>garganta, seca. — Não vou tomar muito do tempo de vocês, porque tenho</p><p>certeza de que precisam ir para casa. — O que significava que Polly</p><p>precisava ir para casa. — Alguns meses atrás, fui diagnosticada aqui</p><p>mesmo, neste hospital, com um tumor no cérebro. — Mais murmúrios de</p><p>solidariedade. Ela continuou; Annie sabia que aquela simpatia a teria</p><p>irritado. — Eu sei, eu sei, parece terrível, e imagino que seja, mas posso</p><p>dizer sinceramente que não sou corajosa, não sou uma nobre sofredora do</p><p>câncer. As pessoas bravas e nobres estão</p><p>já estava revirando os olhos. E se as pessoas achassem que ela estava</p><p>com a mulher que conversava no ônibus? A praga mais perigosa de</p><p>Londres, pior que as raposas urbanas e as ervas daninhas.</p><p>— Meu velho camarada, o grosseirão do Jimmy. Mas no fundo tinha</p><p>bom coração. Foi piloto na Segunda Guerra.</p><p>— Nossa, que fascinante. Como vocês se conheceram?</p><p>Uma mulher usando um véu tirou um dos fones de ouvido que usava e</p><p>estalou a língua alto, externando seu desagrado. Annie se encolheu mais.</p><p>— Crescemos na mesma rua. No velho Bermondsey. Ele foi da Força</p><p>Aérea, eu da Marinha. Poderia lhe contar algumas coisinhas, meu bem. —</p><p>Ele deu uma risadinha enfisêmica.</p><p>Annie pegou um jornal Metro abandonado e começou a ler</p><p>ostensivamente sobre uma gangue de esfaqueadores, enquanto o velho</p><p>continuava sua lenga-lenga.</p><p>— ... Então, o Jimmy, ele ficou escondido no armário até o marido dela</p><p>cochilar, aí escapou pela janela...</p><p>— Que tristeza — falou Annie determinadamente, acenando para o</p><p>jornal. — Três esfaqueamentos só neste mês.</p><p>— Bando de meliantes — disse o velho homem. — O Jimmy e eu</p><p>éramos o terror das ruas, mas nunca esfaqueamos ninguém. Um soco na</p><p>cara, sim, é civilizado. Coisa de cavalheiros.</p><p>Annie fechou os olhos; não conseguiria suportar mais nem um segundo</p><p>daquilo. Por sorte, o ônibus começou a andar e o Camarada-do-Jimmy</p><p>desceu na parada seguinte, não sem antes segurar a mão de Polly para</p><p>plantar um beijo molhado.</p><p>— Foi bom conversar com você, senhorita.</p><p>— Tenho higienizador de mãos — ofereceu Annie.</p><p>Polly riu.</p><p>— Ele provavelmente vai viver mais do que eu.</p><p>Annie levantou o jornal de novo. Todos no ônibus estavam com fones</p><p>de ouvido, como pessoas decentes. Apenas Polly insistia em ficar olhando</p><p>ao redor, acenando para bebês e cachorros, fazendo contato visual o tempo</p><p>todo. Se ela continuasse daquele jeito, havia uma boa chance de elas serem</p><p>presas pelos guardas de trânsito de Londres e nem chegarem ao hospital.</p><p>Mas elas chegaram. O sem-teto ainda estava sentado no ponto de ônibus, e</p><p>Annie se perguntou se ele teria passado a noite toda ali. O homem estava</p><p>com a cabeça inclinada para a frente. Polly se agachou na frente dele, e</p><p>Annie se encolheu de novo e ficou observando a distância.</p><p>— Olá. Qual é o seu nome? Eu sou a Polly.</p><p>Ele levantou a cabeça devagar e pigarreou. Sua voz saiu como uma lixa.</p><p>— Jonny.</p><p>— Posso lhe trazer alguma coisa quando eu sair do hospital? Uma</p><p>bebida quente, talvez?</p><p>Annie ruborizou por Polly. Não era condescendente oferecer uma</p><p>bebida quente em vez de dinheiro? O homem pareceu surpreso.</p><p>— Um café seria bom. Qualquer coisa quente, na verdade.</p><p>— Açúcar?</p><p>— Bem... dois cubos, por favor. Obrigado.</p><p>— Vejo você daqui a pouco, então. Agora tenho que entrar.</p><p>— Ah. Boa sorte.</p><p>Annie já estava se afastando, mortalmente envergonhada. Dentro do</p><p>hospital, ela fez o possível para se livrar de Polly.</p><p>— Vou por aqui, então...</p><p>— Eu também. A boa e velha neurologia. — Polly enfiou o braço com</p><p>casaco de pele falsa no de Annie. — É a melhor área. Quer dizer, é o seu</p><p>cérebro. Tudo o que você é está nele. Muito melhor do que corações ou</p><p>pernas estúpidos ou, pior, dermatologia.</p><p>— Sim — retrucou Annie, o tom muito sarcástico. — É incrível quando</p><p>o cérebro começa a virar mingau dentro da sua cabeça. — Elas pararam do</p><p>lado de fora do setor de internação. — Bem, preciso entrar.</p><p>— Tudo bem. — Polly não se moveu.</p><p>— Bom... só é permitida a entrada de uma pessoa por vez. Por isso é</p><p>melhor eu só... — Por que Polly não ia embora? Se ela não fosse logo,</p><p>poderia acabar vendo...</p><p>— Oi. Oi!</p><p>Annie se encolheu ao ouvir a voz alta e nervosa da mulher que</p><p>cambaleava na direção delas usando uma camisola de hospital. A mulher</p><p>apontava o dedo ossudo para Annie.</p><p>— Você. Mocinha. É a enfermeira?</p><p>— Que tristeza — murmurou Polly. — Podemos ajudá-la, senhora?</p><p>Annie tentou bloquear o caminho de Polly.</p><p>— Acho que não devemos...</p><p>— Vou procurar a enfermeira. — Annie sabia que a mulher ainda não</p><p>completara sessenta anos, mas parecia ter oitenta. Tinha o rosto encovado,</p><p>os cabelos grisalhos e, por baixo da camisola de hospital, suas pernas</p><p>tinham hematomas e machucados, um deles protegido por uma atadura. —</p><p>Eu preciso... ah, não sei do que preciso!</p><p>— Tenho certeza que logo vai se lembrar. Vamos entrar?</p><p>Polly pegou a mulher pelo braço, coberto de cicatrizes que pareciam</p><p>nunca fechar de vez.</p><p>— Acho que você não deveria fazer isso. — Annie sentiu vontade de</p><p>gritar.</p><p>— Ah, imagina, Annie, ela precisa de ajuda.</p><p>— Não se meta, está bem? — atacou Annie. — Vá logo para a sua</p><p>maldita consulta!</p><p>A mulher de camisola agora encarava Annie.</p><p>— Você. Eu a conheço, não? Você é a enfermeira?</p><p>— Eu... bem... — A voz de Annie estava presa na garganta. Polly</p><p>também a encarava, o cenho franzido. — Não, eu sou...</p><p>Naquele momento, uma enfermeira com expressão agitada veio</p><p>correndo da internação.</p><p>— Maureen! Venha, volte para a cama agora. Você não pode andar por</p><p>aí com essa perna desse jeito.</p><p>Mas a mulher não foi. Continuou a encarar Annie.</p><p>— Eu conheço você. Eu conheço você.</p><p>Tarde demais para fingir.</p><p>— Sim. Sou eu, mãe. Annie. Eu já ia entrar para te ver.</p><p>Charity — uma das enfermeiras mais gentis, mesmo que insistisse em</p><p>rezar pelos pacientes — encarou Annie com compaixão.</p><p>— Venha agora, Maureen. Sua filha logo vai entrar.</p><p>Quando as portas da internação se fecharam, Polly encarou Annie.</p><p>— É por isso que está aqui? Não é você que está doente?</p><p>— Não. A minha mãe, ela... bem, ela sofre de demência. Precoce. Ela</p><p>sofreu uma queda no fim semana, tentando pegar uma panela de fritura no</p><p>armário. Mesmo não tendo mais a panela desde 2007. Mas eles</p><p>provavelmente vão dar alta para ela logo, e então... então, eu não sei... —</p><p>Annie respirou fundo.</p><p>A expressão de Polly não se alterara. Mostrava interesse, compreensão,</p><p>mas não pena.</p><p>— Acho que isso explica sua atitude de fúria malcontida.</p><p>Para Annie, aquilo foi o limite.</p><p>— Escute aqui. Eu não te conheço, e você não tem o direito de dizer</p><p>isso. A minha mãe não tem nem sessenta anos e sofre de demência</p><p>avançada. Por que eu não ficaria furiosa? Tenho que ficar furiosa. Então,</p><p>por que você não desaparece da minha vida, hein? O que te dá o direito de...</p><p>de ir até a minha casa, interferir, e... — O restante da frase se afogou em</p><p>lágrimas súbitas e inconvenientes.</p><p>Polly reagiu estranhamente ao rompante, o que deixou Annie</p><p>arquejando para respirar.</p><p>— Venha comigo — disse Polly e a pegou pela mão.</p><p>A mão de Polly estava fria, mas era surpreendentemente forte. Ela</p><p>arrastou Annie pelo corredor.</p><p>— O quê? Não, eu não quero... me solta!</p><p>— Venha. Quero lhe mostrar uma coisa. — Elas chegaram a uma porta</p><p>com uma placa onde se lia DR. MAXILIMILIAM FRASER. MÉDICO</p><p>NEUROLOGISTA. MEMBRO DA ROYAL SOCIETY. Embaixo dela,</p><p>alguém colara um cartaz escrito com tinta verde dizendo: Não, não sou um</p><p>armário de remédios. Polly abriu a porta. — Dr. McRabugento! É a sua</p><p>paciente favorita.</p><p>Uma voz vinda do escuro disse:</p><p>— Entre, Polly. Não é como se eu estivesse no meio de uma consulta</p><p>altamente confidencial com um paciente ou algo parecido.</p><p>— Você está comendo chocolate Crunchie e assistindo a vídeos de gatos</p><p>no YouTube — disse Polly, e era verdade.</p><p>O consultório era minúsculo e melancólico — não muito maior que um</p><p>armário, na verdade —, e uma das paredes era coberta de vidro escuro.</p><p>Atrás de um computador, sentava-se um homem robusto usando jaleco, com</p><p>os cabelos grossos e escuros espetados para cima, como se ele tivesse</p><p>passado a mão por eles, e a sombra de uma barba de vários dias por fazer no</p><p>queixo.</p><p>— O que você quer agora? — Ele tinha sotaque escocês.</p><p>Annie viu os olhos do homem pousarem nela, por isso baixou o olhar</p><p>para os mocassins pretos desgastados que usava.</p><p>— Quero mostrar a tomografia para a minha nova amiga, Annie.</p><p>— De novo, não. Acha que eu não tenho mais nada para fazer, é isso?</p><p>Acha que os fundos do hospital são tão vastos que sou basicamente seu</p><p>mico amestrado particular?</p><p>— Qual é, você sabe que sou sua melhor paciente.</p><p>— Ele é o meu melhor paciente. Não me perturba.</p><p>Annie viu que o médico indicara</p><p>nesta sala... e também não estão,</p><p>porque ainda estão trabalhando, trocando bolsas intravenosas, atualizando</p><p>prontuários, levando alguma coisa para os pacientes beberem e limpando</p><p>salas de cirurgia.</p><p>Polly deixou os olhos percorrerem a plateia, viu os membros da equipe</p><p>do hospital nas alas e corredores do sala de convenções e sorriu, apesar do</p><p>cansaço.</p><p>— Quando eu imaginava onde iria morrer, o cenário não era Lewisham.</p><p>Seria em uma ilha tropical em algum lugar, talvez em um trágico acidente</p><p>de lancha aos noventa anos. — Risadas. — Mas agora que está</p><p>acontecendo, eu me sinto muito sortuda. Se tenho que morrer, não consigo</p><p>imaginar um lugar melhor para isso do que aqui, com essas pessoas</p><p>tomando conta de mim.</p><p>Annie ergueu a mão trêmula para secar o rosto molhado de lágrimas.</p><p>Será que o dr. Max estava ali? Ela torceu para que ele estivesse ouvindo</p><p>aquilo. Mas provavelmente Max estava em outro lugar, revirando o cérebro</p><p>de alguém, brigando com a máquina de venda automática ou tomando um</p><p>de seus horríveis expressos triplos. Esperava que ele não estivesse zangado</p><p>com ela depois daquele momento estranho entre eles. Talvez o dr. Max não</p><p>estivesse prestes a beijá-la, afinal. Por que estaria, quando o hospital estava</p><p>cheio de mulheres bonitas que o consideravam o presente de Deus para a</p><p>neurologia? Era tudo tão perturbador.</p><p>Então, Annie se deu conta — estava todo mundo olhando em sua</p><p>direção. Ela se recolheu para as sombras. Polly acenou, chamando-a.</p><p>— Então, como eu estava dizendo, todo o crédito por idealizar esta</p><p>noite sensacional vai para uma pessoa. Todos, por favor, agradeçam a</p><p>minha amiga, Annie.</p><p>Ah, Deus. Ela teria que subir no palco. Ah, Deus. E estava suada, com</p><p>os cabelos desarrumados. Annie se adiantou lentamente, cega pelas luzes.</p><p>Teve a impressão de que centenas de rostos a observavam. Todos estavam</p><p>aplaudindo. Polly a empurrava na direção do microfone. Ah, Deus. Tinha</p><p>que dizer alguma coisa. Podia sentir o suor escorrendo pelas costas.</p><p>— É... olá. — Aquilo estava sendo filmado. Santo Deus! — Isso não se</p><p>deve a mim... e sim a todos que tomaram parte, que divulgaram, que</p><p>doaram para a campanha de arrecadação online, que compraram ingressos...</p><p>enfim. Mas eu só queria dizer que Polly estava certa. Mesmo eu tendo sido</p><p>razoavelmente saudável a vida toda, até agora este hospital já me ajudou a</p><p>ter um bebê, e foi daqui que mandaram uma ambulância para tentar salvá-lo</p><p>quando ele morreu. — Annie tinha consciência da atenção redobrada de</p><p>George nela. Até então, ele não sabia. — Também é aqui que ajudam a</p><p>minha mãe, agora que ela não consegue mais se lembrar quem é ou onde</p><p>está. E está ajudando a minha amiga Polly. Então... eu só queria dizer...</p><p>todos nós provavelmente vamos precisar de um hospital em algum ponto de</p><p>nossa vida. Se isso ainda não aconteceu com você, um dia vai acontecer.</p><p>Por isso, por favor, apoiem os hospitais. Todos eles. Por favor, não deixem</p><p>que sejam destruídos. Só... por favor. Não podemos viver sem eles.</p><p>Literalmente. — Ela recuou, tremendo com a descarga de adrenalina. Falara</p><p>demais. Entrara em questões políticas.</p><p>Alguém estava subindo no palco e tirando gentilmente o microfone da</p><p>mão dela, murmurando acima do estrondo dos aplausos. Aplausos para</p><p>quem? Deviam ser para ela. Eles a estavam aplaudindo.</p><p>— Falou bem — murmurou o dr. Max. Ele havia se arrumado um pouco</p><p>desde que ela o vira nos bastidores, estava usando uma camisa e uma</p><p>gravata novas e havia domado um pouco os cabelos rebeldes. — Então, a</p><p>menos que você queira falar mais, e acho que o que disse foi perfeito, você</p><p>se incomoda?</p><p>Annie recuou. Perfeito. Ele disse que tinha sido perfeito. O dr. Max</p><p>pigarreou.</p><p>— Olá a todos. Sou o chefe da neurocirurgia aqui. O que Annie acabou</p><p>de dizer... bem, é para isso que nós aqui trabalhamos todos os dias. Não é</p><p>por dinheiro ou por prestígio... embora seja divertido quando as pessoas</p><p>tentam nos processar... — Risadas nervosas. — Mas prometo que não vou</p><p>reclamar. E, como acabo de perder uma aposta, agora vou cantar para</p><p>vocês.</p><p>E o dr. Max começou a cantar, a voz grave e profunda. Em um primeiro</p><p>momento, Annie não conseguiu reconhecer a música. Alguma coisa sobre</p><p>cambalear e sobre ambição, e... Ah, Deus. Ele estava cantando “9 to 5”, da</p><p>Dolly Parton. Trabalho das nove às cinco, uma piada interna. Max cantou</p><p>de um jeito lento e melancólico, quase como uma balada, então acelerou até</p><p>as pessoas se levantarem e começarem a bater os pés, a aplaudir e a cantar</p><p>junto, até a voz dele se perder no enorme coro. Então, quando Annie achava</p><p>que a situação não poderia ficar mais surreal, um gaitista entrou no palco,</p><p>em seu traje escocês, tocando uma gaita de foles, acompanhando a melodia</p><p>da música. Annie reconheceu o gaitista como um dos enfermeiros da</p><p>Unidade de Terapia Intensiva. Mais aplausos. Mais cantoria. Annie estava</p><p>olhando para Polly quase engasgada de felicidade, sentindo-se enlevada por</p><p>tudo aquilo — a alegria do momento, a tolice, a bondade, o alívio — e</p><p>Polly devolveu o sorriso.</p><p>Então, uma expressão estranha dominou o rosto dela. Mais tarde, Annie</p><p>pensaria naquele momento como se uma sombra tivesse envolvido sua</p><p>amiga. Uma sombra usando uma capa longa e preta. O rosto de Polly</p><p>pareceu desmoronar sobre si mesmo, e Annie já estava disparando pelo</p><p>palco antes mesmo que os aplausos morressem e o dr. Max terminasse de</p><p>agradecer a todos. Ela já estava correndo quando as pernas de Polly</p><p>cederam, e por isso estava lá para segurar a amiga quando ela caiu,</p><p>inconsciente.</p><p>DIA 38</p><p>VISITE UMA PESSOA DOENTE</p><p>— Como ela está?</p><p>George só balançou a cabeça. Ele parecia não ter dormido a noite toda</p><p>— quando Polly desmaiou, mandaram todos para casa depois do concerto</p><p>dizendo que ela precisava descansar, mas Annie também não havia dormido</p><p>de preocupação e pegou o primeiro ônibus de manhã.</p><p>Ela olhou para o urso de pelúcia gigante que levara, sentindo-se tola.</p><p>Havia tentado evitar os presentes do tipo “fique boa logo”, já que com</p><p>certeza Polly não iria mais ficar bem.</p><p>— Disseram alguma coisa?</p><p>— Nem uma palavra. O Max está me evitando. E a mamãe e o papai...</p><p>— Ele deu um suspiro profundo. — Estão me deixando completamente</p><p>louco. Você pode entrar? Talvez eles parem, se você estiver lá dentro.</p><p>Annie o seguiu até um quarto particular e viu Polly deitada — o corpo</p><p>frágil desaparecendo entre as cobertas e a camisola do hospital — com fios</p><p>e tubos ligados a máquinas. Monitor cardíaco. Máscara de oxigênio.</p><p>Medicação intravenosa. Annie já estivera no hospital vezes o bastante para</p><p>saber que, quanto mais tubos, pior a situação.</p><p>Valerie e Roger estavam sentados um de cada lado da filha, discutindo</p><p>em vozes abafadas.</p><p>— Eu lhe disse que não deveríamos deixá-la ficar zanzando por aí. Ela</p><p>está doente, Valerie!</p><p>— Era o que ela queria. E ela estava tão bem.</p><p>— Não estava nada bem! Por que você não consegue encarar os fatos?</p><p>Polly está morrendo, George é... do jeito que ele é, e...</p><p>— Ele só está confuso, Roger! Não sabe o que quer! E quem é você</p><p>para falar? Eu me senti tão constrangida, na noite passada... ter que chamar</p><p>um táxi para vir para cá, porque você não estava em condições de dirigir e...</p><p>— A Annie está aqui — disse George bem alto.</p><p>Valerie e Roger forçaram sorrisos no rosto na mesma hora.</p><p>— Ah, que bom. Entre, querida.</p><p>Annie ficou parada na porta.</p><p>— Não quero ser invasiva. Só precisava ver como ela estava.</p><p>Os olhos de Valerie cintilavam com lágrimas contidas, sua voz era</p><p>tensa.</p><p>— Ela teve uma espécie de colapso na noite passada, mas não sabemos</p><p>se é... se é temporário ou não. Ainda estamos esperançosos, é claro! Ela</p><p>provavelmente está só cansada.</p><p>Roger estalou a língua, reprovando.</p><p>A porta foi aberta e o dr. Max entrou, agitado e amarrotado. Ele chegara</p><p>a ir para casa? Annie duvidava.</p><p>— Olá a todos.</p><p>Os olhos dele passaram por ela e pelo urso que estava segurando.</p><p>— Eu já vou — Annie apressou-se em dizer. — Para dar um pouco de</p><p>privacidade a vocês. — Depois da noite passada, ela não sabia o que falar a</p><p>ele.</p><p>George agarrou o braço dela e apertou sutilmente.</p><p>— Acho que a Polly iria querer</p><p>você, aqui, Annie.</p><p>Ela ficou, mesmo que relutante. Max pigarreou e colocou as</p><p>radiografias no suporte da parede.</p><p>— Certo. Esta é a ressonância dos pulmões dela. Estão vendo esse</p><p>pedaço branco?</p><p>Annie agora já sabia o que pedaços brancos significavam. Não eram</p><p>nada bom. Significavam Ah, merda. Significavam que Polly estava</p><p>piorando.</p><p>— Um tumor — disse George baixinho.</p><p>— Aye. Um tumor secundário no pulmão. Isso explica a falta de ar e a</p><p>dor nas costas que ela já vem tentando esconder há semanas.</p><p>Ele olhou de relance para Annie, que sentiu uma pontada de culpa</p><p>quando se lembrou de Polly no alto da escada.</p><p>A voz de Valerie saiu vacilante.</p><p>— Podemos... há alguma coisa...?</p><p>— A radioterapia o faria encolher. Reduziria a dor um pouco, deixaria</p><p>ela respirar. Mas teria efeitos colaterais. Ela está muito fraca.</p><p>Nos espaços entre as palavras, no silêncio deles quatro — cinco,</p><p>contando com Polly apagada na cama —, Annie compreendeu o que Max</p><p>estava dizendo. Tinha começado. O princípio do fim. Ela precisava fazer</p><p>alguma coisa, se mover, falar.</p><p>— Eu... — Todos se viraram para olhá-la. Annie enfiou o urso de</p><p>pelúcia nos braços de Max. — Eu não deveria estar aqui. Sinto muito. Sinto</p><p>muito. — Ela empurrou a porta e saiu correndo para o corredor. Aquele</p><p>lugar. Cheio de morte, de notícias horríveis e de intermináveis coisas ruins</p><p>que continuavam a acontecer. Quando haveria boas notícias? Quando</p><p>alguma coisa normal aconteceria com ela, como se apaixonar, fazer aulas de</p><p>zumba ou sair de férias?</p><p>— Annie, espere! — Ela se virou e viu o dr. Max caminhando em sua</p><p>direção com seus passos longos e precisos. Ele ainda segurava o urso nas</p><p>mãos, como se não soubesse o que fazer com ele.</p><p>— Não posso ficar lá, não posso, não é justo, ela é tão jovem e tão viva,</p><p>e isso não é justo, dr. Max. Por que você não pode fazer alguma coisa? Por</p><p>que não pode curá-la? — Ela engoliu as lágrimas histéricas. — Desculpe.</p><p>Merda. Desculpe.</p><p>Ele disse com gentileza:</p><p>— Tudo bem, ninguém está ouvindo agora.</p><p>— D-desculpe.</p><p>— Escute, eu gostaria de poder fazer alguma coisa. Usei todas as armas</p><p>que tinha para combater esse tumor desgraçado. Quimioterapia.</p><p>Radioterapia. Cirurgia. Medicamentos. E ele continua voltando. Fiz de tudo.</p><p>— Sei que fez. Desculpe. Desculpe pelo que eu disse. Eu também sinto</p><p>muito... — Ela queria dizer que sentia muito sobre a noite anterior, mas será</p><p>que sentia? Estava tão confusa.</p><p>— Och, todo mundo diz isso em algum momento. Mas não somos</p><p>magos, Annie. Somos só pessoas.</p><p>Ela passou a mão pelo rosto para secar as lágrimas.</p><p>— Então... é isso, não é?</p><p>— Ainda não exatamente. — A voz dele era gentil. — Mas... sim. É o</p><p>começo.</p><p>— Ah.</p><p>— Sempre foi um câncer terminal, Annie. Não tinha cura. Em alguns</p><p>anos, se os tratamentos experimentais forem bem, talvez tenhamos mais</p><p>alguma opção para usar em casos como esse. Mas nunca houve qualquer</p><p>esperança para Polly.</p><p>Estava acontecendo. Estava acontecendo. Polly ia morrer.</p><p>— Ela vai... nosso tempo com ela acabou?</p><p>— Tenha um pouco de esperança, Annie. Só um pouquinho. Talvez a</p><p>gente consiga trazê-la de volta para uma última celebração. Você vai ver.</p><p>Max hesitou por um momento, e Annie queria se jogar em seus braços.</p><p>Estava desesperada para que alguém a segurasse, a abraçasse com força.</p><p>Quem mais poderia ser? Nem sua mãe sabia quem ela era.</p><p>Mas ele hesitou, Annie também, e então Max disse:</p><p>— É melhor eu ir.</p><p>Então Annie se apoiou contra a parede e chorou. Por Polly, por ela</p><p>mesma, por Jacob e pela mãe dela, mas principalmente porque, quando se</p><p>deixa a esperança criar raízes, ela é uma praga persistente.</p><p>DIA 39</p><p>TENHA ESPERANÇA</p><p>— Mas apenas leia os estudos, por favor!</p><p>A voz do dr. Max era calma.</p><p>— Já li, Polly. É meu trabalho me manter atualizado com as pesquisas.</p><p>— Então, pronto! O tratamento com células-tronco mostrou bons</p><p>resultados.</p><p>— Em um estudo muito limitado. Para um tipo específico de câncer,</p><p>que não é o seu. E dois pacientes morreram por causa do tratamento. Ainda</p><p>estão longe de disponibilizar o tratamento. Dois anos, no mínimo. Sinto</p><p>muito. Esse é um tempo que você não tem.</p><p>— Mas... eu assino alguma coisa! Concordarei em experimentar mais</p><p>cedo, antes que esteja pronto. Posso ser a cobaia! — A voz dela falhou.</p><p>Annie não conseguia suportar aquilo. Ela se levantou de seu posto do</p><p>lado de fora do quarto de Polly, mas esbarrou em George, que chegava com</p><p>um saco de guloseimas. Annie sabia que Polly não conseguiria comer nada</p><p>daquilo, mas eles continuavam lhe trazendo coisas para ver se o apetite dela</p><p>voltava.</p><p>— Qual é o problema? — sussurrou ele ao ver a expressão no rosto</p><p>dela.</p><p>— Eu... — ela acenou para a porta — ... não consigo deixar de ouvir.</p><p>Sinto muito. É terrível.</p><p>— ... não posso deixar você fazer isso. O conselho de ética jamais</p><p>autorizaria.</p><p>— Ora, então eu vou para outro lugar. Aposto que alguém nos Estados</p><p>Unidos está fazendo o mesmo estudo, ou em algum outro lugar, ou...</p><p>— Polly. — Aquilo foi dito com o tom mais severo que Annie já ouvira</p><p>do dr. Max. Os olhos de George estavam arregalados enquanto ele também</p><p>ouvia. — Por favor, tente entender. Pode ser que algum hospital em algum</p><p>outro lugar lhe oferecesse esse tratamento com células-tronco custando</p><p>milhares e milhares de libras do seu dinheiro. Não há qualquer evidência de</p><p>que funcionaria, e na minha opinião você não está bem o bastante para fazer</p><p>uma viagem internacional. Você precisaria de uma autorização minha, e eu</p><p>não daria.</p><p>— Por quê?</p><p>— Porque isso a mataria.</p><p>— Vou morrer de qualquer jeito, porra! Por que não me dar uma</p><p>chance?</p><p>— Eu dei. Eu lhe dei todas as chances possíveis. Esse tratamento...</p><p>mesmo se algum dia for chamado assim... está fora do seu alcance. Não há</p><p>mais nada que possamos fazer, Polly. Sinto muito, mesmo.</p><p>O som de soluços.</p><p>— Eu só quero mais tempo. Por favor. Só um pouco mais de tempo.</p><p>— Eu... Cristo, Polly. Sinto muito.</p><p>Annie e George se sobressaltaram quando o dr. Max abriu a porta,</p><p>tentando parecer indiferente.</p><p>— ... então, é isso, é dia de burrito na cantina — balbuciou George.</p><p>O dr. Max ergueu uma das sobrancelhas grossas.</p><p>— Imagino que vocês dois tenham ouvido tudo.</p><p>— Taaaalvez.</p><p>— Por favor, tentem dissuadi-la dessa ideia. Ela vem se agarrando a</p><p>essa esperança o tempo todo? De que vamos encontrar uma cura mágica no</p><p>último minuto?</p><p>Annie se lembrou das pesquisas que Polly vinha lendo, da insistência da</p><p>mãe dela em acupuntura, ervas e visualizações criativas.</p><p>— Acho que ela tem estado meio... em negação. Não conseguiu</p><p>assimilar. — Agora Annie conseguia entender. Polly recitando animada as</p><p>palavras: Estou morrendo. Tenho três meses de vida. Como alguém</p><p>encenando um papel, sem acreditar realmente no que dizia.</p><p>— Jesus. Então é por isso que ela vem lidando tão bem com isso.</p><p>Escutem, vocês dois. Se eu acreditasse que há algo mais a ser feito, eu faria.</p><p>Mas não há cura. Não há milagre. Quanto mais cedo ela aceitar, melhor.</p><p>George estava tremendo.</p><p>— Acho que pensamos... acho que todos acreditamos que havia alguma</p><p>coisa... — De dentro do quarto veio o som de soluços frenéticos.</p><p>Polly, a positiva e alto-astral, havia finalmente desmoronado.</p><p>— Realmente não há nada? — perguntou George.</p><p>— Nada — disse o dr. Max com firmeza. — Lamento, tenho que visitar</p><p>outro paciente. Vejo vocês mais tarde. — E saiu pisando firme.</p><p>George mordeu o lábio.</p><p>— Jesus, Annie. O que eu faço? O que digo aos meus pais? Minha mãe</p><p>está em total negação.</p><p>— Não sei. Realmente não sei.</p><p>Ele ainda estava tremendo.</p><p>— Ah, Deus. O que eu vou dizer para a Poll? Como vou conseguir falar</p><p>com ela, agora que sabemos? O que eu vou dizer a ela?</p><p>— Hum... — A mente de Annie estava confusa. — Talvez começar com</p><p>aquela coisa do dia do burrito?</p><p>Ele a encarou, chocado, então caiu na gargalhada. Era meio riso, meio</p><p>choro. O que basicamente todos vinham fazendo muito nos últimos dias.</p><p>— Ah, Deus. Ah, Jesus. Que merda. Ela está morrendo, Annie. Está</p><p>realmente morrendo.</p><p>— Eu sei — disse Annie, sentindo essa realidade cair sobre ela também,</p><p>como um peso ao redor dos tornozelos puxando-a para baixo.</p><p>George passou</p><p>a mão no rosto, esticando a pele.</p><p>— Quer dizer, eles falaram que não havia esperança, mas não</p><p>acreditamos, eu acho, ou... ela parecia tão bem. Você viu. Ela não parecia</p><p>bem?</p><p>— Parecia. Mas acho que... talvez ela também estivesse tentando</p><p>convencer a si mesma. De que se ela seguisse em frente, a morte não a</p><p>alcançaria.</p><p>E agora havia alcançado. Annie percebeu que ela própria também havia</p><p>fechado os olhos para aquilo. Polly arquejando para conseguir respirar. A</p><p>dor nas costas. Os quilos que pareciam sumir da noite para o dia.</p><p>George estava olhando para Annie em busca de respostas, como uma</p><p>criança pequena querendo saber por quê, por quê, por quê.</p><p>— Acha que ele está certo? Que realmente não temos mais opções?</p><p>— Eu... — Annie podia ver o dr. Max no fim do corredor, atacando a</p><p>máquina de venda automática com irritação. — Acho que ele está certo,</p><p>sim. Vamos deixar a Polly sozinha por enquanto. Ela tem muita coisa para</p><p>assimilar.</p><p>DIA 40</p><p>AJA COM HONESTIDADE</p><p>— Ela não quer ver ninguém hoje.</p><p>O dr. Max balançou a cabeça e fechou a porta do quarto ao sair.</p><p>— Ela parecia tão bem — disse Annie mais uma vez, mesmo sabendo</p><p>quanto a declaração era inútil. Era como se uma parte teimosa do seu</p><p>cérebro continuasse a insistir que Polly não podia estar morrendo. Afinal,</p><p>ela estava de pé, rindo, há poucos dias. Como poderia ter tão pouco tempo?</p><p>Dr. Max passou as mãos pelos cabelos, arrepiando-os.</p><p>— Foi o tumor, Annie. Ela não havia aceitado nada. É assim que</p><p>funciona. A princípio, a mente, de certa forma, impede a pessoa de aceitar a</p><p>realidade. E ela continua por muito, muito tempo no piloto automático. A</p><p>esperança é a última que morre. — Ele enfiou as mãos nos bolsos do jaleco</p><p>branco. — Até logo.</p><p>Estava presente entre eles o constrangimento da noite do concerto,</p><p>afastando-os no momento em que Annie mais precisava dele.</p><p>— Escute — arriscou ela. — Sinto muito sobre... o que aconteceu. Você</p><p>sabe. Naquela noite.</p><p>— Ah. — Ele baixou os olhos. — Não foi nada, Annie. Só parecia que</p><p>você precisava de um abraço. Nada de mais. Tchau.</p><p>Annie ficou parada vendo-o se afastar enquanto a chuva atingia as</p><p>janelas do corredor e ela se dava conta de que Polly estava morrendo,</p><p>realmente morrendo, realmente os deixando, do outro lado da porta. E, de</p><p>algum modo, o restante deles teria que dar um jeito de seguir em frente.</p><p>DIA 41</p><p>SAIA</p><p>— Para onde você está me levando? — perguntou Polly, amuada. — Não</p><p>tenho permissão para deixar esta prisão.</p><p>— O dr. Max disse que você pode ir lá fora por meia hora. — George</p><p>empurrava a irmã em uma cadeira de rodas e Annie seguia atrás deles,</p><p>carregada de bolsas.</p><p>— Não quero sair. Estamos em Lewisham, um lugar horrível.</p><p>— Só venha. Talvez você se surpreenda.</p><p>Eles saíram com ela pelos fundos do hospital, passando pela ala da</p><p>maternidade e pelo ambulatório, depois por uma pequena ponte onde, de</p><p>repente, viram-se diante de um riozinho e de um gramado amplo.</p><p>— Que lugar é este?</p><p>— Ladywell Fields — disse Annie. — Eu vinha muito aqui. É lindo.</p><p>Era perto de onde ela e Mike moravam e tinha sido um dos lugares</p><p>preferidos de Jacob. Mesmo que eles soubessem que o menino não tinha</p><p>idade para ter lugares favoritos.</p><p>— Hum. Nossa, você mudou de tom, Pequena Miss Sunshine.</p><p>George e Annie trocaram olhares. Aquilo seria mais difícil do que eles</p><p>imaginaram.</p><p>— Vamos — disse George, ajudando Polly a sair da cadeira de rodas. —</p><p>Passe os braços ao redor do meu pescoço. Com um pouco mais de força.</p><p>Ela ergueu os braços com dificuldade, quase sem forças para abraçar o</p><p>irmão.</p><p>— Eu costumava carregá-lo no colo quando você era bebê — disse ela.</p><p>— E agora você me carrega. Na verdade, uma vez deixei você cair de</p><p>cabeça. Provavelmente, explica muita coisa.</p><p>Depois de abrirem o tapete de piquenique que Annie havia levado, eles</p><p>arrumaram a comida sobre ele.</p><p>— Veja — animou George. — Seu queijo favorito, roquefort. Também</p><p>temos azeitonas, presunto e todo tipo de guloseimas de piquenique.</p><p>— Não posso comer isso, bobo, estou no nível alto de controle de</p><p>infecção. — Ela se sentou curvada sobre o cardigã e espalhou gel</p><p>higienizador nas mãos. — É como estar grávida, só que não estou e agora</p><p>nunca ficarei. Em vez disso, estou gestando um tumor enorme.</p><p>— Escute, P... — começou George. — Sei que isso é um revés...</p><p>— Estou morrendo. Isso é um grande revés, sim.</p><p>— Nada mudou — disse Annie baixinho. — Quando nos conhecemos,</p><p>você me disse que seu câncer era terminal.</p><p>Polly baixou os olhos para o tapete, em tons alegres de rosa e azul.</p><p>Estava ensolarado ali fora, e, perto deles, algumas crianças brincavam</p><p>dentro do rio, dando gritinhos quando sentiam a lama do fundo entre os</p><p>dedos dos pés. Era uma cena feliz. De algum modo, errada.</p><p>— Eu sei. É como... se eu soubesse na minha mente, mas não dentro de</p><p>mim. Não de verdade. Achei que simplesmente conseguiria atravessar esses</p><p>cem dias e depois pensaria no resto, e então, a esta altura, talvez já houvesse</p><p>algum novo tratamento ou coisa assim... mas é tarde demais. Não tenho</p><p>mais tempo.</p><p>— Ainda não acabou — falou George. — O dr. Max disse...</p><p>— O dr. Max. Para o que ele serve? O que ele foi realmente capaz de</p><p>fazer por mim? Há dois meses eu estava muito bem, e agora olhe só para</p><p>mim. Mal consigo fazer xixi sozinha. — Polly esfregou o rosto com força,</p><p>como se estivesse tentando não chorar. — O que eu faço? O que faço</p><p>agora?</p><p>— Segue em frente — disse Annie. — O que mais você pode fazer?</p><p>— Mas de que adianta? Tenho tão pouco tempo.</p><p>— Você disse que queria ajudar as pessoas. Já me ajudou, Poll. Pode</p><p>fazer mais. Milly disse que o que foi publicado nas mídias sociais está</p><p>tendo um grande alcance, com um monte de gente comentando, e...</p><p>— Redes sociais. O que isso importa? Nunca vou conhecer nenhuma</p><p>dessas pessoas. Elas não se importam se vou viver ou morrer.</p><p>Annie levantou o celular.</p><p>— Veja esta página até o fim. Faça isso.</p><p>Ela viu Polly ler na tela.</p><p>— Isso tudo são doações?</p><p>— Sim. Cem apenas ontem. E, veja, todos deixaram comentários</p><p>também. As pessoas se importam, sim, Poll. Mesmo se for apenas uma</p><p>ilusão elas a conhecerem. Você está fazendo diferença na vida dessas</p><p>pessoas. Elas até começaram a postar seus próprios dias felizes.</p><p>George esticou as costas.</p><p>— Alguém escolheu “limpe o banheiro” como uma das coisas felizes,</p><p>você acredita? Essas pessoas precisam de você, P. Mostre para elas como se</p><p>divertir de verdade.</p><p>— Nós precisamos de você — disse Annie. — Já reparou no que estou</p><p>usando hoje?</p><p>— Sim — resmungou Polly. — Você se perdeu quando estava a</p><p>caminho de um show em tributo ao ABBA? Sinceramente, Annie... franjas?</p><p>Um breve vislumbre da verdadeira Polly, erguendo-se debaixo do</p><p>desespero sufocante. O dr. Max estava certo. Ainda não terminara.</p><p>— Tudo bem — concordou Polly depois de algum tempo. — Vou tentar.</p><p>Não sei se consigo, mas vou tentar. Só se você fizer uma coisa por mim em</p><p>troca, George.</p><p>— Não vou naquele negócio de dança de novo. Não sem drogas da</p><p>melhor qualidade.</p><p>— Não é isso. Quero que você confronte a mamãe. Diga a ela de uma</p><p>vez por todas que é gay e, portanto, você e Annie não vão ficar juntos.</p><p>— Ela acha isso? — Annie se sentiu enrubescer.</p><p>George suspirou.</p><p>— Ela fica soltando dicas sobre como nos damos bem. É só que... na</p><p>verdade, a mamãe sabe. Eu tentei contar a ela. Mas ela não quer saber.</p><p>Ainda acha que vou encontrar a garota certa e sossegar, comprar uma casa</p><p>em Surrey e uma BMW.</p><p>Annie olhou para um e para o outro.</p><p>— Mas... os pais de vocês são tão descolados. Eles com certeza não têm</p><p>preconceito contra gays, certo?</p><p>— Bem, a mamãe só... ela se acha muito liberal, mas na verdade quer</p><p>tudo à imagem da perfeição. Uma família linda e feliz, completa com netos</p><p>fofinhos. Antes da Poll ficar doente, a pressão para reproduzir não estava</p><p>em mim, mas agora...</p><p>— Agora eu não vou dar neto nenhum para eles — completou Polly. —</p><p>Agora sobrou para o Georgie. A mamãe não é homofóbica, não realmente.</p><p>O fato de George ser gay apenas não se encaixa na família de sonhos dela.</p><p>— Assim como o fato de eu ser um ator fracassado. — Ele deu um</p><p>sorriso torto.</p><p>— Meu Deus, a família de vocês é boa em negação — murmurou</p><p>Annie.</p><p>— Bem, ela está perto de perder a filha, isso deve colocar um fim na</p><p>negação — disse Polly. Seguiu-se um breve silêncio. — Por favor, diga a</p><p>ela de uma vez por todas, Georgie. A vida é curta demais para mentiras. Eu</p><p>que o diga.</p><p>— Está certo, então. Falando nisso, você algum dia vai ligar para o</p><p>Tom?</p><p>Ela fechou a cara.</p><p>— George, não.</p><p>— Ele merece saber.</p><p>— Ele não merece nada. Vamos, leve-me de volta para dentro.</p><p>Àquela altura, Annie já sabia muito bem que não deveria perguntar</p><p>quem era Tom. Além do mais, já tinha uma boa ideia de quem era.</p><p>No caminho de volta, eles viram uma figura solitária, com roupa de</p><p>lycra, correndo ao redor dos edifícios do hospital.</p><p>— Dr. Quarani! — gritou Polly. — Dr. Quarani!</p><p>Mas a voz dela saiu como um coaxar e ele não ouviu, e logo já não</p><p>estava mais ali, deixando apenas a poeira que seus calcanhares levantaram.</p><p>DIA 42</p><p>FAÇA ALGO ESPIRITUAL</p><p>— Incrível. Você já viu o Bowie lá?</p><p>O som de uma tosse curta e seca.</p><p>— Ah, sim. Ele era um frequentador assíduo, era mesmo. Diga oi para</p><p>ele quando chegar lá em cima, viu?</p><p>— Ah, eu ficaria deslumbrada.</p><p>Polly se voltou para Annie, que estava parada, constrangida, na porta do</p><p>quarto. Um homem mais velho estava sentado na cadeira ao lado dela</p><p>usando pijamas de seda preta. Estava muito magro. Annie disfarçou e</p><p>tentou não o encarar. Ela disse:</p><p>— Ei! Você está melhor.</p><p>Polly parecia serena, em contraste com o nervosismo e as lágrimas dos</p><p>dias anteriores.</p><p>— Quase. Dion, esta é minha amiga Annie.</p><p>Annie levantou a mão em um aceno constrangido.</p><p>— Oi.</p><p>Dion se levantou, o que demorou algum tempo. Annie podia ver suas</p><p>vértebras delineadas sob a seda do pijama.</p><p>— Vou deixá-la agora, moça encantadora. A enfermeira bonita logo vai</p><p>fazer a ronda dos remédios e não quero perder. — Ele soprou um beijo para</p><p>Polly. Quando passou por Annie, ele arrumou rapidamente a echarpe rosa</p><p>dela em uma espécie de laço. — Pronto. Fica muito mais chique assim.</p><p>— Hum... obrigada.</p><p>Polly deu palmadinhas na cadeira, convidando Annie a sentar, e</p><p>conseguiu forçar um sorriso. Ela estava com uma péssima aparência —</p><p>olheiras escuras, a pele acinzentada e sem vida. Annie reparou em como</p><p>seus cabelos estavam ralos, deixando aparecer o couro cabeludo. Mas Polly</p><p>estava sorrindo. Aquilo já era alguma coisa.</p><p>— Dion trabalhava com produção de figurino no teatro Old Vic. Não há</p><p>nada que ele não saiba sobre roupas.</p><p>— Por que ele está aqui?</p><p>Annie se sentou, reparando que o urso de pelúcia que levara estava</p><p>acomodado em cima do monitor cardíaco de Polly.</p><p>— Ah, é uma história fascinante. Ele foi a quarta pessoa no Reino</p><p>Unido a ser diagnosticada com AIDS. Em 1983. Imagine!</p><p>— Nossa, e ainda está vivo.</p><p>— Mais ou menos. A doença está começando a atacar seu cérebro e ele</p><p>esquece muitas coisas. Todos os amigos dele morreram, dois namorados,</p><p>enfim, todos se foram. Consegue imaginar?</p><p>— Que tristeza.</p><p>O bom humor de Polly claramente estava voltando, inflando como um</p><p>balão. Annie esperou para ouvir o motivo.</p><p>— Quer dizer... consegue imaginar viver como estou agora, achando</p><p>que cada dia será o último, só que por trinta anos? Ele não tem economias.</p><p>Não consegue pagar o aluguel, agora que cortaram seus benefícios. Não tem</p><p>família e a maior parte dos amigos morreu. — Polly indicou um livro na</p><p>mesa de cabeceira. — Ele me deu para ler. Em busca de sentido. É de um</p><p>cara que foi mandado para Auschwitz e sua família e esposa morreram, mas</p><p>ele ainda diz que é possível ser feliz em qualquer situação. Que sempre</p><p>podemos controlar nossa reação a alguma coisa, dentro de nós. Acredita</p><p>nisso, Annie?</p><p>— Claro. — Annie não acreditava. Havia coisas que simplesmente</p><p>achava impossíveis de suportar.</p><p>— E você viu o site de arrecadação de fundos? Tantos comentários de</p><p>pessoas fazendo coisas felizes. Preciso continuar fazendo coisas. Não</p><p>importa o que aconteça comigo. Preciso continuar com os cem dias. Mas</p><p>estou presa aqui. Não posso deixar o hospital até que tenham feito o novo</p><p>tumor encolher. Sabia que eu tenho um empolgante tumor novo? Vou</p><p>chamar esse de Frank.</p><p>— Sim. Eu sabia. Escute, o George e eu podemos fazer o negócio dos</p><p>dias felizes, se significa tanto para você. O Costas também.</p><p>— Sério? — Polly levantou o que antes eram suas sobrancelhas.</p><p>— É claro. Quer dizer, desde que não haja nenhum animal marinho</p><p>envolvido.</p><p>Polly riu, o que logo se transformou em uma crise de tosse.</p><p>— Eu só preciso ligar para o Seaworld e... cancelar. Você realmente</p><p>faria isso por mim? Olha, você poderia filmar vocês fazendo coisas para</p><p>subirmos o vídeo para o site de arrecadação de fundos, a Milly acredita que</p><p>isso vai ajudar a “direcionar o tráfego”, ou o que for. Isso é bom, não é?</p><p>Significaria alguma coisa. Algum tipo de... legado.</p><p>Annie se perguntou o que aconteceria se Polly desistisse completamente</p><p>do plano. A energia daquele projeto parecia ser a única coisa que a</p><p>mantinha inteira.</p><p>— É claro. Bom, não posso ficar muito tempo, desculpe. Já perdi muitas</p><p>horas de trabalho recentemente e preciso ver a minha mãe.</p><p>— Ah, posso ir com você?</p><p>— Você está de cama.</p><p>— Não estou, não. Você pode me empurrar na cadeira de rodas. Por</p><p>favooor. Estou tão entediada aqui.</p><p>— Bem, está certo, se você acha que um passeio até a ala geriátrica é</p><p>divertido.</p><p>— No meu mundo, isso é o equivalente a passar a noite fora dançando.</p><p>— Pare de tentar angariar compaixão. Eu devo chamar algum</p><p>enfermeiro?</p><p>— Não, não, eles estão ocupados salvando vidas e esse tipo de coisa.</p><p>Nós damos conta sozinhas.</p><p>Com muito vira para cá e vira para lá, Annie conseguiu tirar Polly da</p><p>cama e a colocar na cadeira de rodas, que estava parada no canto. A amiga</p><p>estava pesando tão pouco que Annie provavelmente teria conseguido</p><p>levantá-la nos braços.</p><p>— Pronto. Para onde, senhorita? Não vou para o lado sul do rio, não a</p><p>esta hora da noite.</p><p>— Há uma opção de cadeira de rodas Uber? Talvez eu possa começar</p><p>uma do meu leito de morte.</p><p>Annie entrou com Polly no elevador e elas seguiram para a ala</p><p>geriátrica. Enquanto desciam pelo corredor, Annie cumprimentava com um</p><p>aceno de cabeça as pessoas que reconhecia: o belo residente de pediatria, a</p><p>mulher maternal que empurrava o carrinho de livros, a recepcionista do</p><p>Registro de Pacientes. Realmente, era possível se acostumar com qualquer</p><p>coisa. Um hospital pode se parecer com um lar. Uma estranha pode</p><p>começar a ser sua melhor amiga. E sua mãe... bem ela pode se tornar uma</p><p>estranha.</p><p>— Ela está dormindo — disse o dr. Quarani, barrando a entrada delas.</p><p>A ala estava silenciosa, o único sinal de que havia pacientes ali eram os</p><p>pequenos montinhos nas camas. É engraçado como, no fim, as pessoas</p><p>parecem se encolher para dentro de si mesmas.</p><p>— Ela está bem?</p><p>— Acho que sim. Mais cedo, ela pensou que eu fosse o Omar Sharif,</p><p>mas tirando isso...</p><p>— Ah, meu Deus — murmurou Annie, envergonhada. — Sinto muito.</p><p>— Não tem problema. Ela pareceu muito feliz em me ver. E me</p><p>convidou para jogar com ela uma partida de bridge.</p><p>— Ei, eu estou aqui embaixo — disse Polly da cadeira de rodas.</p><p>Ele olhou para baixo.</p><p>— Olá srta. Leonard. Deveria estar fora da cama? Pelo que sei, a</p><p>senhorita tem um tumor secundário e está de cama esperando pela</p><p>radioterapia.</p><p>Polly fez uma careta.</p><p>— O senhor me deixa parecendo uma planta delicada ou coisa assim.</p><p>Não posso só ficar deitada lá. Tenho que fazer alguma coisa.</p><p>O dr. Quarani franziu o cenho.</p><p>— O dr. Fraser sabe que você está fora da cama?</p><p>— Ah, tenho certeza que sabe, em algum nível. De qualquer modo,</p><p>basta de falar sobre mim. Como está o senhor?</p><p>Annie poderia jurar que Polly estava tentando bater as pestanas. Não</p><p>que ainda tivesse alguma. Ela apoiou o rosto em uma das mãos, a que ainda</p><p>estava com o cateter.</p><p>— Bastante ocupado. — Ele começou a estender a mão para o telefone</p><p>da ala. — Realmente, acho que devo avisar o dr. Fraser...</p><p>— Ah, deixa pra lá, por favor. Ele é tão rabugento. Conte-me mais a seu</p><p>respeito. Tem família aqui, ou...?</p><p>Annie desviou os olhos. Aquilo era de fazer a pessoa se encolher de</p><p>vergonha, como a própria</p><p>Polly diria.</p><p>— Família? Não. — Ele checou o relógio. — Srta. Leonard...</p><p>— É Polly, por favor. Não sou uma ré no tribunal. Ainda não, pelo</p><p>menos, haha. E na Síria, tem família lá, ou...</p><p>O dr. Quarani fechou o prontuário em sua mão.</p><p>— Por favor. Devo pedir que volte para a sua ala. Os enfermeiros logo</p><p>passarão para coletar seu sangue e, se não estiver lá, vai arrumar trabalho</p><p>extra para eles. Sra. Hebden, sua mãe está estável por enquanto. Sugiro que</p><p>descanse um pouco, vá para o seu trabalho e volte amanhã.</p><p>Polly ficou olhando enquanto ele se afastava a passos largos.</p><p>— Prepare as manchetes, acho que temos um novo desafiante para o</p><p>prêmio de médico mais rabugento do ano.</p><p>Annie começou a guiar a cadeira de rodas de volta.</p><p>— Sério, Poll, o que foi aquilo? Você estava flertando com ele?</p><p>— E se estivesse? Só porque estou no hospital, isso não significa que</p><p>estou morta por dentro.</p><p>— Mas ele é um médico, e você está...</p><p>— O quê? Doente? Sei que estou doente, Annie. Pelo amor de Deus.</p><p>Isso é tudo o que eu sou para você?</p><p>Annie a empurrou mais rápido, sibilando entre os dentes cerrados. Era</p><p>difícil discutir com alguém que já pensara por você.</p><p>— Você sabe que isso não é verdade. É só que... não é apropriado, só</p><p>isso.</p><p>— Mas tudo bem você flertar com o dr. McRabugento?</p><p>— Eu não flerto com ele.</p><p>— Ah, dr. Max, mostre-me mais ressonâncias do cérebro, ah, dr. Max,</p><p>alguém deveria passar suas camisas e lhe preparar uma refeição decente.</p><p>— Não falo desse jeito. — As pessoas estavam começando a olhar para</p><p>as duas discutindo. Annie a empurrou mais rápido. — Vamos lá. Levar você</p><p>de volta para a cama. A menos que prefira que eu vá conferir se podem</p><p>levá-la para algum tipo de ala para comportamento inapropriado.</p><p>— Tenho um tumor no cérebro, tenho permissão — falou Polly e cruzou</p><p>os braços finos.</p><p>— Às vezes, é difícil dizer o que é o tumor e o que é a sua</p><p>personalidade.</p><p>— Ah, que graça... Merda! O dr. Max! Dá ré, dá ré! Entre aqui! Rápido!</p><p>— Mas aqui é...</p><p>— AGORA!</p><p>Annie virou a cadeira de lado e fechou a porta atrás delas.</p><p>Ela olhou ao redor do espaço tranquilo e aquecido, a luz entrando</p><p>através de um vitral azul. Estavam na capela. O único lugar do hospital</p><p>onde Annie sempre se recusara a entrar, mesmo quando a mãe pediu para</p><p>ser levada ali. Simplesmente não conseguia. Ela segurou com força as</p><p>barras emborrachadas da cadeira de rodas.</p><p>— Vamos, Polly, sair daqui.</p><p>— Por quê? Vamos nos sentar por um minuto. Aqui é bonito e</p><p>tranquilo.</p><p>Annie ia se atrasar para o trabalho de novo. Relutante, ela estacionou a</p><p>cadeira de rodas e se sentou em um dos bancos de madeira. Aquele lugar</p><p>não parecia fazer parte do hospital. Mal se conseguia ouvir o som agitado</p><p>de passos do lado de fora, e o cheiro de desinfetante era neutralizado por</p><p>outro, mais suave, de incenso.</p><p>Polly ficou sentada em silêncio por algum tempo.</p><p>— Para ser honesta, venho adiando isso há algum tempo.</p><p>— Isso o quê?</p><p>— O momento em que me volto para Deus, ou para Alá, ou para o</p><p>universo místico, ou como você quiser chamar. O momento em que busco</p><p>uma escapatória.</p><p>Polly estava afundando outra vez na negação, buscando por milagres?</p><p>— Uma escapatória?</p><p>— É isso que a religião é, certo? Um modo de evitar aceitar que se vai</p><p>morrer e pronto. De não encarar o fato de que quando morremos,</p><p>simplesmente... desaparecemos.</p><p>— É isso que você acha?</p><p>O olhar de Polly se fixou no altar, seu rosto iluminado de azul pela luz</p><p>que entrava pelo vitral.</p><p>— É o que sempre achei. Não queria mudar de ideia só porque tenho</p><p>câncer. Acho que toda essa história de “dias felizes”... A razão para isso é</p><p>que eu queria que a minha vida significasse alguma coisa agora, não só</p><p>depois de morrer.</p><p>— Sua vida significa alguma coisa. Você precisa saber disso, Poll. Já</p><p>alcançou tantas pessoas.</p><p>— É mesmo? — Ela passou a mão pela cabeça e fez uma careta quando</p><p>viu que estava com um punhado de cabelos loiros. — Deus. Estou me</p><p>desfazendo. É isso, Annie? Algum dia vou sair daqui de novo?</p><p>— É claro que sim — disse Annie, tentando soar confiante. — Isso é só</p><p>um... revés.</p><p>— Às vezes, desejo que já tivesse terminado. É terrível, não? Afinal, aí</p><p>estão mamãe, papai e até mesmo o dr. McRabugento fazendo tudo o que</p><p>podem para me manter viva, e alguns dias eu tenho vontade de poder dizer</p><p>parem. Parem com todas as agulhas e tubos, parem de injetar veneno em</p><p>mim. Deixem que eu vá para algum lugar bonito e ensolarado, onde garçons</p><p>gostosos possam me servir mai tais na piscina e eu possa simplesmente me</p><p>deixar ir. Acho que não quero morrer em Lewisham, Annie. Sem ofensa.</p><p>Quer dizer, sei que é uma área realmente vibrante e que tem os impostos</p><p>mais baixos de Londres, mas não é exatamente Bali, certo?</p><p>— Não exatamente — concordou Annie. — Embora eu me pergunte se</p><p>Bali vai ter Crossrail, esse incrível sistema de transporte ferroviário. Acho</p><p>que não.</p><p>— Droga, Annie, vou sentir falta do Crossrail. Não é típico? Toda a</p><p>confusão que esse projeto causou, e eu não vou nem conseguir usar a</p><p>maldita coisa. Ops, desculpe por praguejar. — Ela dirigiu o pedido de</p><p>desculpas para o altar. Não houve resposta. Polly deu um suspiro trêmulo e</p><p>pousou as mãos nas coxas magras com determinação. — Certo. Vou te dizer</p><p>o que vamos fazer. Ainda não estou morrendo... prometeram-me cem dias e</p><p>ainda não tive esse tempo. Portanto vou ficar bem, ou um pouco menos à</p><p>beira da morte, pelo menos, sair daqui e vamos fazer alguma coisa</p><p>agradável. Não vou ficar sentada aqui esperando a morte.</p><p>— Parece um bom plano. Mas agora é melhor você descansar, ou não</p><p>vai conseguir ficar mandando na gente, e aí, o que mais te restaria para</p><p>fazer?</p><p>— Vou mandar em você até o meu último suspiro, Annie Hebden,</p><p>nascida Clarke. Agora, leve-me de volta para a cama.</p><p>Quando saíam, foram vistas pelo dr. Max, que estava olhando o</p><p>prontuário de um paciente no balcão da enfermagem.</p><p>— Aí está! Pelo amor de Deus, Polly, nós quase mandamos um grupo</p><p>de busca atrás de você!</p><p>— Eu estava rezando — disse Polly em um tom piedoso. — Rezando</p><p>por você, dr. Max, para que tenha força para cumprir seus deveres com</p><p>paciência e clemência. — Ela fez o sinal da cruz com gestos exagerados.</p><p>O dr. Max balançou a cabeça.</p><p>— Mulher terrível. Fico surpreso com você, Annie.</p><p>— Desculpe, doutor — disse ela, envergonhada. — Vou levá-la de volta</p><p>para a cama.</p><p>Enquanto as duas seguiam para o quarto, ela ouviu Polly sussurrar:</p><p>— Ah, desculpe, doutor, sou uma garota tão mááá. Por que não me diz o</p><p>que há embaixo do seu kilt?</p><p>— Quanto mais rápido a puserem em um respirador, melhor —</p><p>resmungou Annie, batendo a porta atrás delas.</p><p>DIA 43</p><p>ANDE EM UMA MONTANHA-RUSSA</p><p>Annie parou no corredor com um buquê de rosas amarelas farfalhando na</p><p>mão. Podia ouvir vozes à frente, do lado de fora do quarto de Polly. Valerie</p><p>e Roger de novo, sussurrando irritados um com o outro.</p><p>— Sua filha está morrendo, Roger, e você não consegue deixar seu</p><p>celular em casa por um dia?</p><p>— É trabalho, Valerie! Alguém ainda precisa ganhar dinheiro por aqui.</p><p>E se Polly precisar dos cuidados de um especialista? Não quero que minha</p><p>garotinha sinta dor ou desconforto, e Deus sabe que você não ganha um</p><p>centavo há anos.</p><p>— Isso é bem típico de você: usar o trabalho como desculpa para não</p><p>fazer nada em casa há quase quarenta anos. Mas agora não é hora para isso,</p><p>certo? Ela precisa de você em casa! Não no escritório, ou no pub, ou</p><p>entornando uísque no seu estúdio, e...</p><p>— Cristo, Valerie, por que tudo sempre tem que ser sobre você? Não</p><p>sou eu que estou aborrecendo Polly, gritando como uma peixeira.</p><p>Annie sentiu uma mão se apoiar de leve em seu ombro. Ela se virou e</p><p>viu George.</p><p>— Desculpe-me pela intromissão — disse ela baixinho.</p><p>— Eles estão desse jeito há dias. Está horrível em casa. É tiro atrás de</p><p>tiro.</p><p>— É melhor eu ir. Eu trouxe isso, pode entregar a Polly?</p><p>George balançou a cabeça.</p><p>— Deixe com o pessoal da enfermagem. Ela está fingindo que não está</p><p>bem, mas não está tão mal assim. Só não consegue mais aguentar o papai e</p><p>a mamãe.</p><p>— Então, o que você vai fazer?</p><p>— Ora, eu e você temos instruções a seguir.</p><p>— O quê? Tenho</p><p>que sair para trabalhar em um minuto.</p><p>— Diga que está doente.</p><p>— Mas não posso, eu...</p><p>— Por favor, Annie. Preciso fazer isso. Não posso ficar aqui sentado,</p><p>me sentindo um inútil, assistindo a Polly morrer e escutando a mamãe e o</p><p>papai brigarem. E Polly foi insistente. Sei que é bobagem, essa coisa dos</p><p>cem dias, mas parece estar dando esperança a ela. Se não esperança, alguma</p><p>outra coisa, de qualquer forma. Uma razão para não se entregar. Para</p><p>acordar de manhã.</p><p>Annie havia pensado a mesma coisa. Ela olhou o relógio: oito da</p><p>manhã.</p><p>— Quais são as instruções?</p><p>George pegou um pedaço de papel.</p><p>Annie olhou para a anotação.</p><p>— É sério?</p><p>— Sim. E ela quer que a gente filme tudo. Já que não pode ir ela</p><p>mesma, foi o que disse. Então... você pode dizer que está doente?</p><p>Annie odiava fazer aquilo — sua voz falsa de doente não era nada</p><p>convincente.</p><p>— Sou a pior atriz do mundo.</p><p>— Não é uma sorte você ter um famoso ator do seu lado, então? —</p><p>George estendeu a mão. — Passe-me o celular. Com quem devo falar?</p><p>Annie entregou o aparelho para ele, já com o número na tela.</p><p>— Sharon Horton. Peça para falar com ela. Diga que eu tive um colapso</p><p>nervoso, ou alguma coisa parecida.</p><p>Ela teve que enfiar a manga da blusa na boca para não cair na</p><p>gargalhada durante o telefonema.</p><p>— ... A questão, Sharon... posso lhe chamar de Sharon? Obrigado. Você</p><p>tem uma voz tão gentil, Sharon. A questão é que a pobre sra. Hebden vem</p><p>se dedicando tanto à mãe e à amiga doente que tivemos que mantê-la aqui</p><p>em observação. Achamos que ela precisa de um tônico para os seus pobres</p><p>nervos.</p><p>George alternava entre um Noel Coward imponente e o sotaque do East</p><p>End londrino.</p><p>— Sabe do que estou falando, Sharon. Percebo que sabe. Eu? Ah, meu</p><p>nome é Kent Brockwood. Sou chefe da equipe de enfermagem aqui no</p><p>hospital. Admiramos demais a sra. Hebden. Ela é tão generosa. E forte</p><p>como uma rocha. Obrigado. Deus a abençoe, Sharon. — Ele desligou e</p><p>entregou o celular a Annie com um floreio.</p><p>Ela imitou uma minissalva de palmas.</p><p>— Deem um Prêmio Tony a esse homem.</p><p>— Eu tento.</p><p>— De onde você é mesmo, Kent Brockwood?</p><p>— Dos arredores de Letterkenny, eu acho. Ela vai deixar você em paz</p><p>por alguns dias, acredito. E você pode chegar lá cambaleando em um</p><p>sofrimento honroso e, se realmente tiver sorte, eles a mandarão para casa.</p><p>Ser mandada de volta para casa era a vitória máxima no trabalho. Você</p><p>havia feito o esforço de ir, mas estava realmente doente demais para ficar lá,</p><p>por isso podia ir embora impunemente.</p><p>— “Você tem uma voz gentil, Sharon” — Annie riu. — Foi brilhante.</p><p>Então... agora vamos para o Thorpe Park?</p><p>— Agora vamos para o Thorpe Park. Polly disse para pegarmos o</p><p>Costas no caminho.</p><p>Annie olhou na direção de Roger e Valerie, que ainda discutiam, agora</p><p>com a voz mais baixa.</p><p>— Devemos...</p><p>— Não. Só vamos. Polly sortuda. Pelo menos ela pode fingir estar em</p><p>coma.</p><p>Do lado de fora, George levantou o braço para chamar um táxi. Annie</p><p>recuou.</p><p>— Não fica um pouco longe? Que tal irmos de trem?</p><p>— A Polly me deu um monte de dinheiro. Ela quer que a gente tenha</p><p>um bom dia de folga. E, se pegarmos o Costa em um táxi preto, imagine</p><p>como aquela carinha dele vai ficar animada.</p><p>Annie observou George enquanto eles se acomodavam no interior</p><p>confortável do táxi, protegidos da chuvosa e deprimente Lewisham.</p><p>— Você gosta dele, não é?</p><p>— Do Zorba, o Grego? Ele é um encanto. Bom demais para esta cidade.</p><p>— Você gosta mesmo dele?</p><p>— Ele é um garoto. E passa os dias fazendo espuma de leite.</p><p>— Pare com isso — repreendeu Annie. — O Costas está fazendo o</p><p>melhor que pode. Ele trabalha duro.</p><p>George pareceu culpado.</p><p>— Eu sei. Ele é só... tão feliz, sabe? Isso me faz sentir culpado. O</p><p>garoto está sozinho aqui, longe da família, sem chegar a lugar algum na</p><p>carreira. Mas é animado. É solar. Mesmo quando o fazem passar o diabo no</p><p>trabalho.</p><p>— Como você sabe disso?</p><p>— Ah. Nós... por acaso estamos na mesma academia de ginástica.</p><p>— Você entrou em uma academia? Achei que fosse só uma mentira que</p><p>você contava a sua mãe para sair de casa.</p><p>— Sim, eu entrei. Achei que estava na hora de começar a cumprir os</p><p>estereótipos gays. A próxima coisa é irmos ao show da Barbra Streisand.</p><p>Enfim, como eu disse, ele é jovem demais para mim.</p><p>— Costas tem vinte e dois anos. Você tem vinte e nove. E não saiu do</p><p>armário há... tipo... dois minutos?</p><p>Ele deu de ombros.</p><p>— Eu estava em um armário muito pequeno e desconfortável por algum</p><p>tempo. Como você viu, a minha mãe não aceita muito bem seu precioso</p><p>menino se associando a gays indecentes em roupas de couro e drags. Ao</p><p>menos é assim que ela imagina. Qual é o seu argumento?</p><p>— Então, o Costas talvez seja mais velho do que você em tempo como</p><p>gay. Isso existe? Como a idade dos cães em relação aos humanos?</p><p>— Ah, existe. Sou praticamente um ancião, na minha idade.</p><p>— Você não parece ter um dia a mais do que vinte e oito anos. — Annie</p><p>o cutucou. — O que a Polly diria? Aproveite o dia! Pule de um penhasco!</p><p>Faça xixi ao vento! E por aí vai.</p><p>Ele suspirou.</p><p>— Talvez. Eu ouvi você, tá? Mas por ora, com essa situação da Polly, e</p><p>eu tentando ficar longe do Caleb, só é legal ter um amigo, sabe?</p><p>Annie sorriu para ele. E imaginou como Costas iria ficar feliz com a</p><p>perspectiva de um dia de folga.</p><p>— Eu sei, sim. Sei.</p><p>— Prontos?</p><p>— Ah, Deus. Vou passar mal.</p><p>— Eu não deveria ter comido algodão-doce. — Costas estava pálido.</p><p>A montanha-russa — uma das mais apavorantes, que mergulhava fundo</p><p>e dava cambalhotas — estava subindo lentamente com eles, e subindo, e</p><p>subindo. Annie sentiu o estômago se revirar com o hambúrguer, as fritas e o</p><p>milk-shake que também colocara para dentro. Ela não tinha dezoito anos.</p><p>Aquilo teria consequências. Lá embaixo, as pessoas pareciam tão pequenas.</p><p>Tão distantes.</p><p>— Aqui vamos nós!</p><p>Eles estavam ganhando velocidade. Os nós dos dedos de Annie ficaram</p><p>brancos. Ela sentiu Costas agarrando sua mão e a de George, do outro lado</p><p>dele. Com a mão livre, George segurava o telefone erguido, preso em seu</p><p>pulso por uma alça.</p><p>— Certo! — gritou ele, acima do barulho crescente das engrenagens. —</p><p>Abram um grande sorriso e não falem palavrão... ahhhhh! CACETE!</p><p>CACETE! SANTO DEUS! VAMOS MORRER!</p><p>DIA 44</p><p>REAFIRME SEUS OBJETIVOS</p><p>— Cace**! Cace**! Santo Deus! Vamos morrer!</p><p>George espiou na tela do iPad de Polly.</p><p>— Mal dá para me ouvir com esses bipes que Suze colocou.</p><p>— Ela precisou — falou Polly. — Esse bebê está viralizando. Já tem</p><p>dez mil visualizações no YouTube. O site de arrecadação de fundos está</p><p>com um tráfego louco por causa disso.</p><p>— É mesmo? — George pareceu animado. — Vou incluir um link para</p><p>a minha página de ator.</p><p>— Sim, você pode ser aquele irmão da corajosa sobrevivente do câncer,</p><p>Polly Leonard, qual é mesmo o nome dele? O que fala palavrões na</p><p>montanha-russa?</p><p>Ele mostrou a língua para ela.</p><p>— Foi assustador de verdade, não foi, Annie?</p><p>— Eu vomitei em uma lata de lixo depois que saí — disse ela. —</p><p>Consegue me ver no vídeo? Acho que não vão acreditar, no meu trabalho,</p><p>que a cura para o meu súbito colapso nervoso tenha sido ir à montanha-</p><p>russa mais apavorante da Europa.</p><p>— Vai ficar tudo bem — disse Polly. Ela parecia muito melhor, sentada</p><p>na cama com o rosto corado de tanto rir do vídeo. — Ninguém no seu</p><p>trabalho sequer consegue navegar direito na internet, né?</p><p>— Só para jogar Farm World no Facebook — falou Annie. — Mas é</p><p>melhor eu ir. Não posso me atrasar de novo.</p><p>Annie não conseguia parar de rir sozinha pensando no vídeo da montanha-</p><p>russa. Foi tão bobo. Tão divertido.</p><p>— Você parece feliz — disse uma voz austera com sotaque escocês. O</p><p>dr. Max estava parado diante da máquina de venda automática de novo,</p><p>olhando para dentro dela com atenção, como se pudesse encontrar grande</p><p>sabedoria entre os Twix e Bounty.</p><p>Annie se sentiu envergonhada. Não deveria estar sorrindo quando Polly</p><p>estava morrendo.</p><p>— Está tentando decidir que barra de chocolate pegar?</p><p>— Hum? Ah. Sim. Um paciente acaba de morrer na minha mesa de</p><p>operação.</p><p>— Ai, meu Deus! Sinto tanto.</p><p>— Tinha dez anos. Não pude fazer nada por ele, o tumor era grande</p><p>demais.</p><p>Annie</p><p>podia ver o reflexo do rosto dele no vidro da máquina, parecia</p><p>exausto e desapontado.</p><p>— Ao menos você tentou — arriscou ela, timidamente.</p><p>— Tentei. Tentei e falhei. — Ele sacudiu a cabeça e começou a golpear</p><p>os botões na máquina até cair uma barra de chocolate Mars . — É melhor</p><p>eu voltar. Até logo, Annie.</p><p>Quando estava saindo, Annie viu Jonny, o sem-teto, sentado no ponto de</p><p>ônibus. Os olhos dele encontraram os dela, e Annie ficou constrangida de</p><p>desviar o olhar.</p><p>— Oi.</p><p>— Olá. Dia difícil?</p><p>— Minha amiga está muito doente.</p><p>— Lamento — disse ele, educado. Os dedos, nas luvas em farrapos,</p><p>estavam sujos e inchados.</p><p>— Hum... há alguma coisa que eu possa fazer por você? — perguntou</p><p>Annie rapidamente, constrangida. — Precisa de alguma coisa?</p><p>Ele olhou ao redor para sua escassa coleção de pertences, o papelão em</p><p>que estava sentado para se proteger da umidade.</p><p>— Uma jacuzzi seria bom. — Ele riu da cara que ela fez. — Falando</p><p>sério, você não tem que me dar nada. Estou passando o dia, como qualquer</p><p>outra pessoa. Está tudo bem.</p><p>— Está certo. Obrigada.</p><p>O ônibus chegou e Annie entrou. Mas ela olhou pela janela quando já se</p><p>afastava e ficou observando a figura desamparada de Jonny, sentado</p><p>sozinho no chão.</p><p>DIA 45</p><p>SEJA BOBO</p><p>— Pronta? Preparar... vai!</p><p>— Tem certeza que isso é seguro? — gritou Annie.</p><p>Polly e seu oponente a ignoraram e passaram correndo em cadeiras de</p><p>rodas, girando freneticamente as rodas com as mãos. Elas correram por toda</p><p>a extensão do corredor e frearam ao lado de uma prateleira de lençóis. Uma</p><p>enfermeira que passava deixou cair uma pilha de urinóis e xingou.</p><p>O dr. Max enfiou a cabeça para fora da sua sala do tamanho de um</p><p>armário com os cabelos em pé, furioso.</p><p>— Eu deveria ter imaginado que era você, Polly. Mas Ahmed, não</p><p>esperava isso de você.</p><p>— Desculpe, doutor — disse o rapaz em tom dócil. Ele tinha dezessete</p><p>anos, estava careca e usava um pijama do Action Man. Tinha um aneurisma</p><p>cerebral que ameaçava se romper a qualquer momento.</p><p>— Não dê ouvidos a ele, Ahmed. Você é o terror da ala de neurologia.</p><p>Mais rápido do que uma bala. — Polly ergueu a mão espalmada para bater</p><p>na dele.</p><p>Ahmed sorriu, mirou a mão dela e errou — perda de percepção de</p><p>profundidade era um dos efeitos colaterais. Os olhos do dr. Max</p><p>encontraram os de Annie no fim do corredor e ela deu de ombros. Tinha</p><p>sido ideia de Polly — o grande pentatlo da ala de neurologia. Evento</p><p>seguinte: curling com o urinol usando um esfregão como bastão. O dr. Max</p><p>revirou os olhos e deu um sorrisinho do tipo “aqui não se pode piscar o</p><p>olho”, depois voltou para sua salinha apertada.</p><p>DIA 46</p><p>ARRECADE DINHEIRO PARA CARIDADE</p><p>— Aceita um cupcake? — perguntou a criada francesa. Era um homem de</p><p>mais de 1,90 de altura e joelhos peludos.</p><p>Annie estreitou os olhos.</p><p>— É você, Yusuf?</p><p>Yusuf, ou dr. Khan, como era mais conhecido, era o chefe da</p><p>Cardiologia do hospital.</p><p>— Sim, sou eu. Hoje é dia de se vestir de um jeito divertido. Todos</p><p>estão arrecadando dinheiro: vendendo bolo, se fantasiando.</p><p>— Entendo. — Ela deixou cair uma nota de cinco libras na cesta dele e</p><p>pegou alguns cupcakes, que tinham cobertura rosa ondulada. Muito</p><p>parecido com o que Polly havia dado a ela no dia em que se conheceram. —</p><p>Por acaso isso tem alguma coisa a ver com a Polly?</p><p>O dinheiro do evento de arrecadação de fundos ainda estava entrando, e</p><p>Polly estava determinada a conseguir o bastante para uma nova máquina de</p><p>ressonância magnética.</p><p>— Tem mesmo que perguntar?</p><p>— Tem razão. O que mais está acontecendo? — balbuciou Annie com a</p><p>boca cheia de cobertura. Tinha gosto de morango, e o açúcar foi direto para</p><p>sua corrente sanguínea.</p><p>— Estamos leiloando alguns radiologistas, o pessoal da enfermaria da</p><p>Unidade de Cuidado Intensivo Neonatal vai dançar uma conga e... ah,</p><p>alguns funcionários mais peludos vão se depilar com cera quente no</p><p>refeitório...</p><p>— É mesmo? Hum... que funcionários?</p><p>— Os mais peludos, eu acho. Eu também deveria estar participando</p><p>disso, mas achei que os pelos ajudavam a compor o meu figurino.</p><p>Annie chegou bem a tempo de ver o dr. Max sem camisa deitado em</p><p>uma das mesas, que tinha sido coberta com o papel azul do hospital. Suas</p><p>costas, assim como o restante dele, eram realmente muito peludas.</p><p>Ele viu Annie.</p><p>— Ah, pelo amor de Deus. O que você está fazendo aqui? Não tem uma</p><p>casa aonde ir?</p><p>— Pode falar quanto quiser. Achei que odiava coisas idiotas para</p><p>arrecadação de fundos.</p><p>— Odeio mesmo. Odeio com todas as fibras do meu ser. Quase tanto</p><p>quanto vou odiar essa depilação.</p><p>— Ah, isso não dói quase nada.</p><p>— Verdade? — Ele inclinou a cabeça, esperançoso.</p><p>— Mentira, dói pra caramba.</p><p>Ela se afastou para o lado quando uma das enfermeiras da cirurgia —</p><p>acostumada a depilar pacientes para a sala de operações — aplicou uma</p><p>longa faixa de gaze sobre a cera que já estava nas cosas dele e puxou. O</p><p>urro de Max provavelmente pôde ser ouvido em todo o terceiro andar, onde</p><p>Polly sem dúvida estava arquitetando a coisa toda.</p><p>Annie checou o relógio.</p><p>— Por mais que eu adorasse ficar e assistir a isso, preciso fazer minhas</p><p>visitas e depois ir para o trabalho.</p><p>— Vão tirar fotos — disse ele, mal-humorado. — Maldita Polly.</p><p>Do lado de fora da ala geriátrica, o dr. Quarani estava dando corridas</p><p>rápidas para cima e para baixo, em cada uma reiniciando a pulseira Fitbit.</p><p>— Não vai se juntar à arrecadação de fundos? — perguntou Annie.</p><p>— Não tenho tempo para isso. Só cinco minutos entre os horários de</p><p>atendimento.</p><p>O jaleco branco flutuava para trás enquanto ele corria contando</p><p>baixinho, todos os músculos rígidos e sob controle.</p><p>Depois que terminou suas visitas, Annie foi novamente para o ponto de</p><p>ônibus. Jonny estava usando as mesmas roupas. Provavelmente ele só tem</p><p>essa, pensou ela, então percebeu como estava sendo idiota. Onde o homem</p><p>guardaria as outras roupas? Ele literalmente não tinha para onde ir.</p><p>— Olá — disse Jonny. Ele estava virando as páginas de um livro da</p><p>Terry Pratchett.</p><p>Annie apontou timidamente para o livro.</p><p>— Também já li esse. É bom.</p><p>— Ah, sim. Pelo menos me faz rir. Como você está hoje?</p><p>— Estou bem. — Comparada a ele, ela tinha que dizer que estava bem.</p><p>Ao menos tinha uma casa para ir, amigos e um emprego. Annie desejou</p><p>poder fazer alguma coisa por ele. — Hum... você gosta de cupcake? —</p><p>perguntou, constrangida, e estendeu o saco de papel. Naquela situação, bolo</p><p>era pouco, mas ela sabia, pelo seu primeiro encontro com Polly, que ainda</p><p>assim era alguma coisa.</p><p>DIA 47</p><p>CONHEÇA PESSOAS</p><p>— Você parece muito melhor.</p><p>Polly olhou satisfeita para seu reflexo no espelho de mão que Annie</p><p>apoiara na bandeja da cama.</p><p>— Pareço mesmo, né? Ainda bem, aquela palidez toda do câncer não</p><p>estava combinando com o meu tom de pele. Me passe a sombra.</p><p>— Qual? — Annie estava com o enorme estojo de maquiagem de Polly</p><p>aberto diante dela.</p><p>— A verde cintilante. Estou com um humor verde cintilante hoje. —</p><p>Ela fechou os olhos. — Você aplica. Meu pulso já não é mais tão firme</p><p>quanto antes. Mas não espalhe isso por aí, certo? Não quero que os rapazes</p><p>escutem.</p><p>— Polly. Você quer mesmo que eu faça isso? Sou uma tragédia.</p><p>— Você precisa aprender. Não estarei aqui para sempre para fazer sua</p><p>maquiagem e escolher suas roupas. Embora eu esteja gostando da</p><p>combinação de hoje. Deixe-me ver.</p><p>Envergonhada, Annie recuou um pouco para que Polly pudesse admirar</p><p>sua saia de camurça com botas e suéter listrado.</p><p>— Bom. Muito bom. Daqui a pouco, você nem vai precisar mais de</p><p>mim.</p><p>— Silêncio agora.</p><p>Annie não queria falar do fim. Não hoje, quando Polly estava com o</p><p>rosto corado — e não só por causa da generosa aplicação de blush. Não</p><p>quando ela parecia melhor, mesmo que fosse apenas outra das peças cruéis</p><p>que o câncer pregava.</p><p>— Pronto. Espero que goste do visual “drag queen fazendo</p><p>quimioterapia”, porque foi o que eu fiz. Preciso assistir a mais alguns</p><p>tutoriais de maquiagem antes de...</p><p>Ela quase disse antes de você partir. Como se Polly estivesse indo para</p><p>um longo cruzeiro, ou coisa parecida. Parecia impossível, por mais que</p><p>Annie repetisse para si mesma, aceitar o fato de</p><p>que a amiga não voltaria da</p><p>jornada final. E que essa jornada estava muito próxima. Talvez não fosse</p><p>hoje, talvez nem mesmo este mês. Mas logo.</p><p>A porta foi aberta e uma nuvem de perfume Chanel as envolveu.</p><p>— Querida, como... ah, oi, Annie.</p><p>— Oi, Valerie. Estamos só embonecando a Polly.</p><p>— Isso é ótimo. Acho que o George está por perto, em algum lugar.</p><p>Tenho certeza que ele adoraria ver você.</p><p>Annie apenas assentiu com a cabeça. George obviamente ainda não</p><p>tivera “a conversa” com a mãe.</p><p>— Você me trouxe mais daquelas ervas anticâncer, mãe? Porque, tenho</p><p>que dizer — falou Polly em uma voz animada —, elas têm gosto de xixi de</p><p>cavalo.</p><p>— Hum... Polly, querida, você tem visita.</p><p>Valerie estava usando um cardigã longo até o tornozelo, tinha a</p><p>maquiagem recém-aplicada e os cabelos brilhantes, mas mesmo assim</p><p>parecia exausta. Aquela situação estava cobrando um preço alto de todos.</p><p>— Quem é? Milly? Eu disse a ela, chega de vídeos de câncer por um</p><p>tempo. Apenas coisas positivas. O site de arrecadação de fundos está indo</p><p>bem por conta própria... vinte mil visualizações só ontem!</p><p>— Não é a Milly. Bem... Acho... acho que você deve ficar sozinha para</p><p>receber essa pessoa, querida.</p><p>Annie entendeu a deixa e começou a arrumar a maleta de maquiagem.</p><p>— Eu preciso ir, de qualquer forma...</p><p>A mão de Polly segurou rapidamente o braço dela.</p><p>— Não vá. Você acabou de chegar. A menos que a visita seja o Ryan</p><p>Gosling, e, nesse caso, Annie, vá pela sombra.</p><p>Valerie estava torcendo as mãos. Ela suspirou, então saiu de novo,</p><p>mantendo a porta aberta. E falou com quem quer que estivesse do lado de</p><p>fora.</p><p>— Entre. Não vou me envolver.</p><p>E aí, no lugar de Valerie entrou alguém que Annie nunca havia visto.</p><p>Um homem usando um terno visivelmente caro... nada de poliéster ali.</p><p>Sapatos engraxados. Gravata vermelha. Alto, bonito de um jeito “catálogo</p><p>de modelos”, com os cabelos escuros cortados curtos. Braços e peito</p><p>grandes. Um frequentador de academia.</p><p>Polly o encarava. A mão dela ainda segurava com força o braço de</p><p>Annie, e a cor estava desaparecendo de seu rosto, fazendo com que a</p><p>maquiagem recém-aplicada parecesse uma piada de mau gosto.</p><p>— Merda.</p><p>— Oi — disse o homem. Sua voz era rouca. — Você está... Cristo...</p><p>você parece... eu não tinha ideia.</p><p>— Estou bem. Ótima. Que diabo você está fazendo aqui?</p><p>— O que eu estou... Cristo. Você tem ideia de como eu fiquei</p><p>preocupado? Eu nem sabia que você estava viva até ver o seu maldito site</p><p>de arrecadação de fundos!</p><p>Annie tentou disparar para a porta, mas Polly se agarrou a ela como se</p><p>sua vida dependesse disso.</p><p>— Não vá.</p><p>O homem se aproximou mais.</p><p>— Poll. Por favor, fale comigo. Você não pode simplesmente soltar uma</p><p>bomba dessas e ir embora.</p><p>— Posso fazer o que eu quiser, tenho câncer — disse ela com uma voz</p><p>estrangulada.</p><p>A raiva entre eles pareceu explodir, como se alguém tivesse jogado uma</p><p>granada e saído correndo.</p><p>— Câncer. Isso não é o câncer, é você. Sempre fez exatamente o que</p><p>queria. Pintar a casa. Viajar com os amigos. E quanto a mim? E o que eu</p><p>queria?</p><p>Annie virava a cabeça de um para o outro. Quem era aquele? O que</p><p>estava acontecendo?</p><p>— Não me importo com o que você queira! — bradou Polly, como se</p><p>estivesse esgotando o resto de sua voz e suas forças. — Só quero que vá</p><p>embora daqui! Você não tem o direito! Não me quis, então não pode ficar</p><p>ao meu lado quando estou morrendo. Tenho outras pessoas para fazer isso.</p><p>— Ah, tá, uma esquisita que você acabou de conhecer!</p><p>Annie o encarou, espantada. Aquilo tinha sido um pouco hostil.</p><p>— Annie é minha amiga e tem estado presente em minha vida, ao</p><p>contrário de algumas pessoas...</p><p>— Como se você tivesse me dado chance!</p><p>— Feche a porta, Annie — pediu Polly, trêmula.</p><p>— É... o quê? — balbuciou Annie.</p><p>— Feche a porta na cara dele. Chute-o para fora. Não tenho força para</p><p>fazer isso sozinha, mas não posso escutar essa conversa.</p><p>Certo. Então era para ela ir até a porta e simplesmente chutar para fora</p><p>um homem de mais de um metro e noventa de altura, musculoso, que a</p><p>encarava como se ela fosse uma sujeira na calçada.</p><p>— Bem, desculpe-me, mas a Polly não deve se cansar, portanto se você</p><p>pudesse...</p><p>— Quem diabo é você? O que lhe dá o direito? — Ele se virou para</p><p>Polly. — Escute, por favor, eu preciso conversar com você. Você não pode</p><p>simplesmente me mandar embora.</p><p>— Posso — disse ela, a voz muito baixa.</p><p>Annie levantou o queixo.</p><p>— Ela me quer aqui. E não quer você. Portanto... — Ela segurou a porta</p><p>aberta para ele. — Como Polly disse, vá pela sombra.</p><p>Ele foi e bateu a porta ao sair. Annie cambaleou. Ela realmente havia</p><p>feito aquilo.</p><p>— Deus. O que foi tudo isso?</p><p>Polly estava com o rosto acinzentado, arquejando para conseguir</p><p>respirar.</p><p>— Obrigada. Você foi... incrível.</p><p>— Você está bem?</p><p>Ela fez que sim com a cabeça enquanto uma crise forte de tosse sacudia</p><p>seus ombros frágeis.</p><p>— Aposto que ele nunca foi chutado para fora de algum lugar na vida.</p><p>— E... você vai me contar quem é ele?</p><p>Polly suspirou e se recostou nos travesseiros, fechando as pálpebras</p><p>verdes cintilantes.</p><p>— Droga. Esse é... — Ela se interrompeu para tossir de novo.</p><p>— Diga, Polly. Não é justo você não me contar.</p><p>— Está certo! Deus, deixe-me respirar primeiro. Esse... Annie... esse era</p><p>o Tom. Meu marido.</p><p>O rosto dela se franziu, e Annie percebeu que Polly estava chorando.</p><p>— Certo — disse Polly quando conseguiu falar sem fungar ou soluçar. —</p><p>Vou te contar o que aconteceu. Mas só porque você me contou sua história e</p><p>agora não temos segredos.</p><p>— Temos alguns segredos.</p><p>— Bem, que seja. Mas preciso contar tudo direto, sem ser interrompida.</p><p>Está certo? Nem pra dizer: Deus, que terrível, ou coitada de você, ou</p><p>qualquer coisa assim. É só o que aconteceu. Não é uma tragédia, nem uma</p><p>história épica, nem é importante. É só o que aconteceu comigo. — Ela</p><p>inspirou com dificuldade. — Porque não posso fazer isso. Não posso passar</p><p>mais tempo da minha vida chorando por isso. Não tenho tempo.</p><p>— Está certo — disse Annie. — Não vou dizer uma única palavra. A</p><p>partir de agora.</p><p>Ela ficou sentada em silêncio na cadeira de plástico laranja enquanto</p><p>Polly levantava mais o corpo contra os travesseiros.</p><p>— Muito bem. Capítulo 1. Recebi meu diagnóstico de câncer como</p><p>acontece com a maioria das pessoas, do nada. Vida ocupada. Obviamente,</p><p>nada poderia acontecer comigo. Eu era... bem, você vê como são Suze e as</p><p>outras. Ela tem um app no celular para alternar as calcinhas na gaveta da</p><p>cômoda, e Milly agenda sexo com o marido com seis meses de</p><p>antecedência. Eu era assim. Acordava cedo, tomava smoothie de couve, o</p><p>BlackBerry na mão no caminho para o trabalho, checando a imprensa,</p><p>pensando no melhor ângulo. Para tirar o máximo de possibilidade de</p><p>divulgação de tudo. Ioga. Meditação. Fins de semana em Cornwall ou em</p><p>Val D’Isere. Indo a peças, a exposições, ao restaurante recém-aberto em que</p><p>a comida era servida em uma minirrede ou coisa parecida. Essa era a minha</p><p>vida. E eu tinha o marido que combinava com ela. Bonito, rico, corretor da</p><p>Bolsa no centro de Londres, é claro. Alguns talvez digam que me casei com</p><p>o meu pai. Ele é um homem que sempre trabalhou até mais do que eu.</p><p>Estávamos seguindo por um caminho de mão única que levava a um, ou</p><p>talvez dois filhos superprogramados, uma casa de férias em Devon e eu me</p><p>tornando freelance enquanto ele ganhava todos os bônus no trabalho.</p><p>Annie assentia, tentando acompanhar. Polly estava ofegante. Suas mãos</p><p>apertavam as cobertas com força.</p><p>— Então, de repente, eu fiquei doente. Estava em casa, depois de</p><p>receber os resultados, entrando no personagem mulher com câncer corajosa,</p><p>expressão nobre, esse tipo de coisa. Em total negação, é claro. Pode me</p><p>culpar? Então, bem... minha vida se partiu em mil pedaços. Quase</p><p>conseguia ouvir o barulho dela se estilhaçando, sabe? Vibrando no meu</p><p>ouvido.</p><p>— Sei como é. O que aconteceu?</p><p>— Vou te contar.</p><p>Era o barulho da porta? Sim, ele estava em casa. Jesus, por</p><p>que ela estava tão nervosa? Ela alisou o vestido por cima dos</p><p>joelhos. Assim que chegou do hospital, tinha ficado muito,</p><p>muito tempo embaixo do chuveiro, até sua</p><p>pele ficar rosada e</p><p>enrugada, então vestiu seu vestido favorito, o que era</p><p>estampado com raminhos de centáureas. Ela se pegou</p><p>passando as mãos obsessivamente pelos longos cabelos loiros.</p><p>Tom estava no corredor olhando para a tela gordurosa do</p><p>celular. Os ombros curvados no terno Savile Row.</p><p>— Você ligou para o encanador? Aquele maldito vaso</p><p>sanitário ainda está vazando. O que está fazendo aqui?</p><p>Ela havia até acendido uma vela por alguma razão — talvez</p><p>pensando que finalmente chegara o momento que valia as</p><p>quarenta e oito libras pagas pela vela Jo Malone de mimosa e</p><p>cardamomo. Ela estava sentada na sala em seu vestido bonito e</p><p>com a maquiagem feita, em vez da calça de ioga e meias de</p><p>esqui que costumava usar em casa. Talvez, se estivesse bonita,</p><p>o universo percebesse que pegara a pessoa errada. Ela era</p><p>ocupada demais para isso. Tinha compromissos marcados até o</p><p>Natal seguinte. Siga adiante, por favor, não há nada para você</p><p>aqui, câncer.</p><p>Ele levantou os olhos brevemente.</p><p>— Ainda não começou a fazer o jantar? Estou faminto.</p><p>— Eu estava fora — Uma parte dela estava pensando: Ele</p><p>vai se sentir tão mal quando eu contar. — Você pode vir até</p><p>aqui? — Calma. Nobreza. Elevar-se acima de assuntos</p><p>corriqueiros como um vaso sanitário vazando e um jantar</p><p>atrasado.</p><p>Ele abriu a porta — camisa amassada, gravata torta. Os</p><p>cabelos ficando grisalhos nas têmporas.</p><p>E ela pensou: Como isso aconteceu? Como nos perdemos</p><p>um do outro assim?</p><p>— O que é? Preciso de um banho de chuveiro. O caminho</p><p>para cá foi um inferno, como sempre.</p><p>— Tive a consulta no médico hoje. Lembra? — Ela havia</p><p>contado a ele, mas de passagem, pois sabia que Tom não iria</p><p>registrar. E porque não seria nada. Todo mundo tem dor de</p><p>cabeça, mesmo sendo todo dia, e mesmo ela já não</p><p>conseguindo mais ver a mensagem de avisos no trem a caminho</p><p>do hospital. Quase havia cancelado a ressonância magnética</p><p>quando a reunião sobre a conta de cereal atrasou.</p><p>Provavelmente, ela só precisava começar a usar óculos, ou</p><p>beber mais água, ou dormir, ou tomar ibuprofeno, ou fazer</p><p>acupuntura, ou se organizar, sair do trabalho e começar um</p><p>blog a respeito disso.</p><p>— Ah. — O rosto dele... a culpa imediatamente escondida</p><p>em uma atitude agressiva. — Você deveria ter me lembrado.</p><p>Tom não percebeu como as dores de cabeça eram fortes, ou</p><p>que no outro dia ela havia se esquecido de se calçar antes de</p><p>sair de casa. Ele não estava preocupado. Ainda não.</p><p>— Sem problema. — Ela ficou sentada ali, comedida. A</p><p>pulsação acelerada, quase como se estivesse animada.</p><p>Esperando para destruir a vida deles. — Eu... meu bem... —</p><p>(ela nunca o chamava assim, mas pareceu algo que sua nova</p><p>persona nobre diria) — Encontraram algo. No meu cérebro. As</p><p>dores de cabeça...</p><p>— O quê? — Os olhos dele já estavam se desviando de novo</p><p>para o celular. Ela teria adorado esmagar o maldito aparelho</p><p>com um pisão. Escute enquanto eu faço meu discurso nobre,</p><p>seu cretino egocêntrico.</p><p>— Eles acham... não parece bom.</p><p>O rosto dele.</p><p>— O que você está falando?</p><p>— Estou falando que tenho um tumor no cérebro.</p><p>— Merda. É mesmo? O quê?</p><p>Então ela disse algumas palavras:</p><p>— Glioblastoma estágio quatro. Muito agressivo...</p><p>crescendo rápido...</p><p>— Merda. Merda. Poll, deve haver alguma coisa...</p><p>— Eles vão tentar algumas coisas. Quimioterapia e tal. Mas</p><p>o médico não estava esperançoso. Ele pareceu... meio sinistro.</p><p>— Aquela era a palavra certa, ela resolveu, para o médico</p><p>rabugento que a atendera. Sinistro.</p><p>— Ah. Merda. — Tom levou as mãos à cabeça (o celular</p><p>ainda cirurgicamente preso a uma delas). — Estou tão...</p><p>merda. Merda. Por que agora?</p><p>— Existe uma hora boa para uma coisa dessas?</p><p>— Sinto muito. Preciso... — E ele saiu em disparada da</p><p>sala. Talvez estivesse só assoberbado... de amor e sofrimento.</p><p>Ela esperou. O celular dela zumbiu na mesa e ela o pegou.</p><p>Pensando: Como vou contar às pessoas? Mensagem no</p><p>Facebook? Um diário corajoso do câncer? Grupo de</p><p>WhatsApp?</p><p>Era dele. Dizia: Merda. Más notícias aqui. Ela está doente.</p><p>Doente de verdade, eu acho. Preciso ajeitar as coisas.</p><p>Obviamente, no estado de tristeza em que estava, ele tinha</p><p>mandado a mensagem para a pessoa errada. Talvez fosse para</p><p>a mãe dele.</p><p>E ela poderia ter deixado para lá, não ter percebido o que</p><p>estava acontecendo, porque, afinal, estava um pouco distraída.</p><p>Se ele não tivesse feito o esforço, ido além, o que já não fazia</p><p>mais por ela: Eu te amo, juro.</p><p>Ele voltou, ainda segurando o celular. Estivera chorando. A</p><p>camisa estava para fora da calça.</p><p>— Não posso acreditar nisso. Não posso. É... é verdade?</p><p>Ela ergueu o próprio celular. Ainda estava em órbita na</p><p>cancerlândia. Calma. Nobre.</p><p>— Quem é a pessoa que você ama, Tom? — Porque sabia</p><p>que não era ela. Já sabia disso havia muito tempo, percebeu.</p><p>O rosto dele desmoronou como papel molhado.</p><p>— Ah, merda.</p><p>— Uau — disse Annie depois de Polly contar toda a história de como</p><p>voltara para casa com o diagnóstico de câncer e Tom, acidentalmente,</p><p>mandara uma mensagem de texto para a mulher com quem estava tendo um</p><p>caso. — Desculpe. Tenho permissão para dizer uau?</p><p>— Sim. Ele não quis me contar, mas usei o trunfo do câncer (muito útil</p><p>isso). No fim, ele confessou e disse que:</p><p>Sim, ele estava saindo com outra mulher.</p><p>O nome dela era Fleur.</p><p>Sim, quando ele disse saindo, queria dizer trepando.</p><p>Sim, ele “tinha pensado” em me deixar.</p><p>Sim, Fleur estava na casa dos vinte anos.</p><p>Sim, ela é professora de ioga e fazia dança interpretativa.</p><p>Ela trabalha na academia em que fiz ele entrar.</p><p>Annie assentiu lentamente.</p><p>— Então, você simplesmente o deixou?</p><p>— Sem dizer uma palavra. Se a vida é curta demais para não acender a</p><p>vela Jo Malone, certamente é curta demais para me preocupar com o meu</p><p>marido traidor viciado no iPhone. Então fui embora, voltei a morar com</p><p>mamãe e papai e passei cerca de duas semanas na cama, chorando de me</p><p>acabar. Veja, eu não estava nem chorando por causa da droga do câncer.</p><p>Estava chorando por causa dele. Dele e dela. Não é uma idiotice?</p><p>— De jeito nenhum — disse Annie. — Às vezes, nosso cérebro não</p><p>consegue assimilar a coisa maior. Ele meio que a mascara para nos proteger.</p><p>Uma vez, chorei por três horas porque não conseguia encontrar o pé</p><p>esquerdo de um sapato.</p><p>— Soube que ele a levou para morar na casa assim que eu saí de lá.</p><p>Legal, né? — Polly parou, a respiração ofegante. — Então. É isso.</p><p>— Hum... tenho permissão para dar o meu veredicto agora?</p><p>— Sim, você pode falar. Minha história trágica acabou.</p><p>— Eu... Jesus, Poll.</p><p>— É melhor não dizer como sou uma corajosa vítima de câncer.</p><p>— Eu não ia dizer isso. Ia dizer parabéns. Você venceu a competição da</p><p>“história mais trágica”. Tem mesmo que ser melhor em tudo, não é?</p><p>Ela ficou aliviada ao ouvir Polly rir e tossir ao mesmo tempo.</p><p>— É melhor acreditar nisso, Hebden.</p><p>— Então... no dia em que nos conhecemos, quando você parecia tão</p><p>feliz...</p><p>— Eu estava me sentindo uma merda, Annie. Havia acabado de deixar o</p><p>meu marido e tinha câncer.</p><p>— Então, o quê...?</p><p>Polly sorriu. O sorriso que Annie reconheceu, o que dizia, Aha, veja o</p><p>que eu te ensinei.</p><p>— É claro que eu queria ficar furiosa, infeliz e impaciente... como você,</p><p>minha caríssima Annie... Mas tenho tão pouco tempo de vida. Eu me</p><p>perguntei o que aconteceria se eu não ficasse. Se eu me obrigasse a ficar</p><p>feliz, apesar de tudo.</p><p>— E isso funciona?</p><p>Polly abriu os braços, indicando os tubos e monitores a que estava</p><p>conectada, seu corpo combalido, a cabeça careca.</p><p>— Pareço arrasada?</p><p>— Bem, não, mas...</p><p>— Felicidade é um estado de espírito, Annie.</p><p>A cabeça de Annie estava uma confusão. A Polly que ela havia</p><p>conhecido no balcão da recepção, quarenta e sete dias atrás... A vida</p><p>daquela mulher também tinha acabado de ser despedaçada? Ela não</p><p>conseguia acreditar.</p><p>Polly voltou a se deitar.</p><p>— Espero que você esteja anotando todas essas frases inspiradoras.</p><p>Espero pelo menos quatro livros de memórias sobre a vida comigo, depois</p><p>que eu me for.</p><p>DIA 48</p><p>CONTEMPLE A MORTALIDADE</p><p>— Olá, estou aqui para ver...</p><p>— Ela está ocupada agora — disse Annie em tom resignado. No</p><p>momento, ela era basicamente a assistente</p><p>pessoal não remunerada de Polly.</p><p>Os curiosos começaram a aparecer no dia seguinte à internação de</p><p>Polly. Antigos amigos, conhecidos casuais, pessoas com quem ela fizera</p><p>algum curso, ou conhecera em uma viagem de férias, ou a irmã de algum</p><p>ex-namorado. As pessoas chegavam com uvas — Polly brincava que</p><p>poderia abrir uma quitanda no quarto —, ou chocolate, ou flores, ou</p><p>enormes cartões com desenhos de elefantes segurando bolsas de gelo na</p><p>cabeça machucada. Estes, Polly fez Annie jogar no incinerador de lixo</p><p>tóxico.</p><p>— Pelo amor de Deus, eu tenho um tumor cerebral, não um hematoma</p><p>no braço. Qual é o problema dessas pessoas?</p><p>Mas ela sempre os recebia. Annie não sabia por quê.</p><p>A visitante mais recente foi uma mulher de meia-idade, muito magra,</p><p>que usava um anoraque azul-marinho e segurava uma bolsa de palha contra</p><p>o peito.</p><p>— Quem eu devo anunciar? — perguntou Annie em tom animado,</p><p>levando-a para o corredor.</p><p>Talvez, depois de tudo aquilo terminar, ela pudesse conseguir um</p><p>emprego como recepcionista. Experiência: ajudar uma amiga narcisista</p><p>muito popular a morrer.</p><p>— Sou Emily.</p><p>— Emily...?</p><p>— Ah, ela vai saber. — Todos sempre achavam isso.</p><p>— Mas só para o caso... você sabe, ela está muito cansada.</p><p>— Trabalhamos juntas anos atrás. Eu cuidava da administração do</p><p>escritório.</p><p>Annie estremeceu ao pensar em Sharon.</p><p>— E vocês mantiveram contato?</p><p>— Ah, não. Eu a vi na internet e disse: é a Polly! Polly, a garota de</p><p>Relações Públicas! E quis trazer isso para ela. — A mulher pegou alguma</p><p>coisa dentro da bolsa, um panfleto com impressão de péssima qualidade</p><p>onde se lia: Cure-se com a alimentação. Annie podia sentir seu cheiro de</p><p>patchuli e suor. — Sabe, ainda dá tempo, mas tem que ser agora.</p><p>— Tempo para quê? — Annie deu corda.</p><p>— Para se tornar vegana. Ela sempre comeu muito daquele presunto</p><p>fino fibroso, né? Bebia demais, punha leite no café. Mas, se mostrar este</p><p>panfleto a ela, Polly pode se curar com jejum, ervas e...</p><p>Annie colocou um sorriso no rosto.</p><p>— Obrigada, Emily. A questão é que Polly só tem permissão para</p><p>receber um determinado número de visitantes por dia. Ordens médicas. Mas</p><p>vou garantir que ela receba o panfleto. Obrigada. Tchaaau!</p><p>— Não, não, você tem que me deixar vê-la, é muito importante. Quem é</p><p>você, afinal?</p><p>— Eu cuido disso, Annie. Obrigada. — Valerie tinha aparecido</p><p>segurando um copo de papel com chá. — O que está acontecendo?</p><p>Emily se adiantou para um aperto de mão.</p><p>— Você deve ser a mãe dela! São tão parecidas. Olá, olá, eu vim dar</p><p>alguns panfletos a ela.</p><p>— “Ela” tem nome — disse Valerie em um tom lacônico. — Que tipo</p><p>de panfleto?</p><p>Emily enfiou um na mão dela.</p><p>— Eu tenho uma cura para o câncer dela bem aqui. É muito simples.</p><p>Ela só precisa evitar consumir carne, açúcar, álcool, glúten e todos os</p><p>aditivos.</p><p>Houve uma pausa enquanto Valerie lia o panfleto.</p><p>— Você conhece mesmo a minha filha? Manteve contato com ela?</p><p>— Não por alguns anos, mas soube o que estava acontecendo e me senti</p><p>compelida a vir aqui! Quer dizer, é tão fácil se curar sem todas essas</p><p>terríveis toxinas e venenos. — Ela olhou para o corredor do hospital com</p><p>desprezo. — Eles não nos contam a verdade por causa da “big pharma”. —</p><p>Ela fez aspas no ar quando se referiu à indústria farmacêutica, deixando</p><p>alguns folhetos caírem.</p><p>— Vamos ver se eu entendi. Você, praticamente uma estranha, resolveu</p><p>por conta própria vir ao leito de hospital da minha filhinha para lhe dizer</p><p>que ela tem câncer, porque... o quê? Porque comeu uma barra de chocolate</p><p>uma vez?</p><p>— Não só isso. Carne, álcool, laticínios... tudo isso leva diretamente ao</p><p>câncer. Mas ela ainda pode se salvar! Só precisa sair do hospital, abandonar</p><p>os tratamentos e começar imediatamente um jejum intermitente. — Emily</p><p>abriu um sorriso.</p><p>Valerie respirou fundo, furiosa.</p><p>— Como você... ousa?! Como ousa vir aqui, onde estão de fato</p><p>tentando salvar a vida dela, e sugerir que ela está sofrendo desse jeito por</p><p>causa de... presunto?! Vá embora!</p><p>— Mas...</p><p>— Não. Eu disse para ir embora, ou vou chamar a segurança!</p><p>Emily saiu correndo, soltando alguns palavrões nada zens pelo</p><p>caminho.</p><p>— Você está bem? — perguntou Annie a Valerie, que estava tremendo.</p><p>— Sim. Não, na verdade não estou. Essas pessoas não deixam Polly em</p><p>paz! Todo mundo quer alguma coisa dela, ou acha que pode lhe dizer o que</p><p>fazer. Não é justo.</p><p>Annie se perguntou se era assim que Valerie a via também. E talvez</p><p>fosse verdade.</p><p>— Posso pegar alguma coisa para você... Precisa se sentar?</p><p>— Estou bem. Eu vou só... não quero que Polly me veja assim. — Ela</p><p>estava segurando o copo de papel com tanta força, que gotas do líquido</p><p>bege escorriam pelas laterais e empoçavam no chão. Valerie se abaixou para</p><p>recolher os folhetos e ficou olhando para eles. — Está realmente</p><p>acontecendo, não é? Ela não vai ser salva por massagem, reiki, alguma nova</p><p>cura incrível nem nada assim.</p><p>— Acredito que não — disse Annie, com a maior gentileza possível.</p><p>Era tão tentador mentir, dizer que talvez ainda houvesse um milagre de</p><p>última hora, mas ela sabia que isso não aconteceria.</p><p>— Achei que não faria mal tentar. Ter alguma esperança.</p><p>— Não faz mal. Mas... acho que agora Polly está pronta para encarar</p><p>isso. Para tornar o restante da vida dela o melhor possível.</p><p>Valerie mordeu o lábio.</p><p>— Obrigada por tudo o que está fazendo por ela, Annie. Por favor, não</p><p>pense que não percebi. Sei que não é fácil.</p><p>— Está tudo bem. Ela faz mais por mim, muito mais.</p><p>— Ainda assim. Somos muito gratos.</p><p>Annie deixou Valerie sozinha — achou que ela precisava de um pouco</p><p>de privacidade para chorar — e voltou para o quarto, onde Polly estava</p><p>encarando, com uma expressão de desdém, seu mais recente tributo em</p><p>forma de flores: um arranjo de cactos em um vaso com os dizeres: Espero</p><p>que não tenha um pico de temperatura.</p><p>— O que você acha que os cactos simbolizam? Minha personalidade</p><p>aguçada?</p><p>— Talvez. Tome. — Ela deixou o panfleto na cama. — Sua mãe se</p><p>livrou de uma hippie para você, embora eu tenha certeza de que ela vai</p><p>voltar. Emily, do seu antigo trabalho.</p><p>Polly teve que pensar para se lembrar.</p><p>— Santo Deus. A Emily vegana? Que salva o mundo, mas não os</p><p>arquivos. Ela era péssima com TI; perdemos todo o servidor três vezes.</p><p>— Essas pessoas não percebem que não é legal vir aqui e ficar</p><p>acossando você?</p><p>Annie se deixou cair na cadeira ao lado da cama.</p><p>Polly deu de ombros.</p><p>— É emocionante para elas. Ficam apavoradas com a possibilidade de</p><p>acontecer com elas, e aliviadas por não ter acontecido. É voyeurismo, na</p><p>verdade. E, se conseguem encontrar um modo de parecer que é culpa</p><p>minha, isso faz com que se sintam mais seguras.</p><p>— Por que você recebe essas pessoas?</p><p>— O que tenho para fazer aqui, afinal? Além do mais, as pessoas</p><p>escutam o que você diz quando está morrendo. É um dos privilégios. Talvez</p><p>eu inspire algumas delas a mudarem sua vida e serem felizes, quem sabe?</p><p>— Elas podem estar vindo só para dar uma olhada na sua careca.</p><p>— Talvez. — Polly sorriu. — Muito bom ter você aqui, Annie. Caso</p><p>contrário, as coisas poderiam ficar perigosamente positivas, e não queremos</p><p>isso. O que eu faria sem você, hein, dona estraga-prazeres?</p><p>— De nada. Agora está na hora de fazer xixi no urinol, Carequinha.</p><p>DIA 49</p><p>APOIE ALGUÉM</p><p>— Uhu! Vai, dr. Quarani! Vai!</p><p>Annie pulava, acenando com entusiasmo. Havia esperado quase uma</p><p>hora para vê-lo passar correndo, esguio e concentrado. Ele não pareceu</p><p>ouvi-la, apenas seguiu em frente. Sua roupa de corrida não estava nem</p><p>suada. Annie virou o celular para que Polly pudesse ver via Skype.</p><p>— É ele.</p><p>Todas as pessoas ao redor deles estavam pressionadas contra as</p><p>barreiras de contenção da maratona, acenando com faixas de instituições de</p><p>caridade, gritando para encorajar os corredores. A atmosfera estava viva</p><p>com a positividade — Annie até se preocupou que pudesse contagiá-la. Ela</p><p>levara Buster na coleira, e o cachorro latia furiosamente toda vez que</p><p>passava alguém com roupa de corrida. Annie não havia se dado conta de</p><p>que estar com um cachorro fazia as pessoas sorrirem para você. Era</p><p>desconcertante, mas ela não podia dizer que</p><p>com a cabeça um jarro de vidro que</p><p>guardava um cérebro humano flutuando.</p><p>— Vamos lá, então — disse o homem com um suspiro.</p><p>Ele apertou uma tecla no computador e a tela na parede se acendeu</p><p>revelando outro cérebro, dessa vez em uma imagem espectral. Branco,</p><p>esponjoso. Um lado dele era mais escuro, com ramificações pretas</p><p>serpenteando ao redor.</p><p>— Este é o meu cérebro — declarou Polly com orgulho.</p><p>— Ah — disse Annie, sem entender direito o que estava vendo.</p><p>Polly se adiantou e bateu com os dedos no vidro.</p><p>— Marcas de dedos — reclamou o médico. Ela o ignorou.</p><p>— Esta é a minha árvore. Glioblastoma... significa “galhos”, sabe.</p><p>Annie se virou para o médico em busca de esclarecimento.</p><p>— Ninguém sabe o que significa essa palavra, Polly — disse ele.</p><p>— Bem, eu explico. Este é o meu cérebro, e esta adorável protuberância</p><p>aqui, parecida com uma árvore... bem, é o meu tumor cerebral. — Polly</p><p>sorriu. — Eu o chamo de Bob.</p><p>— Respire fundo.</p><p>Annie inspirou com vontade. Ela estava sentada na cadeira de rodas do</p><p>médico. O dr. Fraser estava ajoelhado na sua frente, examinando seus olhos.</p><p>Os dele eram castanhos e tinham uma expressão inteligente, como um</p><p>cachorro gentil.</p><p>— Consegue acompanhar? — Ele levantou um dedo.</p><p>— É claro que consigo — respondeu ela com irritação. — Estou bem.</p><p>Nem cheguei a desmaiar. — Ela não compreendia por que tinha surtado.</p><p>Mal conhecia Polly, com ou sem tumor no cérebro.</p><p>Polly tinha ido pegar “chá quente doce”, como anunciara animada.</p><p>— Não é o que faziam na guerra? — comentara antes de sair.</p><p>O médico se dirigiu a Annie.</p><p>— Pelo que vejo, você não sabia. Nunca se perguntou por que ela tem</p><p>tantas consultas?</p><p>— Nós nos conhecemos ontem. E ela está agindo, sei lá, como se</p><p>fôssemos adolescentes que ficaram amigas por correspondência.</p><p>— Essa é a Polly. É bem difícil evitar ser amiga dela. — O sotaque dele</p><p>tinha os erres bem marcados. O médico se sentou sobre os calcanhares.</p><p>— Então... ela está doente.</p><p>— Muito doente.</p><p>— Você pode... fazer alguma coisa?</p><p>Ele se levantou com dificuldade.</p><p>— Cristo, estou ficando velho. Na verdade, eu não deveria comentar</p><p>com você. Confidencialidade. Mas, como você acabou de ver a tomografia</p><p>cerebral da Polly, acho que posso considerar que tenho o consentimento da</p><p>paciente. Por causa da localização de Bob, há uma grande chance de sua</p><p>remoção causar danos cerebrais. — Annie se lembrou do que Polly tinha</p><p>dito. Sobre o cérebro ser tudo o que somos. — Ela está fazendo</p><p>quimioterapia, o que lhe garante um pouco mais de tempo. Estamos atentos</p><p>ao tumor. Fazendo muitas ressonâncias magnéticas. Está custando uma</p><p>fortuna. Se o tumor chegar perto do córtex frontal, bem, aí é fim de jogo, e</p><p>ele é muito agressivo. Já está bem avançado.</p><p>— Se?</p><p>— Quando.</p><p>— Quanto tempo? — perguntou Annie.</p><p>Ele franziu o rosto.</p><p>— Só para constar, médicos realmente detestam essa pergunta. Não</p><p>somos clarividentes. Mas dissemos a ela cerca de três meses.</p><p>Annie se espantou. Tão pouco tempo. Um trimestre. Um quarto de ano.</p><p>Uma temporada de seriado de TV. Imagine isso ser tudo o que se tem,</p><p>imagine ter que espremer toda uma vida nesse tempo.</p><p>— Ah — disse ela. Naquelas circunstâncias, não lhe ocorreu dizer mais</p><p>nada.</p><p>A porta bateu.</p><p>— Não coloque o prédio abaixo! — gritou o médico... e Polly entrou</p><p>com um copo de papel.</p><p>— Ops! — Ela derramou um pouco e lambeu a mão. — Tome, beba</p><p>isto.</p><p>Annie espiou dentro do copo. Era nojento, parecia detergente. De</p><p>repente, foi demais para ela — o consultório pequeno e escuro, a mulher</p><p>estranha com o tumor e a própria mãe na ala próxima, com o cérebro</p><p>também morrendo dentro dela. Annie se levantou, a cabeça girando.</p><p>— Sinto muito... sinto muito, mesmo, mas para mim não dá. Lamento</p><p>que esteja doente, Polly. De verdade. Mas preciso ir.</p><p>E ela saiu correndo, derramando o chá no chão pelo caminho.</p><p>DIA 3</p><p>ARRUME TEMPO PARA TOMAR CAFÉ DA MANHÃ</p><p>— Bom dia, Annie Hebden!</p><p>Annie nunca foi uma pessoa matinal, nem quando Jacob a acordava</p><p>bem cedo e ela abraçava seu corpo quente junto ao dela, sentindo a</p><p>respiração suave dele em seu pescoço. Ultimamente, ela também não era</p><p>uma pessoa noturna. Às vezes, havia um período por volta das quatro da</p><p>tarde, depois de várias xícaras de café forte da máquina nojenta do</p><p>escritório, que provavelmente não era lavada desde 2011, em que não se</p><p>sentia totalmente péssima. Mas às seis da manhã — com certeza, era</p><p>forçação de barra para qualquer um. Annie atravessou a sala cambaleando</p><p>até a porta da frente, que Polly estava esmurrando.</p><p>— Já é de manhã? O céu ainda está um breu.</p><p>— Está uma delícia aqui fora. — Polly não parecia nem um pouco</p><p>cansada.</p><p>— Não está. São seis da manhã de uma quarta-feira de março.</p><p>E por que Polly estava à sua porta tão cedo? Aliás, por que Polly estava</p><p>à sua porta?</p><p>— Bem, está certo, mas logo ficará uma delícia, e eu trouxe café e</p><p>croissants, então me deixe entrar!</p><p>Duas manhãs seguidas sendo acordada por Polly, mesmo Annie tendo</p><p>fugido dela na véspera. Por um momento, Annie pensou em fingir que a</p><p>porta tinha ficado emperrada em um acidente esquisito com a tranca. Mas</p><p>logo suspirou e a abriu. Dessa vez nem se preocupou em manter a corrente</p><p>travada. Em apenas vinte e quatro horas, ela já aprendera que não dava para</p><p>manter Polly do lado de fora.</p><p>Polly estava totalmente acordada e usava jeans e uma camiseta com a</p><p>frase Yes We Can. Nos pés, botas de cowboy vermelho-cereja.</p><p>— Como estou? — Ela balançou a cabeça de um lado para o outro. —</p><p>Pareço uma Hannah Montana morrendo de câncer?</p><p>Com os cachos curtos e loiros presos para trás, ficava visível uma parte</p><p>grande do couro cabeludo careca por causa da quimioterapia, a pele com</p><p>marcas vermelhas.</p><p>— Ha. Ha.</p><p>Annie não se acostumara às piadas de Polly sobre câncer. Não tinha se</p><p>acostumado nem com o câncer.</p><p>Polly levantou uma bandeja de copos de papel.</p><p>— Café! Você tem umas xícaras bonitas? É uma pena beber nesses</p><p>copos com tampas de plástico.</p><p>— Eu faço isso. É melhor você se sentar.</p><p>— Não vou morrer neste segundo, Annie. Xícaras?</p><p>Annie indicou a cozinha com um gesto e se deixou afundar no sofá</p><p>horrível que imitava couro e tinha um rasgão na lateral.</p><p>— Você dorme em algum momento?</p><p>— Ah, não tenho tempo para isso. Tenho três meses para viver! — Com</p><p>certeza, aquela frase nunca fora dita de um jeito tão animado. — Pelo</p><p>menos é isso que o dr. McRabugento diz. É assim que eu o chamo.</p><p>— É, ele pareceu, mesmo, meio... mal-humorado.</p><p>Polly examinou e descartou uma caneca com a imagem de Cartman, do</p><p>South Park — um presente de amigo secreto do trabalho de Annie, apesar</p><p>de ela nunca ter assistido a um episódio de South Park nem ter expressado o</p><p>menor interesse na série em qualquer momento de sua vida.</p><p>— Que Deus o abençoe. Ele é o clássico médico-com-complexo-de-</p><p>Jesus-Cristo-mas-que-não-consegue-salvar-todo-mundo, mas é o melhor</p><p>que há — a voz de Polly ecoou de dentro do armário. — Francamente,</p><p>Annie, precisamos conversar sobre a sua escolha de louças.</p><p>Ao que parecia, no mundo de Polly, as xícaras eram um problema, mas</p><p>o câncer era apenas um fato da vida. Finalmente, ela encontrou algumas</p><p>xícaras antigas com estampa floral que tinham sido um presente de</p><p>casamento para os pais de Annie.</p><p>— Oh! São vintage?</p><p>— Não, só velhas e baratas, mesmo. — Annie bocejou. — Preciso</p><p>trabalhar hoje. Não me deram muitos dias de folga por causa da mamãe.</p><p>— É por isso que estou aqui tão cedo. Para que possamos organizar um</p><p>plano.</p><p>— Que plano? — Annie não tinha força para nada.</p><p>— Vou explicar. Tome.</p><p>Ela serviu café nas xícaras minúsculas e arrumou os croissants em uma</p><p>travessa também floral, espalhando migalhas pelo chão — que, como Annie</p><p>reparou, já estava cheio de poeira e farelo de torradas. Ela estava mesmo</p><p>deixando as coisas saírem do trilho. Costas crescera com sete irmãs e, antes</p><p>de se mudar para a Inglaterra, nunca precisou ferver uma água, portanto</p><p>trabalho doméstico não era seu ponte forte.</p><p>— Então — disse Polly, acomodando-se. Ela pegou um caderno rosa-</p><p>choque com as bordas prateadas —, como você sabe, tenho três meses de</p><p>vida. Obviamente, foi um baque descobrir isso.</p><p>era desagradável.</p><p>Polly ainda estava se derretendo pelo dr. Quarani.</p><p>— Ele tem um belo traseiro nessa roupa de lycra.</p><p>— Poll!</p><p>— Ora, tem, mesmo. Onde está o dr. McRabugento?</p><p>— Não sei bem. Ah, veja, lá vem ele agora! Uhu! Vai dr. Max!</p><p>Max estava tendo dificuldade no último trecho. Seu rosto estava tão</p><p>vermelho que Annie ficou com medo de ele explodir. Ele estava encharcado</p><p>de suor, com o logo do fundo de doação para o hospital obscurecido por</p><p>manchas escuras — apesar de resmungar tanto, ele obviamente vinha</p><p>arrecadando dinheiro para o fundo desde o começo.</p><p>— Continue! — gritou Annie. — Você consegue!</p><p>— Sabe, acho que ele não vai conseguir. Vou pedir para liberarem um</p><p>leito na emergência — disse Polly, sua voz saindo bem baixa pelo celular.</p><p>— Quieta — repreendeu Annie. — Ele está fazendo o melhor que pode.</p><p>Ela acenou para Max, que mancava e tinha as sobrancelhas muito</p><p>franzidas, os ombros inclinados para a frente.</p><p>— Amo você, dr. McRabugento! Com certeza, não vou olhar debaixo</p><p>do seu kilt se você desmaiar!</p><p>— Cala a boca, Polly!</p><p>DIA 50</p><p>PEÇA DEMISSÃO</p><p>— Lamento, Annie, mas realmente precisamos ter uma conversa.</p><p>Annie sentiu o estômago afundar. Havia sido chamada no escritório de</p><p>Jeff, onde Sharon estava sentada na “área de bate-papo” com a expressão de</p><p>quem tinha mastigado uma sardinha podre. Ela usava a roupa número três:</p><p>um grande suéter estampado com cachorrinhos e cheio de pelos de cachorro</p><p>de verdade. Annie tentou não espirrar só de pensar a respeito.</p><p>— Qual é o problema, Jeff?</p><p>Ele pareceu ainda mais constrangido.</p><p>— Hum. Annie. Recebi um vídeo por e-mail.</p><p>Ah, não. Ela sentiu o estômago afundar tanto que parecia encostar nos</p><p>tornozelos. Não a bobagem do Thorpe Park.</p><p>— Ah.</p><p>— Esta é você?</p><p>Jeff virou o laptop, que estava com o vídeo do YouTube aberto, pausado</p><p>em uma cena de Annie gritando com a boca aberta.</p><p>— É difícil dizer — respondeu ela, evasiva. — A imagem está bem</p><p>borrada.</p><p>— Uma fonte segura me afirmou que é você. Que você estava lá, em</p><p>um parque de diversão, quando supostamente estava de licença médica.</p><p>— Não sei quem era o tal Kent que ligou — murmurou Sharon. — Ele</p><p>pareceu tão gentil.</p><p>— Mas você não pode provar que sou eu — disse Annie, mantendo o</p><p>tom leve e distante.</p><p>— Não. Teríamos que abrir um processo disciplinar oficial e lhe</p><p>entregar uma advertência por escrito. Isso levaria meses. No entanto, se</p><p>você confessar logo, podemos acabar com isso apenas com uma advertência</p><p>verbal. Três advertências verbais equivalem a uma escrita. Duas</p><p>advertências escritas significam uma audiência...</p><p>Annie experimentou uma sensação familiar. Lembrou-se de si mesma</p><p>sentada na sala de Jeff, o ar impregnado com o cheiro de shake de proteína</p><p>e de macarrão instantâneo, sendo repreendida por não ouvir o bastante, por</p><p>estar triste, ou por não querer conversar sobre os bebês saudáveis de outras</p><p>pessoas. Em suma, por ser humana em um lugar que queria transformá-la</p><p>em um robô processador de faturas. Annie soube então, com toda certeza,</p><p>que nunca conseguiria mudar aquele lugar, sua burocracia, suas regras. Ela</p><p>não conseguiria nem pedir para retirar as plantas mortas sem um sermão</p><p>sobre saúde e segurança. Ela não seria capaz de encarar mais um dia tendo</p><p>que levantar a mão para digitar o código da porta. Nem mais um dia.</p><p>— Não posso fazer isso — ela se ouviu dizer.</p><p>— Confessar o que fez? Devo dizer, Annie...</p><p>— Não. Estou me referindo a tudo. Jeff... Sharon... por que fazemos</p><p>isso, dia após dia? Vir para este escritório horrível... Sua casa é mais</p><p>agradável do que aqui, eu espero. Não cheira a comida velha, nem tem</p><p>mesas que não são limpas há pelo menos quatro anos, certo? Deve ser. Mas</p><p>passamos a maior parte de nossas horas acordados aqui, até mais do que</p><p>somos pagos para passar, e nem sequer gostamos das pessoas com quem</p><p>temos que trabalhar.</p><p>Jeff abriu a boca como se fosse discordar, mas acabou não dizendo</p><p>nada.</p><p>Annie continuou.</p><p>— E para quê? Por que passamos horas dentro de trens lotados, com um</p><p>monte de gente infeliz e furiosa, e passamos o dia sentados diante de uma</p><p>mesa neste lugar horrível e sujo, comendo sanduíches sem graça e sopas</p><p>instantâneas, ignorando uns aos outros, ficando com dor no ciático, e depois</p><p>voltamos para casa e passamos a noite diante da TV assistindo a programas</p><p>de culinária, dança e sobre outras pessoas vendo TV?</p><p>— Nem todos somos ricos — disse Sharon, torcendo o nariz. — Alguns</p><p>de nós precisam de dinheiro.</p><p>— Não somos ricos. Mas por que vivemos aqui em Londres, onde</p><p>trabalhamos só para pagar para viajar e alugar apartamentos horríveis e</p><p>úmidos no décimo andar? E com certeza somos capazes de encontrar outra</p><p>coisa para fazer com nossa vida, algo remunerado, não? Você, Jeff. Sei que</p><p>tem sonhos. Você quer ser o chefão do governo local. Com um ótimo</p><p>salário. Quer se mudar para Surrey. Pedir em casamento uma das mulheres</p><p>da academia de ginástica que frequenta, uma que faça bronzeamento</p><p>artificial e tenha silicone nos seios. Quer mandar seus filhos para uma</p><p>escola particular, dar a eles o que você nunca teve.</p><p>Ele arquejou.</p><p>— Como você...?</p><p>— Mas vale a pena? Vale a pena passar seus próximos trinta anos</p><p>fingindo se importar com revezamento de pratos, regras para uso da</p><p>copiadora e com quem coloca um selo em um pouco de papel? Só para um</p><p>dia conseguir uma boa aposentadoria?</p><p>— Annie! Devo pedir que pare, isso não é nada profissional.</p><p>— Eu sei. Sei disso. Foi ser profissional que me colocou nesta situação,</p><p>para começar.</p><p>Annie teve a sensação de estar caindo, deslizando, como se a gravidade</p><p>tivesse assumido o controle e ela não conseguisse parar nem se quisesse.</p><p>Seus medos estavam se agarrando a suas pernas, berrando. Como ela</p><p>pagaria o aluguel? Como tomaria conta da mãe? Como compraria</p><p>chocolate? Mas, como Polly dizia, estar morrendo coloca sua mente em</p><p>perspectiva. E Annie também estava morrendo. Talvez não morresse nos</p><p>próximos cem dias, claro, mas em algum momento, e, nesse contexto,</p><p>passar mais uma hora que fosse naquele escritório era demais.</p><p>— Eu me demito — ela se ouviu dizer. — Não posso mais trabalhar</p><p>aqui. Sinto muito. Não é sua culpa. Bem, é meio que culpa da Sharon, mas</p><p>acho que ela não consegue evitar.</p><p>Sharon ficou boquiaberta.</p><p>— Sua cretina atrevida!</p><p>Jeff não parava de piscar, tentando acompanhar.</p><p>— Annie, há um processo, um período de aviso prévio, e...</p><p>— Sei disso. Mas se eu for embora imediatamente, por exemplo, há</p><p>alguma coisa que você possa fazer?</p><p>— Mas... referências... seu último pagamento...</p><p>— Não me importo com nada disso. — Se ela estava determinada a</p><p>colocar fogo na própria vida, podia muito bem jogar gasolina. — Então...</p><p>você pode me impedir? Se eu literalmente apenas sair agora?</p><p>— Não, mas... quer dizer, a festa de despedida! Normalmente,</p><p>entregamos um cartão, fazemos uma vaquinha...</p><p>— Isso é gentil da sua parte, Jeff. Mas não vou conseguir passar por</p><p>isso, fingir que todos nos amamos e que vocês vão sentir a minha falta.</p><p>Preciso começar a ser mais honesta em minha vida. Então... tchau.</p><p>— Mas... mas...</p><p>Annie se levantou.</p><p>— Ah, a propósito, sabe todas essas insinuações de demissões que você</p><p>vem fazendo pairar sobre a nossa cabeça há meses? Para manter todos na</p><p>linha, fazendo hora extra e ficando de boca fechada? Que tal parar com</p><p>isso? Ah, e vai ser uma loucura da sua parte se dispensar a Fee. Ela é a</p><p>única aqui que trabalha de verdade.</p><p>Annie saiu da sala de Jeff, a visão nublada, os passos vacilantes. Ah,</p><p>Deus. AH, DEUS. Precisava falar com Polly. Polly acharia aquilo incrível.</p><p>Ninguém levantou a cabeça para olhar para ela. Todos permaneceram na</p><p>própria mesa com os olhos fixos na tela do computador, jogando Candy</p><p>Crush ou navegando no Facebook. Annie pegou a bolsa e o casaco e</p><p>desligou o computador. Ela olhou ao redor uma última vez — o vaso com a</p><p>planta morta, a bandeja de faturas manchada de tinta, a poeira grudada no</p><p>teclado. O metro quadrado de chão onde passara a maior parte da vida nos</p><p>últimos quatro anos. Suas mãos estavam tremendo. Annie pegou as canetas</p><p>cintilantes, os saquinhos de chá elegantes e o pequeno narciso</p><p>Você conhece a sequência:</p><p>chorar no chão do banheiro, negação desesperada, ficar na cama por uma</p><p>semana...</p><p>Annie realmente conhecia a sequência. Na verdade, ela praticamente a</p><p>inventara.</p><p>— ... mas acabei percebendo que tinha recebido uma oportunidade</p><p>única. Não tenho mais que me importar com aquelas besteiras que ocupam</p><p>nosso tempo: contas, aposentadoria, ir à academia. Minha vida, ou o que</p><p>resta dela, agora está intensamente concentrada, graças ao bom e velho</p><p>Bob, o tumor. E pretendo aproveitá-la ao máximo.</p><p>Annie pegou um croissant.</p><p>— Não me diga que fez uma lista do que quer fazer antes de morrer.</p><p>— Este é o comportamento padrão de “tenho três meses de vida”. Mas</p><p>não, é um pouco mais complicado. Não quero só ticar as coisas que já fiz.</p><p>Nadar com golfinhos, feito. Conhecer o Grand Canyon, feito. Afinal, eu</p><p>obviamente já fiz todas essas coisas.</p><p>— Obviamente — resmungou Annie, a boca cheia de croissant.</p><p>— Não quero só... passar pelo que é padrão quando se está morrendo.</p><p>Quero realmente tentar mudar as coisas. Quero deixar algum tipo de marca,</p><p>sabe, antes de desaparecer para sempre. Quero mostrar que é possível ser</p><p>feliz e aproveitar a vida, mesmo que as coisas pareçam estar péssimas. Você</p><p>sabia que, depois de alguns anos, os ganhadores da loteria voltam</p><p>exatamente aos mesmos níveis de felicidade de antes de receberem o</p><p>prêmio? E que acontece o mesmo com pessoas que sofreram acidentes,</p><p>depois que se ajustam às mudanças em sua vida? A felicidade é um estado</p><p>de espírito, Annie.</p><p>Annie cerrou os dentes de novo. As coisas que haviam acontecido com</p><p>ela não eram um estado de espírito, eram muito reais.</p><p>— Então, qual é o plano?</p><p>— Já ouviu falar no projeto Cem Dias Felizes? Uma dessas coisas virais</p><p>da internet?</p><p>— Não.</p><p>A velha Annie teria gostado desse tipo de coisa, teria postado no</p><p>Facebook, compartilhado frases inspiradoras. A nova Annie debochava de</p><p>projetos, planos e listas. Tudo aquilo não significava nada quando a vida</p><p>realmente desmoronava ao seu redor.</p><p>— Na verdade, é simples. Você só precisa fazer uma coisa todo dia que</p><p>a faça feliz. Podem ser coisas pequenas. Podem ser grandes. E estamos</p><p>fazendo uma agora mesmo.</p><p>— Estamos? — Annie olhou a sala bagunçada ao redor, desconfiada.</p><p>— Café da manhã em louças bonitas. Ver o sol nascer com uma amiga.</p><p>— Polly levantou a xícara na direção da janela, onde o céu se avermelhava,</p><p>e Annie pensou: Amiga? Era fácil assim? E como uma coisa tão pequena</p><p>poderia fazer alguma diferença? — Agora, calculo que, se eu tiver sorte,</p><p>sorte do ponto de vista de “eu tenho câncer”, tenho mais cem dias pela</p><p>frente, por isso vou fazer o projeto. E quero a sua ajuda.</p><p>— Minha?</p><p>Polly pousou a xícara. Havia espuma de leite acima de seu lábio</p><p>superior e, de repente, seus cabelos ficaram vermelho-fogo com o sol que</p><p>decidira nascer, lindo, intenso, cor de sangue.</p><p>— Annie...espero que não se aborreça por eu dizer isso... você parece</p><p>meio que o completo oposto de feliz.</p><p>Annie a encarou, surpresa.</p><p>— Venho passando por momentos difíceis recentemente. Você viu a</p><p>minha mãe.</p><p>— Não pode ser por isso — declarou Polly. — Uma atitude como essa</p><p>exige anos de treino.</p><p>— Bem, moro em um apartamento horroroso, cheio de compensado</p><p>vagabundo e mofo, que divido com um garoto grego que nunca lavou uma</p><p>xícara na vida.</p><p>— Costas? Ele é um amor.</p><p>— Talvez. Mas tropeçar nas calças sujas que ele deixa espalhadas e tirar</p><p>queijo grudado de todos os meus pratos não é muito legal. Veja. — Annie</p><p>inclinou o corpo para baixo do sofá onde estava sentada e pegou uma casca</p><p>de pistache. — Ele deixa isso por toda parte. Fico louca. E nem comecei a</p><p>falar do meu emprego, que eu odeio, e para o qual vou me atrasar se não</p><p>sair logo.</p><p>— Muito bem. Então você está infeliz. É por isso que quero que faça</p><p>isso comigo. O que me diz? Pelos próximos cem dias... se eu chegar até lá...</p><p>vamos pensar em uma coisa feliz para fazer todo dia e anotar o que foi.</p><p>Podemos contar retroativamente a partir do dia que nos conhecemos, cortar</p><p>alguns dias... por conta da implacabilidade do tempo e tudo o mais. Quero</p><p>provar que a felicidade é possível, mesmo quando a situação está uma bela</p><p>droga.</p><p>Annie pensou em como poderia responder.</p><p>— Mas... não sei se acredito nisso, Polly.</p><p>— Mas você pode tentar. Por que não?</p><p>Por um momento, Annie quase considerou a hipótese de contar a ela —</p><p>explicar como sua situação era muito pior do ter que uma mãe doente, um</p><p>apartamento horrível e um colega de apartamento folgado —, mas não.</p><p>Polly era praticamente uma estranha.</p><p>Em vez disso, ela falou:</p><p>— Há um monte de razões para não fazer. Preciso ir para o trabalho</p><p>agora ou vou me atrasar. De novo. — Ela se levantou e tomou o restante do</p><p>café espumoso (claramente, uma grande melhoria com relação ao café</p><p>instantâneo amargo que ela costumava fazer). — Escute, Polly, é gentil da</p><p>sua parte me convidar para me unir ao seu projeto — (na verdade era uma</p><p>maldita intromissão, isso sim) —, mas, francamente, não faz o meu estilo.</p><p>Já tenho muito com o que lidar no momento. Obrigada pelo café da</p><p>manhã... tenho certeza de que vamos nos esbarrar no hospital em algum</p><p>momento.</p><p>DIA 4</p><p>APROVEITE AO MÁXIMO SEU HORÁRIO DE ALMOÇO</p><p>Por mais que Annie odiasse ir ao hospital, ela precisava admitir que havia</p><p>algo extremamente reconfortante nele. Toda aquela atividade em vozes</p><p>sussurradas, a sensação de que quem trabalhava ali tinha tudo sob controle,</p><p>e quem entrava ali podia só sentar e esperar que logo viriam verificar sua</p><p>pressão arterial ou escanear você em uma daquelas máquinas. Todos os</p><p>avisos sobre lavar as mãos e sobre desfibriladores — a vida ali era uma</p><p>coisa séria. Não fazia sentido se aborrecer com bobagens.</p><p>Ao contrário do escritório em que Annie trabalhava.</p><p>— Annie. Nove-zero-oito. Só para você saber, para a sua folha de</p><p>ponto.</p><p>Annie cerrou os dentes com tanta força que ficou surpresa por não</p><p>cuspir lascas deles.</p><p>— Certo. Obrigada, Sharon.</p><p>— Apenas certifique-se de anotar isso. É um desconto de quinze</p><p>minutos, arredondando para cima.</p><p>Sharon, uma mulher amarga que vivia de comer batatas chips e tomar</p><p>Appletiser, era a única pessoa no escritório de Annie que não odiava as</p><p>novas folhas de ponto. No início, Annie também aprovara o sistema. Ela até</p><p>ajudara a implantá-lo, em seu cargo de gestora financeira. Claro, era</p><p>compreensiva quando o filho de alguém ficava doente, ou o trem atrasava,</p><p>ou o aquecedor quebrava, mas aquele era um local de trabalho e todos</p><p>tinham tarefas a cumprir. Naquela época, Annie usava terninhos elegantes</p><p>ou vestidos com cintos e cardigãs, levava o almoço de casa em um pote</p><p>hermético e ajudava a organizar a festa de Natal.</p><p>Até que tudo mudou.</p><p>Ela se sentou à mesa de trabalho — agora com pó e migalhas alojados</p><p>em cada fresta, sem fotos nem nada bonito. As plantas que antes ela cuidava</p><p>tinham amarelado e se enchido de poeira, e havia dois anos Annie jogara</p><p>fora a foto do seu casamento, despedaçada. Ela ligou o computador e ouviu</p><p>a máquina gemer enquanto tentava voltar à vida. Annie se perguntou se</p><p>Polly ainda trabalhava. Poderia apostar que o trabalho dela era em algum</p><p>lugar com iMacs limpos e cintilantes e plantas que todos regavam — não</p><p>apenas Sharon, que de um jeito sutil deixava as pobrezinhas morrerem,</p><p>então exibia seus corpos ressecados como vítimas em um julgamento teatral</p><p>—, e onde todos usavam óculos de armação escura e faziam sessões de</p><p>brainstorming enquanto jogavam pebolim.</p><p>— Você vai ao almoço da equipe hoje, Annie? — perguntou Fee, a</p><p>assistente administrativa do escritório, enquanto coçava um eczema. — Só</p><p>preciso da escolha de pratos de todos com antecedência.</p><p>Annie balançou a cabeça. Em outros tempos, ela se esforçava para</p><p>socializar, mas realmente não tinha nada em comum com Sharon; ou com</p><p>Tim, que assoava o nariz na manga da blusa; ou com Syed, que nunca tirava</p><p>os enormes fones de ouvido; ou...</p><p>— Annie?</p><p>— Oi, Jeff. — Ela forçou um sorrisinho. Afinal, o cara era chefe dela.</p><p>— Podemos trocar uma palavrinha? — E imitou uma boca abrindo e</p><p>fechando, como se Annie não falasse o mesmo idioma que ele.</p><p>Jeff parecia não</p><p>perceber que trabalhava no escritório mais triste do</p><p>mundo, onde entusiasmo era tão útil quanto se matar lentamente. A sala</p><p>dele era repleta de pôsteres motivacionais e post-its com frases como:</p><p>“Quem desiste nunca vence. Vencedores nunca desistem”. Sua estante</p><p>estava cheia de livros de negócios: Fique rico ou morra tentando; Gerente</p><p>intermediário rico, gerente intermediário pobre. Embora Annie não tivesse</p><p>ideia de como supostamente se fica rico gerenciando os serviços de</p><p>processamento de resíduos do distrito municipal.</p><p>— Vamos sentar na área de bate-papo. — Jeff, que tinha cerca de trinta</p><p>e oito ternos da Top Man e que estava tentando deixar a barba crescer, era</p><p>um grande fã da “área de bate-papo”, composta de duas cadeiras compridas</p><p>estreitas e uma mesa com edições amassadas da revista editada pelo</p><p>munícipio, Inside Lewisham. — Annie. Como você está?</p><p>Uma merda, pensou ela. Estou péssima. Morrendo por dentro.</p><p>— Bem.</p><p>— Porque percebi que você... não tem estado muito presente esta</p><p>semana?</p><p>— Tirei alguns dias de licença.</p><p>— Sim, sim, mas... quando você está aqui, parece não interagir com as</p><p>pessoas?</p><p>Por que ele transformava toda frase em uma pergunta?</p><p>— O que quer dizer?</p><p>— Bem, o pessoal comentou que você não conversa na cozinha, nem sai</p><p>para almoçar... os bons e velhos momentos ao redor do bebedouro, você</p><p>sabe, haha!</p><p>— Isso é porque estou fazendo o meu trabalho! E nem temos mais um</p><p>bebedouro, desde o corte no orçamento!</p><p>— Ora. Você sabe do que estou falando. — Jeff se inclinou para a</p><p>frente, sério.</p><p>Annie sabia que ele era cinco ano mais novo que ela e, ainda assim, ele</p><p>falava como se Annie fosse uma adolescente rebelde, que, para ser sincera,</p><p>era como ela estava se sentindo.</p><p>— A questão é a seguinte, Annie, um escritório é mais do que apenas</p><p>trabalho. É uma equipe. Amigos, eu espero. Como a tripulação de um</p><p>navio. — Ele fez um gesto que Annie deduziu que devia ser de puxar o</p><p>cordame de um mastro de navio. — Então, que mal faz um pouco de</p><p>conversa diante de uma boa xícara de chá? E talvez ajudasse se você</p><p>sorrisse um pouco mais. O pessoal está achando você um pouco...</p><p>antipática?</p><p>Annie sentiu as lágrimas ardendo em seu nariz outra vez.</p><p>— A minha mãe está doente. Você sabe.</p><p>— Eu sei. Eu sei. Sei muito bem que você passou... por momentos</p><p>difíceis nos últimos anos. E somos totalmente empenhados em acolher a</p><p>família, bem... — Jeff se interrompeu, constrangido, talvez se lembrando de</p><p>que Annie já não tinha mais uma família.</p><p>Ele sabia, é claro. Todos sabiam e, ainda assim, ficavam chateados por</p><p>causa da máquina de franquear e por quem tomara todo o leite. Qual era o</p><p>problema deles?</p><p>— Sei que tem sido difícil. Mas temos que mostrar uma atitude positiva</p><p>no trabalho, não importa o que esteja acontecendo. Pensamento positivo,</p><p>Annie! — Jeff gesticulou como se estivesse balançando um bastão de</p><p>beisebol imaginário. — Você sabe, este ano teremos mais demissões. Todos</p><p>precisaremos lutar pelo nosso emprego. Então... se você pudesse socializar</p><p>só um pouco mais, sorrir, você sabe como é, perguntar sobre os filhos dos</p><p>colegas, e por aí vai. Afinal já se passaram dois anos, não é? Desde... tudo?</p><p>Annie baixou os olhos para as mãos, sentindo-se humilhada além do</p><p>que as palavras poderiam descrever. Mas não choraria na frente dele. Ela</p><p>esperaria até poder se esgueirar para o banheiro e choraria até quase colocar</p><p>o coração para fora, como vinha fazendo ao menos uma vez por semana nos</p><p>últimos dois anos.</p><p>— Vou tentar — disse ela com os dentes cerrados. — Posso ir agora?</p><p>Annie ficou parada na cozinha do escritório, esperando a água ferver na</p><p>chaleira mal lavada. O lugar cheirava permanentemente a atum, e na pia</p><p>havia o respingo de alguma coisa que podia ser vômito ou macarrão</p><p>instantâneo. Sharon havia erguido a gosma com um garfo, como a cena de</p><p>um crime alimentar, e deixara um dos bilhetinhos que eram a sua marca</p><p>pessoal: NÃO é TRABALHO dos faxineiros limpar a sua COMIDA.</p><p>Tinha que haver mais vida do que aquilo. Arrastar-se para aquele lugar</p><p>todo dia, em um ônibus cheio de passageiros indo para o trabalho com</p><p>raiva. Ficar sentada em um escritório que nunca era limpo direito, com</p><p>pessoas que ela literalmente atravessaria a rua para evitar. Quando a</p><p>chaleira apitou, Annie sentiu uma certeza fria se assentar em seu peito. Tem</p><p>que haver mais do que isto. Precisa.</p><p>— Há uma pessoa aqui para vê-la.</p><p>Annie levantou os olhos da tela algumas horas depois e viu Sharon</p><p>pairando ali. Ela parecia ter apenas quatro roupas, que usava em um rodízio</p><p>estrito. A roupa de hoje era a número dois — um cardigã vermelho coberto</p><p>de pelo de cachorro (Sharon tinha quatro) e uma saia que chegava ao</p><p>tornozelo, com a bainha malfeita.</p><p>— Quem é?</p><p>Sharon fungou.</p><p>— Uma mulher. Vestida como uma maluca.</p><p>Ah, não, devia ser Polly. Como ninguém bateu na porta de seu</p><p>apartamento naquela manhã, Annie achou que estava a salvo. Claramente, a</p><p>forma que Polly encontrara de lidar com seu diagnóstico era aproveitando a</p><p>vida, mas será que aquilo iria durar? O problema de aproveitar a vida era</p><p>que, em algum momento, era preciso pagar algum imposto, cortar o cabelo</p><p>ou consertar o chuveiro. Por que Polly resolvera grudar em Annie, que não</p><p>só não estava aproveitando a vida como procurava se esconder das coisas a</p><p>todo custo, chorando em banheiros? Talvez conseguisse se esquivar de</p><p>Polly.</p><p>Tarde demais... Annie viu que Polly já estava invadindo o escritório,</p><p>acenando. Ela usava um chapéu de feltro vermelho e um casaco grande que</p><p>parecia uma capa, e estava carregando uma caixa de papel.</p><p>Annie se sobressaltou.</p><p>— O que você está fazendo aqui?</p><p>— Achei que podíamos almoçar juntas.</p><p>— Não tenho tempo para almoçar.</p><p>— Annie! Você é paga para trabalhar no horário de almoço?</p><p>— Bem, não, mas...</p><p>— Então você está fazendo hora extra de graça todo dia?</p><p>— Fale baixo — sussurrou Annie e olhou em volta. Seus colegas</p><p>estavam debruçados sobre as mesas, comendo sanduíches ou tomando sopa</p><p>rala, os olhos fixos nos computadores diante deles. — Como você descobriu</p><p>onde eu trabalho?</p><p>— Ah, você está na internet. Eu trouxe um kit de cuidados especiais! —</p><p>Polly empurrou a caixa sobre a mesa de Annie contendo um porta-retratos</p><p>prateado, uma caneca com os dizeres “Você não precisa ser louco para</p><p>trabalhar aqui, mas provavelmente é”, saquinhos de chá, biscoitos, canetas</p><p>cintilantes, lenços umedecidos, uma plantinha, um caderno com capa de</p><p>seda azul. — São só umas coisinhas para alegrar o seu espaço de trabalho.</p><p>Aposto que está tudo sujo e nojento.</p><p>— Não está, não!</p><p>— Tem certeza? — Polly correu o dedo por cima da base do</p><p>computador de Annie e mostrou como ficou escuro de poeira. — A área de</p><p>trabalho de todo mundo é imunda. Passamos tanto tempo nelas e nem</p><p>sequer tentamos deixá-las mais agradáveis. Pequenas coisas podem</p><p>realmente fazer diferença.</p><p>Annie suspirou.</p><p>— Vamos, é melhor sairmos. Não deveríamos ter visitantes.</p><p>Ela empurrou Polly na direção da porta, passando por uma Sharon de</p><p>olhos arregalados que finalmente encontrara algo mais interessante do que o</p><p>Farm World para olhar.</p><p>Polly fitou o prédio com olhar crítico — uma construção de concreto</p><p>horrorosa dos anos 70, com dez faixas de trânsito na frente. — Eu não a</p><p>culpo por se sentir infeliz. Esse lugar deprimiria qualquer um.</p><p>— Exatamente. E tenho que vir para cá todo dia para fazer um trabalho</p><p>que detesto; portanto, como deixar alguns saquinhos de chá na minha mesa</p><p>vai ajudar?</p><p>— Vai ajudar. Uma viagem de mil quilômetros começa com um único</p><p>passo.</p><p>— Você não vai sugerir que eu me abra e socialize com todos no</p><p>escritório e perceba que estamos todos no mesmo barco, não importa o</p><p>tamanho do barco?</p><p>Polly riu.</p><p>— Não. Algumas pessoas são simplesmente terríveis. E há certas</p><p>situações das quais precisamos fugir o mais rápido possível, como uma</p><p>bomba prestes a explodir. Você deveria pedir demissão.</p><p>Annie sentiu a raiva voltar — quem aquela mulher achava que era,</p><p>dizendo a ela o que fazer?</p><p>— Não posso. Preciso do dinheiro.</p><p>— Você pode trabalhar com alguma outra coisa — sugeriu Polly,</p><p>animada.</p><p>— Estamos em uma recessão.</p><p>— Desculpas. — Polly afastou o comentário com um aceno de mão. —</p><p>Todos usam essa desculpa, Annie. Ah, tudo era sempre melhor no passado!</p><p>A vida é uma porcaria agora que não podemos mais mandar nossos filhos</p><p>trabalharem nas minas de carvão! São só desculpas.</p><p>— Mas...</p><p>Polly segurou o braço de Annie.</p><p>— Eu sei que você está irritada, mas, desculpe, vou usar o trunfo do</p><p>câncer. Com o tempo, você verá que estou certa. Agora venha comigo.</p><p>Vamos fazer uma coisa pelos nossos cem dias felizes. Uma coisa bem</p><p>simples: aproveitar o horário de almoço.</p><p>— Eu nunca disse que faria esse negócio dos cem dias. E, além disso,</p><p>eu aproveito o horário de almoço.</p><p>— Fazendo o quê? Entra no Facebook? Resolve pendências?</p><p>— Às vezes eu compro um sanduíche.</p><p>— Em um lugar legal?</p><p>— Não há lugares legais por aqui. Normalmente, compro no</p><p>supermercado.</p><p>— Ao menos você sai da sua mesa para comer esse sanduíche?</p><p>— Para ir aonde? Ao banheiro? Ou para ficar parada na ilha de</p><p>concreto, no meio do cruzamento?</p><p>— Que tal aqui? — Polly parou e abriu bem os braços, ao estilo das</p><p>coristas de Las Vegas.</p><p>Annie olhou com uma expressão cética para o gramado de uma praça ao</p><p>lado delas.</p><p>— No parque? Não vou entrar aí... seremos sequestradas por traficantes</p><p>de drogas!</p><p>Polly já estava abrindo os portões.</p><p>— Olá, olá, se houver alguém vendendo drogas aqui, eu gostaria de</p><p>comprar um pouco de crack! Está vendo, nada. Acho que estamos seguras.</p><p>— Estou congelando.</p><p>— Tenho mantas.</p><p>Polly se acomodou em um banco e pegou duas mantas pesadas dentro</p><p>da grande bolsa que carregava.</p><p>— Estou me sentindo ridícula.</p><p>Annie estava feliz porque ao menos a manta cobria parcialmente seu</p><p>rosto. E se alguém do trabalho passasse por ali e a visse fazendo um</p><p>piquenique no parque frio e lúgubre, ao lado de cocô de cachorro? Com</p><p>certeza, acharia que ela havia enlouquecido de vez.</p><p>Polly pegou duas caixas de papelão pequenas.</p><p>— Você não é vegetariana, certo?</p><p>— Não, mas...</p><p>— Então, coma!</p><p>Na caixa havia uma fatia quebradiça de cheddar, um pedaço suculento</p><p>de pera, uma fatia grossa de presunto e um pedaço crocante de pão. Tudo</p><p>coberto por um chutney vermelho brilhante.</p><p>— Você não conseguiu essas coisas por aqui — falou Annie em um tom</p><p>acusador. — Por aqui só tem galeterias e vans vendendo kebab. — Ela</p><p>experimentou um pedaço do queijo, de gosto forte, salgado e com textura</p><p>granulada. Ah, Deus, estava uma delícia. E pensar que ela estava</p><p>planejando comer só umas fatias de queijo processado.</p><p>Polly comeu um pouco, então pousou a caixa no colo.</p><p>— Tome — disse, pegando mais alguma coisa na bolsa. — Uma lista de</p><p>dez coisas para fazer no horário de almoço a menos de dez minutos do seu</p><p>escritório. Ioga. Um grupo de canto. Um mercado de rua.</p><p>— Não posso sair no horário de almoço todo dia!</p><p>— Ora, por que não?</p><p>Annie não tinha uma resposta para aquilo.</p><p>— Vou pensar a respeito.</p><p>— Podem ser só coisas bem pequenas. Para começar, olha só este lugar.</p><p>Não é bonito? Tem um campo de futebol... você poderia vir assistir a</p><p>homens bonitões usando shorts. Tem cachorros para fazer carinho, e até um</p><p>pequeno quiosque de café. Sem falar do parquinho.</p><p>Polly indicou com a cabeça crianças sendo empurradas em balanços e</p><p>descendo em escorregadores, todas bem agasalhadas contra o frio. Annie se</p><p>encolheu e olhou para o outro lado... ela tentava evitar parquinhos.</p><p>— Eu disse que vou pensar a respeito.</p><p>Polly se recostou no banco e fechou os olhos para aproveitar o sol fraco</p><p>de primavera.</p><p>— Não seja sua pior inimiga, Annie. Já há muitas outras pessoas</p><p>dispostas a assumir esse papel. Lembre-se, hoje é o primeiro dia do resto de</p><p>sua vida.</p><p>Annie revirou os olhos, mas tinha que admitir que o ar fresco e a</p><p>comida saborosa haviam melhorado um pouco o seu humor. Sem dúvida,</p><p>estar ali era melhor do que tomar uma sopa instantânea enquanto Sharon</p><p>espiava por cima do ombro e todos falavam sobre um programa de dança de</p><p>televisão. Annie se deu conta de que Polly já estivera em seu escritório e em</p><p>sua casa — lugares onde Annie passava cerca de noventa e seis por cento</p><p>dos dias, atualmente — e ela não sabia nada sobre essa mulher. A não ser</p><p>que tinha um guarda-roupa excêntrico e parecia ter engolido um livro de</p><p>frases motivacionais.</p><p>— Então... você está se sentindo bem? — arriscou-se a perguntar.</p><p>Polly abriu um olho.</p><p>— Ainda estou morrendo. Mas dentro desse contexto, sim, estou bem.</p><p>Meus níveis de energia estão bons, provavelmente porque estou tomando</p><p>tantos comprimidos que fico surpresa por não chacoalharem quando ando.</p><p>O dr. Max morre de medo da coisa crescer um centímetro que seja e eu</p><p>começar a babar.</p><p>Annie empalideceu, mas Polly ainda estava sorrindo.</p><p>— E... você parou de trabalhar?</p><p>— É claro. Eu trabalhava com relações públicas, sabe. Quem se importa</p><p>com campanhas para um batom novo quando se tem três meses de vida?</p><p>Annie não perguntou o que ela estava fazendo para ganhar dinheiro. Só</p><p>pessoas de berço se chamam Polly. Sua mente estava cheia de perguntas.</p><p>Polly era casada? Tinha filhos? E, principalmente, por que havia escolhido</p><p>Annie?</p><p>— Esse projeto — arriscou Annie. — Seus amigos também estão</p><p>participando dele? — Ela quase disse “seus outros amigos”, mas ela e Polly</p><p>ainda não estavam nesse nível.</p><p>— Ah, eles adorariam participar. Todos gostam de postar no Instagram</p><p>o abacate que comem de manhã e escrever sobre retiros de ioga. Não quero</p><p>isso. De qualquer forma, eles têm filhos, empregos, casamentos, essas</p><p>coisas. São ocupados.</p><p>E Annie mal tinha uma daquelas coisas, no momento.</p><p>— Então... por que me convidou?</p><p>— Porque sim. Quero alguém que não acredite no projeto. Quero saber</p><p>se é possível ficar feliz mesmo quando as coisas estão muito, muito ruins.</p><p>Preciso saber que a morte pode ter algum significado. Que não é apenas</p><p>uma falta de sorte aleatória. Entende?</p><p>— Hum, acho que sim.</p><p>Annie não era uma pessoa de muitos amigos. Preferia ter um grupo</p><p>pequeno, pessoas em quem poderia confiar, embora, de certa forma, isso</p><p>tenha dado errado, já que nunca mais poderia voltar a falar com Jane.</p><p>Portanto, não dava para negar: havia um vazio em sua vida, um lugar que</p><p>antes guardava as pessoas que ela mais amou. Mike. Jane. Jacob. E sua</p><p>mãe. Talvez, apenas talvez, fosse bom fazer uma nova amiga. Mas Polly era</p><p>imprevisível e refinada, e, para Annie, um projeto tolo seria como engessar</p><p>um braço amputado. Assim, ela comeu o que restava do almoço — tão</p><p>doce, tão crocante — e disse a Polly que precisava voltar ao trabalho.</p><p>— Posso lhe pagar?</p><p>— Não seja boba. Vou ficar mais um pouco — disse Polly, enrolada na</p><p>manta. — Aposto que há umas lojinhas interessantes por aqui.</p><p>— Se gostar de frango frito e bicicletas roubadas — comentou Annie,</p><p>mas a gracinha não soou amarga, e ela percebeu que se sentia melhor...</p><p>renovada, diferente de quando se sentava diante da mesa de trabalho com</p><p>um sanduíche embrulhado em plástico, comprado na loja da esquina.</p><p>No caminho de volta para o escritório, Annie passou pela recepcionista,</p><p>que a encarou horrorizada.</p><p>— Nossa, você está bem? Está doente ou alguma coisa assim?</p><p>— Não, por quê?</p><p>— Porque você meio que sorriu para mim.</p><p>Já em sua mesa, Annie tirou as coisas de dentro da caixa que Polly</p><p>levara. Ela colocou os artigos de papelaria na mesa empoeirada, então</p><p>pensou melhor e limpou com a manga da blusa. Deus, estava imunda.</p><p>Annie colocou as canetas cintilantes dentro de uma caneca com a inscrição</p><p>Cotswolds Wildlife Park, o parque onde haviam levado Jacob em seu</p><p>primeiro passeio. Que também acabou sendo o último. Por meses depois</p><p>disso, ela ficou repassando aquele passeio. Será que ele ficou resfriado?</p><p>Pegou uma infecção? Annie colocou a planta ao lado do monitor e tocou as</p><p>grossas folhas verdes. Jacintos, de um rosa forte. Ela os cultivara em seu</p><p>jardinzinho. Ela se perguntou se Mike e Jane estavam cuidando deles agora.</p><p>Sharon fungou alto, a sua maneira de chamar a atenção de Annie sem</p><p>ter que chamá-la pelo nome.</p><p>— Você se atrasou para voltar do almoço. São dez minutos.</p><p>Annie suspirou.</p><p>— Vou colocar na minha folha de ponto.</p><p>— E você precisa responder a esse recado. Não tenho</p><p>tempo para ficar</p><p>atendendo suas ligações pessoais o dia todo.</p><p>— Que recado?</p><p>— Deixei na sua mesa. Uma mulher estrangeira ligou.</p><p>Annie procurou e acabou encontrando um pedaço de papel embaixo da</p><p>mesa, com um bolo de poeira de tamanho considerável. Ela lançou um</p><p>olhar ameaçador para Sharon, mas a colega já voltara ao seu trabalho muito</p><p>importante (Farm World).</p><p>Ela abriu o papel e, por um momento, um arrepio de horror a percorreu.</p><p>Era culpa dela. Havia saído para o almoço, havia se permitido sentir-se bem</p><p>por um momento. E, agora, veja só. Annie se levantou com um pulo,</p><p>procurando pela bolsa.</p><p>— Aonde você vai? — gritou Sharon. — Tem horas para compensar!</p><p>Annie a ignorou. Naquele momento, folhas de ponto eram realmente o</p><p>que menos lhe importava.</p><p>Annie levou quase quarenta minutos para chegar ao hospital, ofegante e</p><p>suada em sua blusa de nylon.</p><p>— Minha mãe... ela piorou?</p><p>— Quem? — A recepcionista nem levantou os olhos.</p><p>— Maureen Clarke. Por favor, ela está bem?</p><p>— Espere.</p><p>A mulher digitou no teclado enquanto Annie sentia o sangue ferver. Por</p><p>que aquelas mulheres eram tão pouco prestativas?</p><p>— Annie? É você?</p><p>Ela se virou ao ouvir o sotaque escocês e viu o neurologista de Polly.</p><p>Ele parecia não dormir há dias, com os cabelos encaracolados desalinhados</p><p>e a camisa branca amassada.</p><p>— Recebi um recado, a minha mãe...</p><p>— Aye, ela nos deixou um pouco preocupados, mas está bem, não se</p><p>preocupe.</p><p>— O que aconteceu? — O coração de Annie desacelerou aos poucos. —</p><p>Por que você está cuidando da minha mãe? Você não é neurologista?</p><p>— Polly me pediu para dar uma olhada no histórico da sua mãe. Não é</p><p>exatamente a minha área, é claro, mas sei um pouco a respeito.</p><p>— Ah.</p><p>Polly estava planejando se infiltrar em todas as áreas da vida de Annie?</p><p>— Sua mãe estava... — Ele suspirou. — Bem, ela estava um pouco</p><p>agitada. Achou que a estávamos mantendo em uma prisão. Por que você</p><p>não vem comigo? Quero que conheça um colega meu.</p><p>Annie o seguiu pelo corredor, com as paredes na cor de cocô de neném.</p><p>Ela reparou que as pessoas cumprimentavam o médico quando passavam,</p><p>serventes, vigias, faxineiros.</p><p>— Boa tarde, dr. Fraser.</p><p>— Oi, Max.</p><p>E ele assentia de volta, sem diminuir o passo.</p><p>Eles chegaram a uma porta, e ele usou o crachá para abri-la.</p><p>— Minha mãe está trancada aí dentro?</p><p>— Por ora. Annie, nós achamos que ela poderia machucar alguém.</p><p>A mãe dela estava na cama, usando apenas uma camisola de hospital,</p><p>tremendo como se estivesse morrendo de frio, olhando pelo quarto com</p><p>uma expressão assombrada. Annie se adiantou na direção dela, mas logo</p><p>parou, horrorizada.</p><p>— Minha mãe está acorrentada!</p><p>— Och, Annie, é só uma contenção padrão. Sei que parece ruim, mas,</p><p>acredite em mim, é pela segurança dela.</p><p>O pulso de Maureen, fino como o de uma criança, estava envolvido por</p><p>uma faixa de espuma e amarrado à cama. Pior: Annie percebeu, pelo modo</p><p>como os olhos da mãe não se fixavam nela, que mais uma vez ela não</p><p>estava reconhecendo sua única filha, que, naquele momento, Annie</p><p>significava tanto para ela quanto a cama acolchoada do hospital, as lixeiras</p><p>amarelas e o monitor ao qual estava conectada.</p><p>A porta voltou a ser aberta e entrou um homem usando um jaleco</p><p>branco impecável.</p><p>— Quem é esta? — perguntou irritado. Annie não conseguiu identificar</p><p>de onde era seu sotaque. — Eu disse que a sra. Clarke deveria ser mantida</p><p>em isolamento.</p><p>— É por isso que ela está apavorada! — Annie sentiu os olhos</p><p>marejados de fúria. — Por favor. Precisava amarrá-la como um animal?</p><p>O homem — ela agora podia ver que ele era impressionantemente</p><p>bonito, com a pele lisa e morena, os cabelos negros penteados para trás e o</p><p>tipo de malares que modelos matariam para ter — ergueu uma sobrancelha.</p><p>— Dr. Fraser? O que está acontecendo aqui?</p><p>O dr. Fraser passou a mão pelo rosto cansado, arrepiando as</p><p>sobrancelhas.</p><p>— Esta é a filha da sra. Clarke, Sami. Achei que você poderia explicar a</p><p>ela algumas opções de tratamento. Por que não vamos para o seu</p><p>consultório?</p><p>— Não posso deixar a minha mãe assim! — protestou Annie.</p><p>— O dr. Fraser está certo. Sua presença está perturbando a sua mãe. Por</p><p>favor.</p><p>O outro médico os levou para uma pequena sala adjacente.</p><p>Annie deu uma última olhada nos olhos apavorados e confusos da mãe</p><p>conforme a porta se fechava atrás deles. Ela não sabe quem eu sou. Não me</p><p>reconhece.</p><p>— Sente-se, por favor. — O dr. Seja-qual-for-o-nome indicou uma</p><p>cadeira de plástico, e Annie se sentou, arrasada de raiva e tristeza. — Srta.</p><p>Clarke...</p><p>— É sra. Hebden.</p><p>Por que ele presumira que ela não era casada? Era essa a imagem que</p><p>passava?</p><p>O médico franziu o cenho diante da interrupção.</p><p>— Sua mãe está muito doente. Ela teve o que chamamos de episódio</p><p>dissociativo e jogou uma cadeira em uma das enfermeiras. Por sorte,</p><p>ninguém se machucou, mas não podemos correr esse risco de novo.</p><p>Espantada, Annie olhou para o dr. Fraser para confirmar a informação.</p><p>Ele encolheu os ombros, parecendo desconfortável... era verdade.</p><p>— Mas... ela é tão pequena.</p><p>— As pessoas podem ser tornar muito fortes quando estão dominadas</p><p>pela demência. Eu gostaria de assumir o caso da sua mãe. Sou o novo</p><p>geriatra daqui, dr. Quarani. Precisamos conversar sobre as opções.</p><p>Annie assentiu, zonza.</p><p>— Há alguma coisa que o senhor possa fazer?</p><p>Ela encarou fixamente a mesa, tentando não chorar. Nela, havia uma</p><p>foto emoldurada de uma linda mulher usando um lenço na cabeça e batom</p><p>vermelho, com duas crianças pequenas penduradas nela. Uma família</p><p>perfeita.</p><p>— Há um tratamento experimental. Um remédio novo. Tem sido</p><p>bastante eficaz para certos tipos de demência.</p><p>Annie levantou os olhos.</p><p>— Vai ajudá-la?</p><p>— Acreditamos que possa retardar o progresso da doença em casos que</p><p>ainda estão no princípio, como o da sua mãe; de certa forma, acalma os</p><p>pacientes. E funciona regenerando alguns neurônios do cérebro. A senhora</p><p>compreende que não podemos reverter o dano já causado?</p><p>Annie sabia que a doença já havia feito um estrago, emaranhado as</p><p>sinapses do cérebro de sua mãe, embaralhando as lembranças como uma</p><p>gaveta jogada no chão.</p><p>— Mas talvez o senhor consiga deter o avanço?</p><p>— Retardar, talvez. Mas, sra. Hebden, o remédio provoca efeitos</p><p>colaterais, como todos os medicamentos. É experimental. Compreende o</p><p>que estou dizendo?</p><p>— Pode pensar um pouco a respeito se quiser, Annie — falou o dr.</p><p>Fraser.</p><p>O dr. Quarani voltou a franzir o cenho.</p><p>— A sra. Clarke deve começar o protocolo o mais rápido possível.</p><p>Quero transferi-la para a ala geriátrica hoje. Gostaria de mantê-la em</p><p>observação durante o teste, assim posso monitorar o progresso do</p><p>tratamento.</p><p>Ala geriátrica. A mãe de Annie não tinha nem sessenta anos e ia ser</p><p>colocada com pessoas velhas, que não tinham tempo nem esperança.</p><p>— E se eu disser não, o que acontece?</p><p>— Ela terá que liberar o leito em poucos dias e terá alta para ficar sob</p><p>os seus cuidados. Eu sugiro que pense em atendimento em uma instituição</p><p>especializada.</p><p>E quanto isso custaria? Ela conseguiria encontrar um lugar decente?</p><p>Annie assentiu, zonza.</p><p>— Acho... acho que parece uma boa ideia. O remédio experimental. Se</p><p>o senhor tem certeza.</p><p>De repente, o médico sorriu, e Annie o encarou espantada. Era um</p><p>homem deslumbrante.</p><p>— Obrigada, sra. Hebden. Vou lhe dar um folheto com informações a</p><p>respeito. Por favor. — Ele abriu a porta novamente e, ainda perplexa, Annie</p><p>saiu. Sua mãe continuava deitada, pequena e silenciosa, movendo apenas os</p><p>olhos.</p><p>— Não ligue para o Sami — disse o dr. Fraser, fechando a porta depois</p><p>que eles saíram. — Ele é um bom homem, mesmo que suas maneiras sejam</p><p>um pouco... bruscas. Ele não está acostumado ao modo como os pacientes</p><p>britânicos não se contentam só com a mão, e também querem seu braço e</p><p>sua perna.</p><p>— A ideia dele é boa?</p><p>— É a única chance. Não significa que vá funcionar. Mas do jeito que</p><p>está, ela não vai melhorar. — Os dois se viraram para a mulher na cama,</p><p>que os encarava como se pudesse entender o que estava acontecendo caso</p><p>se concentrasse o bastante.</p><p>— Vocês dois...</p><p>Annie esperou.</p><p>— São meus advogados? Porque eu não fiz isso, tenho certeza.</p>
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- Qual figura de linguagem é utilizada na frase "O tempo voa quando estamos nos divertindo"?a) Metáforab) Comparaçãoc) Hipérboled) Personificação
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- PRATICA INTERDISCIPLINAR 3